DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

30/01/2011

Um poema, uma entrevista com walter hugo mãe



o poeta como nu

para o pedro guimarães e para a laura machado


um dia apareceu um poeta sem pétalas,
nunca tal se vira. sem pétalas, dizia-se,
estava igual a nu, coberto de nada que o diferisse,
como se ser poeta não trouxesse marcas à
flor da pele. algumas pessoas riram-se nervosamente,
e só por isso o estranho poeta se foi
embora sem outra notícia




O escritor que não usa maiúsculas para o leitor ficar sem travões

Isabel Coutinho

Quando lhe perguntam se vive da escrita, responde que está a “morrer da escrita”. Licenciado em Direito e pós-graduado em Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea, valter hugo mãe, 36 anos, trabalhou no Centro de Estudos Regianos em Vila do Conde, foi sócio-gerente das Quasi Edições em Vila Nova de Famalicão durante anos. Criou Objecto Cardíaco, editora que faliu porque se “atrapalhou com a contabilidade.”Foi poeta antes de ter descoberto a prosa quando, em três dias, “o nosso reino”, primeiro romance que publicou em 2004, lhe começou a aparecer no computador.Por “o remorso de baltazar serapião”, segundo romance, recebeu o Prémio Literário José Saramago – Fundação Círculo de Leitores, o ano passado. Para o Nobel português, este livro foi “uma revolução”, “um tsunami, não no sentido destrutivo, mas da força.” Regressa agora. “o apocalipse dos trabalhadores” é um retrato do nosso tempo, uma história que se passa em Bragança.Nasceu em 1971, na cidade angolana Henrique de Carvalho, mas cedo veio para Portugal. Fez a escola primária em Paços de Ferreira, onde viveu antes de ir morar aos nove anos para Caxinas, zona piscatória de Vila de Conde.De vez em quando é dado a assombros de rebeldia. Na capa de um dos seus livros, “pornografia erudita”, é reproduzida uma fotografia em que aparece nu. Essa capa é posterior a “uma aventura ainda mais pirotécnica”, que foi a experiência de ser fotografado nu na Avenida da Liberdade em Braga, num domingo à tarde. “Precisava de me sentir fora de uma convenção, sentir que ainda tinha força para me reinventar.”Um dos seus amigos, Paulo Brandão, programador do Theatro Circo em Braga, fez a instalação “o teorema de valter” para uma exposição no Museu Nogueira da Silva. “Ele só pensa em coisas escatológicas, tenebrosas e substancialmente imorais. Disse-me que eu ia ser o seu objecto de arte. Pediu-me as minhas unhas, cabelos, pêlos púbicos, urina e ainda esperma. É um dos meus melhores amigos e não tive como não me sujeitar à violência.”Está a trabalhar numa exposição de artes plásticas que fará até ao final do ano e vai publicar um livro onde reúne a sua poesia. Mas nos últimos anos a relação com a prosa tornou-se tão fundamental que está “às aranhas”: muitos dos poemas nunca mais reeditará. Por estes dias, a única poesia que faz são letras para canções (para Mundo Cão, Clã, Rui Reininho, Paulo Praça).P. Como chegou à Maria da Graça e Quitéria? Estas personagens, duas mulheres-a-dias de Bragança, são a alma deste romance com título estranho, “o apocalipse dos trabalhadores”.V.H.M – Não foi por acaso que decidi chamar-lhe Maria da Graça. Ela vai vivendo uma certa desgraça, muito relativa. Faz a opção pelo erro, quando o erro é para ela o caminho da felicidade. Gosto disso na personagem.Nos meus romances preocupo-me obsessivamente com as mulheres. Compadeço-me mais facilmente com a desgraça delas. Porquê? Não sei. Talvez porque adoro a minha mãe e a seguir à minha mãe existe a minha irmã mais velha, que era a minha segunda mãe. E depois há a minha outra irmã – mais velha do que eu e do que o meu irmão -, que era a minha terceira mãe. Sou o mais novo: muito estragado por elas.Enterneço-me mais com a perdição das mulheres do que com a dos homens. As mulheres sobrevivem muito mais, lutam muito mais, resistem muito mais. Mas se tiverem de morrer fazem-no sem tanta hesitação. Isso fascina-me, seduz-me e enternece-me.
O sagrado e o profano, a vivência quotidiana da religião, a relação com Deus e o Diabo são temas do seu universo literário. E neste livro está muito presente a morte.
