DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

15/09/2011

Por um novo olhar sobre a obra de Arthur Bispo do Rosário

Uma apresentação de Bispo do Rosário









"Vaso sanitário"






"Roda da fortuna"












Arthur Bispo do Rosário nasceu em Japaratuba(SE), em 1909 e faleceu no Rio de Janeiro, em 1989. Considerado louco por alguns e gênio por outros, era descendente de escravos africanos. Trabalhou durante algum tempo na marinha e posteriormente como empregado doméstico de uma tradicional família carioca, de onde saiu uma noite dizendo ir apresentar-se na Igreja da Candelária. Para lá não mais voltou, acabando por ser detido e fichado pela polícia como negro, sem documentos, e conduzido ao Hospício Pedro II (onde também foi internado Lima Barreto). Dalí foi transferido para a Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, sob o dignóstico de "esquisofrênico-paranóide", permanecendo naquela instituição por mais de 50 anos, onde aliás, veio a falecer. Sua obra é constituída de 804 peças todas a partir de objetos que usava no seu dia-a-dia ou que encontrava na própria Colônia, ou ganhava de outros internos. São canecas, chapéus, peças musicais, de arquitetura, pandeiros, roda de bicicleta e até um batedor de ovos. Não têm data nem assinatura. Seu trabalho já participou da 46ª Bienal de Veneza, possui trabalhos expostos em Valência (Espanha) e a partir desse mês de setembro ganhará uma exposição individual em Lyon (França) e em Bruxelas (Bélgica).

Já foi comparado a Marcel Duchamp e a Van Gogh. Extraí um trecho de um artigo escrito por Alfredo Braga, em 2001, porque achei bastante interessante e elucidativo:

"Machado de Assis, o Shakespeare dos Trópicos.

Portinari, o Picasso de Brodovski.

Flávio de Carvalho, o Francis Picabia brasileiro.

Bispo do Rosário, o nosso Van Gogh.

É admirável que esse triste mecanismo de justificação da vida e da obra dos artistas nacionais, ainda pretenda ser uma forma de Elogio.
Mais do que uma aproximação razoável, percebe-se nesse provinciano jogo, um aflito gesto de compensação; e essas disparatadas comparações fazem parte do nosso dia-a-dia; haja vista para algumas longas elucubrações sobre arte e artistas, em cadernos especiais de jornais e revistas, e em certas monografias e teses universitárias.
Por outro lado, há alguns anos tenho reparado que quando algum crítico, historiador, ou "curador", vem falar de Arthur Bispo do Rosário, en passant, como quem não quer nada, inclui, sempre de viés, e sem se comprometer, alguma alusão à obra de Marcel Duchamp, mas nunca afirma ou nega coisa alguma.
É claro que a simples justaposição das fotografias da Roda da Fortuna, de Bispo do Rosário, e da Roda de Bicicleta, de Marcel Duchamp, não autoriza ninguém a teorizar sobre semelhanças, nem sobre coincidências significativas, ou arquétipos, ou inconsciente coletivo. Mas, talvez nas enormes distâncias entre esses dois artistas é que repouse uma esquisita proximidade que vai provocar, naqueles eruditos, o susto, e disparar o paralisante pudor acadêmico1.
É cada vez mais evidente que os temas, ou os assuntos das obras desses dois artistas, são os mesmos, como os Moinhos e os Trituradores, e mesmo quando os títulos aparentemente as afastam, a forma, ou o formato das obras, volta a aproximá-las; por exemplo: os Moldes Málicos, de Duchamp, e As Faixas e Cetros em Homenagem às Misses, ou os O.R.F.A., de Bispo do Rosário, ou A Noiva Despida pelos Seus Celibatários, mesmo, ou A Cama de Romeu e Julieta.
Mas, de um outro modo, e como razoável explicação das exageradas coincidências, e dos temas e procedimentos recorrentes em ambos os artistas, o Prof. Luis Camilo Ozório2, neste caso, descrendo da possibilidade de uma matriz, ou fonte comum, como, por exemplo, a do inconsciente coletivo à maneira de Jung, ponderou que Arthur Bispo do Rosário apenas teria folheado alguma reportagem sobre Marcel Duchamp em revistas da época, e se impressionado, a ponto de incorporar aqueles motivos e posturas artísticas à sua obra em processo.
Agora já não é importante amealhar argumentos para sustentar uma ou outra hipótese: ambas são absolutamente prováveis, e apenas o prazer da polêmica faria pender para este ou para aquele lado a orientação dos raciocínios. Então, uma comparação entre os dois artistas não postula a justificação de Arthur Bispo do Rosário, mas procura outra compreensão não contaminada por simplificações decorrentes da sua condição de interno em um hospício para alienados; naquela época e naquela cidade, outras pessoas eventualmente estressadas por qualquer circunstância, naquelas condições socioeconômicas, estariam sujeitas ao mesmo diagnóstico e tratamento, mas dificilmente nos proporcionariam semelhante produção artística.
Arthur Bispo do Rosário não é "o nosso Duchamp" e muito menos "o nosso Van Gogh", mas olhando com atenção para a obra de Duchamp, vamos compreender melhor a de Bispo do Rosário, pois, apesar dos sotaques, ambos conversam no mesmo registro, falam do mesmo modo e dos mesmos assuntos.
A diferença de importância ou de qualidade entre as duas obras, só está na enorme diferença com que cada uma foi abordada e estudada.[...]"

