DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

18/06/2010

A Ilha Desconhecida de José Saramago (reeditado)


Um homem foi bater à porta do rei e disse-lhe, Dá-me um barco, A casa do rei tinha muitas portas, mas aquela era a porta das petições.

(...)

Que é que queres, Por que não disseste logo o que querias, pensarás tu que eu não tenho mais nada para fazer, mas o homem só respondeu à primeira pergunta, Dá-me
um barco, disse, O assombro deixou o rei a tal ponto desconcertado, que a mulher da limpeza se apressou a chegar-lhe uma cadeira de palhinha, a mesma em que ela própria se sentava quando precisava de trabalhar de linha e agulha.
(...)
E tu para que queres um barco, pode-se saber, foi o que o rei de facto perguntou quando finalmente se deu por instalado, com sofrível comodidade, na cadeira da mulher da limpeza, Para ir à procura da ilha desconhecida, respondeu o homem, Que ilha desconhecida, perguntou o rei disfarçando o riso, como se tivesse na sua frente um louco varrido, dos que têm a mania das navegações, a quem não seria bom contrariar logo de entrada, A ilha desconhecida, repetiu o homem, Disparate, já não há ilhas desconhecidas, Quem foi que te disse, rei, que já não há ilhas desconhecidas, Estão todas nos mapas, Nos mapas só estão as ilhas conhecidas, E que ilha desconhecida é essa de que queres ir à procura, Se eu pudesse dizer, então não seria desconhecida
(...)
E tu quem és, para que eu to dê, E tu, quem és, para que não mo dês, Sou o rei desse reino, e os barcos do reino pertencem-me todos, Mais lhes pertencerás tu a eles do que eles a ti, Que queres dizer, perguntou o rei inquieto, Que tu sem eles, és nada, e que eles
sem ti, poderão sempre navegar
(...)
Vou dar-te um barco, mas a tripulação terás de arranjá-la tu, os meus marinheiros são-me precisos para as ilhas conhecidas (...) Vais à doca, pergunta lá pelo capitão do
porto, dizes-lhe que te mandei eu, e ele que te dê o barco, leva o meu cartão
(...)
O capitão veio, leu o cartão, mirou o homem de alto a baixo, e fez a pergunta que o rei se tinha esquecido de fazer, Sabes navegar, tens carta de navegação, ao que o homem respondeu, Aprenderei no mar, O capitão disse, Não to aconselharia, capitão sou eu, e não me atrevo com qualquer barco(..) Disseram-me que já não há ilhas descohecidas, e que mesmo se as houvesse, não iriam eles tirar-se do sossego de seus lares e da boa vida dos barcos de carreira para se meterem em aventuras oceânicas, à procura de um impossível, como se ainda estivéssemos no tempo do mar tenebroso, E tu, que lhes respondeste, Que o mar é sempre tenebroso
(...)
E a ilha desconhecida, perguntou o homem do leme, A ilha desconhecida é coisa que não existe, não passa duma ideia da tua cabeça, os geógrafos do rei foram ver nos mapas e declararam que ilhas por conhecer é coisa que se acabou desde há muito tempo


Extraído de "O Conto da Ilha Desconhecida", de José Saramago, escritor português, Prêmio Nobel de Literatura em 1998. É autor de uma vasta obra, entre as quais podemos citar "Caim" (publicada recentemente), "Ensaio sobre a Cegueira", "O Evangelho segundo Jesus Cristo", "Memorial do Convento", "Todos os Nomes".
José Saramago faleceu hoje, aos 87 anos, em sua casa nas Ilhas Canárias.

9 comentários:

  1. O ser humano é uma ilha desconecida!

    Amei a imagem das velas do Mucuripe!
    Bjos!

    Carol Sakurá

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  2. Nas nossas cabeças há sempre uma ilha desconhecida.

    Aqui, também se diz:
    - Há sempre um Portugal desconhecido!

    Provavelmente aí, dirão de igual modo!

    Beijinho

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  3. Pois é, Vieira, embora digam que "nenhum homem é uma ilha", temos cá dentro de nós um espaço permanentemente IMPENETRÁVEL, desconhecido para para nós mesmos. Há uma ilha desconhecida a ser descoberta diariamente. SEMPRE!

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  4. Cirandeira, que texto lindo este, não o conhecia. Herman Melville: "Não está em nenhum mapa. As terras de verdade nunca estão."

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  5. Viver é buscar por esta ilha...
    Também não conhecia o texto, Cirandeira. Aprendo sempre tanto por aqui... beijooos

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  6. Talvez, a gente devesse desisitir de ser ilha para ser mar.

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  7. Pois é, concordo contigo, Bípede.
    O problema é que temos muito medo da amplidão e da profundeza do mar...
    Onde vamos encontrar "chão" para por os pés da "razão"?

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  8. José Saramago, um homem com H...Que ousou gritar bem alto suas indignações, seus anseios e emoções...ADORO ELE!Uma perda irreparável para a cultura e para todos nós. Ele vai, mas, nos deixa um legado Maravilhoso!
    Muito lindo o texto...Reflexivo...como em tudo o que ele escrevia...PARABÉNS PELO SEU CANTINHO BELA CIRANDEIRA.

    Abraços

    Namastê!

    ;D

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  9. Obrigada pela visita e pela amabilidade, "Madre
    Del'Alma". Seja bem vinda e volte sempre!

    Um abraço

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