Tenho uma concepção estranha da morte; acho que é a nossa grande oportunidade. Se não for a morte que nos leva a algum lugar absolutamente incrível, não vai ser rigorosamente mais nada. A menos que se arranje um bilhete para os Açores, a vida é difícil.Tenho esse fascínio de saber o que acontece no momento em que desligamos a máquina. Dia sim, dia não acredito na vida depois da morte. Não consigo escapar à ponderação desse momento.
Embora tenha nascido em África, em Angola.
Só lá estive até aos dois anos e meio. Cresci como uma criança muito feliz em Paços de Ferreira. Não tenho memórias de África, a minha memória mais antiga é do 25 de Abril. De alguma forma foi o dia em que a minha cabeça nasceu.No dia 25 de Abril de 1974 o meu pai tinha uma reunião no Banco de Portugal, em Lisboa, e fizemos a viagem na estradinha antiga, demorámos muitas horas. Não se ouviu rádio, não se tomou qualquer consciência do que estaria a acontecer e quando chegámos a Lisboa a memória que tenho é de estar num parque a brincar com um miúdo loirinho, de olhos azuis, e o meu pai aparecer aos gritos a dizer: “Antónia, Antónia é uma guerra, é uma guerra!” A minha mãe pegou em mim, começamos a correr para o carro, arregalei os olhos, fiquei espantado. Ouvimos uns tiros, provavelmente alguém a matar pardais [risos]. Tenho essa memória e a da expressão que aquele miúdo dizia: “Eu cá vou para o escorrega”, “eu cá vou fazer isto”. Nunca tinha ouvido tal coisa. Fiquei com isto para a vida toda. “Eu cá…” e o meu pai a gritar “é a guerra, é a guerra” porque não percebeu nada do que se estava a passar e ouviu uns tiros.
Também já afirmou que teve uma “meninice livre”, permitida numa vila pequena como era Paços de Ferreira.
Cresci em Paços de Ferreira como uma coisa selvagem. O perigo era zero, vinha todo da nossa cabeça. Perigoso era se houvesse um buraco que não se visse e nos atirássemos lá para dentro. Às vezes sabia-se que os miúdos rachavam a cabeça e partiam as pernas, mas os perigos eram estes. Eram nossos, ninguém nos faria mal. Cresci assim, muito na terra, em cima das árvores e a subir aos castelos de madeira. Já havia muitos madeireiros e muitas fábricas de móveis. A madeira fica empilhada e saltávamos de uns para os outros. Tive uma sorte danada por nunca me ter estropiado. Os meus amigos têm cicatrizes incríveis, uma lojinha de horrores.
Foi aí que frequentou a escola primária.
Não queria lá entrar porque o meu irmão me dizia que batiam muito. Cada um tem que procurar as suas invisibilidades.
Mas, mais tarde, as maiúsculas desapareceram dos seus textos.
A dada altura percebi que as minúsculas ligam o texto, aceleram-no, precipitam o leitor. As vírgulas ficam menos virguladas e os pontos menos pontuados. Então as pausas tendem a ser mais breves. Há uma aceleração que se junta a uma certa urgência da história. O leitor fica sem travões.
Tem tido reacções de leitores? Dificulta-lhes a leitura?
Ao que sei, no início, a primeira reacção é um choque. As pessoas ficam aflitas, não sabem onde parar, não percebem onde a frase acabou. Mas o leitor menos preguiçoso habitua-se ao fim de quatro páginas e consegue deslizar. Consegue seguir naquela leitura com menos travões com alguma destreza. Fico contente quando percebem que este tipo de pontuação os leva mais rápido ao fim da história.
Como começou a arquitectar este romance?
Pelo Andriy [personagem] que vem para Portugal para voltar mais tarde para a Ucrânia rico – uma das ideias mais perversas deste livro. A primeira pulsão teve que ver com xenofobia. Estava com o meu círculo de amigos no café e achei que éramos aborrecidamente convencionais: todos brancos, com uma família portuguesa normalíssima, sem nenhuma mega-desgraça e nenhum brilho especial; não temos nenhum amigo africano, nem transexual, somos chatos de tão normais. Nessa altura entraram uns ucranianos no café e decidimos incluir no nosso grupo alguém que viesse de fora. Precisávamos de gente que nos trouxesse experiências diferentes e nos obrigasse a pensar e a ver as coisas de outra forma. Na altura pensei: precisamos destes ucranianos até ao tutano. É urgente sabermos quem são, de onde vêm e se gostam de aqui estar. Então atirei-me violentamente a eles.