14 comentários:

  1. Há muitos anos atrás vi uma retrospectiva do Bispo do Rosário no MAM aqui do Rio. Fiquei absolutamente pasmo e fascinado. Era uma experiência para desestabilizar certos conceitos cômodos sobre a natureza da arte e evidenciar os estranhos caminhos pelos quais a cultura, no sentido de "oficial", se apropria e racionaliza essa coisa instável que chamamos arte.
    Pelo meu modo de ver, Duchamp e Bispo são muito diferentes, mas são, por outro lado, exemplo cabal de como motivações diferentes podem produzir coisas formalmente semelhantes. É uma coincidência que pode ser debitada na conta da ambiguidade dos signos, de sua polivalência dentro da linguagem? Duchamp era um artista saturado de conceitos de arte, suas premissas eram intelectuais. Bispo provavelmente nem se tomava por artista, e suas premissas eram de uma desconcertante metafísica. Duchamp jamais faria um Manto da Apresentação, mas Bispo provavelmente recolheria um pouco do ar de Paris para dar conta dele a Deus. Duchamp troçava provocativamente do conceito de arte; Bispo não poderia duvidar da eficiência de sua linguagem.
    Porém, algo parece certo: sem o francês, sem sua precedência, a obra do brasileiro provocaria pasmo, surpresa, perquirições de toda natureza, mas não seria tão rapidamente definida como arte. Duchamp e o Dadaísmo é que criaram essa ambiência cultural, sem a qual também não seria possível a existência artística de um Beuys, de um Piero Manzoni, etc.
    A argumentação de que Bispo teria visto algo sobre Duchamp parece totalmente improvável. É ideia de quem parte do ponto B para chegar ao A.
    Agora, salve Bispo do Rosário! A obra dele é para demonstrar as livres relações entre arte e vida, para existir distante da academia, e não para ser cooptada por ela em sua sanha classificatória.
    Com relação a esse hábito de relacionar os artistas nacionais com os estrangeiros, deve-se reconhecer que isso não é exclusivo da gente. É visível em vários momentos da história e muitas vezes entre personagens da mesma nacionalidade, tanto para exaltar como para depreciar. Outra dessas estranhas características da cultura classificatória.

    É ótimo mostrar obras do Bispo.

    Um beijo.

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  2. Concordo inteiramente contigo, Marcantonio, e teu comentário (como sempre!)é mais um acréscimo
    valioso para essa postagem. Obrigada, viu?

    um beijo

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  3. Fantástico e importante resgate cultural, amiga!
    Bispo do Rosário não era louco, era gênio. Aliás, qual o limite entre uma coisa e outra.
    Gostei profundamente, Ci!
    Um belíssimo final de semana!
    Beijos!!!

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  4. As imagens são incríveis, mas a do vaso sanitário excede em arte. Minha opinião, né?
    Tchau!

