DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

21/06/2010

Um conto de Murilo Rubião (1916-1991)





Vinde todos, ajuntai-vos, povos indignos de ser amados.

(Sofonias, II, I)



Uma explosão violenta sacudiu a cidade. Seguiram-se outras - menores e maiores. Desnorteado, o povo corria de um lado para o outro. Alguém que se conservara calmo no meio de tanta desordem gritou:
- Não é o fim do mundo!
Eliminada a pior hipótese, surgiram novas conjeturas:
- Para um bombardeio, faltavam os aviões.
- Exercício de artilharia?
- Muito provável - apoiaram alguns, apressados em explicar o mistério.
- E os canhões? - indagaram os mais lúcidos.
Houve quem falasse de uma invasão misteriosa, para em seguida concordarem todos: D. José estava matando a esposa a dinamite.
Os populares hesitaram em aproximar-se do prédio. Após curto silêncio, vários estampidos foram ouvidos. Um vagabundo, que ainda não se emocionara com os acontecimentos, comentou:
- Será que a dinamite foi insuficiente e ele recorreu ao revólver?
Tornaram-se pálidos os rostos e, ansiosos, aguardaram o final do drama.

1 Tragédia?
Não. D. José estava experimentando fogos de artifício.
Ninguém quis confessar o desapontamento nem o gasto inútil de imaginação que, naquela meia hora de terror, fora exagerado nos espectadores.
- Não a matou desta vez, mas ela não escapará de outra. Seu ódio por dona Sofia é incontrolável!


2 D. José odiava alguém?
Calúnia! Amava a mulher, os pássaros e as árvores. Ela, sim, detestava-o, irritava-se com os animais.
Infelicidade conjugal?
Nunca! Os esposos combinavam admiravelmente bem.
Mas, entre os habitantes do lugar, não havia quem acreditasse nisso.
- Ela finge amá-lo somente pelo seu dinheiro.
Estúpidos! D. José era o homem mais pobre da cidade e tinha uma úlcera no estômago.


3 À mais leve contestação, contrapunham-se novas acusações:
- E os meninos, que choram noite adentro, famintos, espancados?
Falso! D. José perdera os filhos (cinco), vítimas da tuberculose. Agora recordava-se deles manipulando um aparelho que imitava o pranto infantil. E comovia muito mais que qualquer choro de criança.


4 D. José falava sempre de um livro que estava escrevendo. Um livro sobre duendes.
Era um fabulista?
Não. Os duendes habitavam sua própria casa, ao alcance de seus olhos.
Seria a mulher um deles?


5 Um dia encontraram-no enforcado. Disseram imediatamente:
- É só fingimento. O nó está pouco apertado.
- Vejam que cara matreira! Está zombando de nós.
Infâmia! D. José suicidara-se mesmo.
Por quê?
Todo o mundo fingiu não saber.


6 Aos que lhe tomaram a defesa, anos após a sua morte, perguntavam:
- Afinal, o que fazia esse D. José? Se não fumava, não bebia, não tinha amantes?
- Amava o povo.
- E o povo?
- Observava-o com ferocidade.


7 Mais tarde erigiram-lhe uma estátua. Com um dístico: "D. José, nobre espanhol e benfeitor da cidade".
Derradeira mentira. D. José era um pobre-diabo e não possuía nenhum título de nobreza. Chamava-se Danilo José Rodrigues.




"D. José não era", in Murilo Rubião - Obra Completa - São Paulo - Companhia das Letras, 2010.

4 comentários:

  1. siempre es un gusto para mí, venir hasta tu espacio.
    un abrazo

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  2. Obrigada...
    pelas gentilezas deixadas
    por você lá no meu blog...
    Depois de longa ausência...
    voltei...
    Beijos floridos e belos...
    Leca

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  3. Seja bem vinda, Leca...que bom que já estás de volta. Que bons ventos a tragam!

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  4. Um conto genial, procurarei mais de Rubião.
    Um abraço.

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