Quem são eles?
Trabalham em Vila do Conde nas obras ou fazem limpezas. Muitos têm cursos superiores. Foi uma excelente conquista ter aquelas pessoas como amigas. Quando um deles finalmente me conseguiu explicar a expressão Grande Fome da Ucrânia – não conseguia formulá-la assim, dizia que era “muita fome ucraniana” -, fui pesquisar e percebi que todo o século XX da Ucrânia é atravessado por um enfraquecimento psicológico e físico das pessoas, que tem que ver com o facto de terem morrido milhões à fome e poucos anos depois na Segunda Guerra Mundial morreram ainda mais. Diziam-me que um ucraniano quando foge de alguma coisa foge da fome, mesmo que coma. Porque o medo de voltar a passar fome é uma coisa das novas gerações ainda. É impressionante.Tentei fazer alguns paralelos e não temos nada assim. Poderíamos sentir a necessidade da liberdade porque alcançámo-la apenas em 1974. Mas as novas gerações estão a leste do 25 de Abril. Foram essas coisas que me convenceram que precisava de ter uma personagem ucraniana no livro e de combater a nossa pequena xenofobia de estarmos todos os dias sentados com as mesmas pessoas e não nos disponibilizávamos a um esforço mínimo de chegar ao espaço do outro.
O seu percurso é singular: publicou vários livros de poesia, está traduzido no estrangeiro. Durante anos fugiu da prosa mas foi através dela que encontrou o seu lugar na nova geração de escritores portugueses.
Há quem não goste nada da minha poesia. A prosa veio ao meu encontro, eu não estava à procura. Era tão reaccionário que quando fiz a pós-graduação com o professor Luís Adriano Carlos eu dizia nas aulas: “Abaixo a prosa! Os prosadores são todos uns chatos. Contar historinhas? As historinhas estão todas na Bíblia. A mim interessa-me é o trabalho da linguagem, a força das expressões, a poesia e os poetas é que são.”Por causa dessa pós-graduação, que deviria ter sido um mestrado, tranquei-me em casa e estive dias a vegetar em frente ao computador.Ao fim de dois dias, um domingo, completamente moído do cérebro, prestes a entrar numa depressão e a telefonar ao professor a dizer “não vou fazer mestrado, não consigo escrever uma linha sobre isto estou sem cabeça”, vi subitamente no ecrã do computador um documento que dizia “era o homem”. Abri e tinha uma única frase: “era o homem mais triste do mundo.” [Primeira frase do seu primeiro romance: "era o homem mais triste do mundo, como numa lenda, diziam dele as pessoas da terra, impressionadas com a sua expressão e com o modo como partia as pedras na cabeça e abria bichos com os dentes tão caninos da fome."] Não sei se foi a ligação mágica ao que eu estava a sentir, a minha vida ali parada, prossegui aquela frase até às 52 páginas escritas. Fui levado pela mão por aquele texto. Acabei “o nosso reino” e fiquei tão obcecado que imediatamente comecei a escrever “o remorso de baltazar serapião”.
Como chegou depois este manuscrito à sua editora, Maria do Rosário Pedreira?
Fiquei indefeso perante aquilo. Não conseguia discernir, não sabia o que aquilo era. Tinha conhecido o editor João Rodrigues que na altura estava na Ambar e gostei tanto dele que queria que ele editasse o meu livro. Mas não tinha lata de lhe aparecer assim a pedir para me editar o livro. Escrevi então uma carta à Maria do Rosário Pedreira, minha amiga, a explicar-lhe que embora quisesse que ela lesse, o romance era para ele. Precisava de ter a certeza de que não estaria a incomodá-lo se lhe mandasse o livro.Ela recebeu o livro numa sexta, vim a Lisboa na terça ver a Adriana Calcanhoto, ela disse que queria jantar comigo e disse-me: “Já li o teu romance e o romance é meu.” Como assim?, perguntei. “Não vou dar este romance a ninguém. Desculpa, podes adorar o João Rodrigues, o que quiseres, mas este romance é meu!”Garantidamente foi um dos dias mais felizes da minha vida. Entrei numa dimensão da qual não quero sair. A hipótese de fantasiar ainda mais a minha vida foi-me permitida pela prosa.


Trechos de uma entrevista concedida a Isabel Coutinho do blog ciberescritas, em 2008.

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