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  5. Van querida, que bom vires até aqui :)
    Temos tantos talentos por esse nosso Brasil que são marginalizados, não é?
    Também achei bastante fora do comum
    o vaso sanitário, embora o trabalho dele como um todo seja muito original! Era mesmo um Artista Puro!

    um beijo

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  6. Obrigada pela generosidade do teu comentário, minha querida.
    Veio-me à memória José Emídio, paciente da Dra. Nise da Silveira (grande psicanalista e mulher), cujo trabalho causou "assombro" aos especialistas e atrai até hoje muitos apreciadores das artes. Precisamos relembrar essa pioneira que incentivava seus pacientes e descobria neles seus mais secretos pendores artísticos. Fica provado assim que fazer arte é mais que um deleite estético, é fator decisivo de cura nas doenças mentais. Uma curiosidade histórica: Nise foi a única brasileira a encontrar-se, pessoalmente, com Jung quando da vinda deste ao Brasil.
    O comentário do Marcantonio está irretocável, hein? Acho que vou lá só para parabenizá-lo. Esse rapaz sabe mesmo o que diz, enquanto eu...bem, eu "engano" [risos].
    Encontraste poesia naquilo que garatujei? Nossa, senti-me até uma Rimbaud de saias, por Deus!
    Deixa eu ver o Marcantonio, hoje estou com apetite para aprender com meus mestres da blogosfera, nunca é tarde, né?
    Te adoro, Ci!

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  7. Nunca tinha ouvido falar de Bispo do Rosário, confesso. Ora aqui está uma das virtudes da partilha da blogosfera.
    Obrigado, Ci!

    Beijo :)

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  8. Que bom, não é, AC? E assim o mundo ~vai se tornando cada vez
    menor, mas mais abrangente!!

    um beijo

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  9. Cirandeira, aqui na Bahia, em Salvador, o ator João Miguel, que está no elenco de Cordel Encantado como Bel,montou um espetáculo belíssimo, um monólogo em torno da vida e da obra de Bispo. Saíamos do espetáculo fascinados com a intensidade das suas palavras, da sua obra e impactados com a força do ator e da sua personagem que se misturavam de forma mágica ou cármica. Marcantonio, Marcoantonio! Que aula pictórica, saborosa, sábia! beijos, minha Cirandeira-Antena ou Atena?

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  10. Ritoca, se me fosse dado uma opção
    pra escolher uma outra forma pra
    viver aqui na terra, acho que escolheria uma antena parabólica!:)
    que tal? Me conectaria com o mundo inteiro!!!

    um beijo

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  11. Mas menina... que post mais interessante esse seu!

    Infelizmente, a arte no Brasil ainda precisa de muito para ser devidamente reconhecida. Se as coisas são difíceis nas capitais (e o circuito brasileiro é um tanto restrito), imagine no interior do país, em cidades pequenas, onde o incentivo cultural se limita ao patrocínio de festas, que mais valem como caça-votos! Raras são as cidades que tem uma secretaria voltada exclusivamente para cultura.

    Resta ao artista acreditar na sorte e competir com outros tantos através de editais que surgem (e não são tantos assim para contemplar os tantos artistas que estão atuando) ou rezar por um acaso divino e ser acertado por um raio. E se é assim hoje aqui pra nós, imagino o quão difícil foi Arthur Bispo do Rosário!

    Como sempre, nota 1000 seu post! Bjão!

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  12. Eu já tive oportunidade de assitir a exposições com peças dele: uma vez aqui em Brasília, outra, em Curitiba. Fiquei embasbacada! De louco, tinha pouca coisa...

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  13. Maria, independente de Bispo do Rosário ser ou não louco (e todos nós temos uma parcela de loucura!),
    o fato é que ele era um artista muito criativo e original, não é mesmo?
    Seja muito bem-vinda, e obrigada pela visita!

    um abraço

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  14. Pois é, Edu. Tudo é mesmo muito difícil, principalmente nas cidades do interior, que considero um verdadeiro celeiro de talentos que é desperdiçado; muitos deles são considerados "loucos", vítimas
    da ignorância ou até mesmo da má fé das elites, que não têm o menor interesse em incentivar a arte, muito pelo contrário! Bispo do Rosário não tinha a menor preocupação para ser chamado de "artista", ele fazia o seu trabalho porque era de sua natureza, fruto de seu talento que brotava, creio, à sua revelia!
    Obrigada pelas palavras generosas, viu?

    beiJÃO

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