DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

30/11/2011

Da visão dos olhos





Os olhos, por enquanto, são a porta do engano; duvide deles, dos seus, não de mim. Ah, meu amigo, a espécie humana peleja para impor ao latejante mundo um pouco de rotina e lógica, mas algo ou alguém de tudo faz frincha para rir-se da gente... E então?
Note que meus reparos limitam-se ao capítulo dos espelhos planos, de uso comum. E os demais - côncavos, convexos, parabólicos - além da possibilidade de outros, não descobertos, apenas, ainda?
[...........................] Tirésias, contudo, já havia predito ao belo Narciso que ele viveria apenas enquanto a si mesmo não se visse... Sim, são para se ter medo, os espelhos.

João Guimarães Rosa, O Espelho, em Primeiras Estórias.

29/11/2011

Um texto de Mia Couto






MURAR O MEDO

O medo foi um dos meus primeiros mestres. Antes de ganhar confiança em celestiais criaturas, aprendi a temer monstros, fantasmas e demônios. Os anjos, quando chegaram, já era para me guardarem, os anjos atuavam como uma espécie de agentes de segurança privada das almas. Nem sempre os que me protegiam sabiam da diferença entre sentimento e realidade. Isso acontecia, por exemplo, quando me ensinavam a recear os desconhecidos. Na realidade, a maior parte da violência contra as crianças sempre foi praticada não por estranhos, mas por parentes e conhecidos. Os fantasmas que serviam na minha infância reproduziam esse velho engano de que estamos mais seguros em ambientes que reconhecemos. Os meus anjos da guarda tinham a ingenuidade de acreditar que eu estaria mais protegido apenas por não me aventurar para além da fronteira da minha língua, da minha cultura, do meu território. O medo foi, afinal, o mestre que mais me fez desaprender. Quando deixei a minha casa natal, uma invisível mão roubava-me a coragem de viver e a audácia de ser eu mesmo. No horizonte vislumbravam-se mais muros do que estradas. Nessa altura, algo me sugeria o seguinte: que há neste mundo mais medo de coisas más do que coisas más propriamente ditas.
No Moçambique colonial em que nasci e cresci, a narrativa do medo tinha um invejável casting internacional: os chineses que comiam crianças, os chamados terroristas que lutavam pela independência do país, e um ateu barbudo com um nome alemão. Esses fantasmas tiveram o fim de todos os fantasmas: morreram quando morreu o medo. Os chineses abriram restaurantes junto à nossa porta, os ditos terroristas são governantes respeitáveis e Karl Marx, o ateu barbudo, é um simpático avô que não deixou descendência. O preço dessa narrativa de terror foi, no entanto, trágico para o continente africano. Em nome da luta contra o comunismo cometeram-se as mais indizíveis barbaridades.
Em nome da segurança mundial foram colocados e conservados no Poder alguns dos ditadores mais sanguinários de toda a história. A mais grave herança dessa longa intervenção externa é a facilidade com que as elites africanas continuam a culpar os outros pelos seus próprios fracassos. A Guerra-Fria esfriou mas o maniqueísmo que a sustinha não desarmou, inventando rapidamente outras geografias do medo, a Oriente e a Ocidente.
Para responder às novas entidades demoníacas não bastam os seculares meios de governação. Precisamos de investimento divino, precisamos de intervenção de poderes que estão para além da força humana. O que era ideologia passou a ser crença, o que era política tornou-se religião, o que era religião passou a ser estratégia de poder. Para fabricar armas é preciso fabricar inimigos. Para produzir inimigos é imperioso sustentar fantasmas. A manutenção desse alvoroço requer um dispendioso aparato e um batalhão de especialistas que, em segredo, tomam decisões em nosso nome. Eis o que nos dizem: para superarmos as ameaças domésticas precisamos de mais polícia, mais prisões, mais segurança privada e menos privacidade.
Para enfrentarmos as ameaças globais precisamos de mais exércitos, mais serviços secretos e a suspensão temporária da nossa cidadania. Todos sabemos que o caminho verdadeiro tem que ser outro. Todos sabemos que esse outro caminho começaria pelo desejo de conhecermos melhor esses que, de um e do outro lado, aprendemos a chamar de “eles”. Aos adversários políticos e militares, juntam-se agora o clima, a demografia e as epidemias. O sentimento que se criou é o seguinte: a realidade é perigosa, a natureza é traiçoeira e a humanidade é imprevisível. Vivemos – como cidadãos e como espécie – em permanente limiar de emergência. Como em qualquer estado de sítio, as liberdades individuais devem ser contidas, a privacidade pode ser invadida e a racionalidade deve ser suspensa.
Todas estas restrições servem para que não sejam feitas perguntas incomodas como estas: porque motivo a crise financeira não atingiu a indústria de armamento? Porque motivo se gastou, apenas o ano passado, um trilhão e meio de dólares com armamento militar? Porque razão os que hoje tentam proteger os civis na Líbia, são exatamente os que mais armas venderam ao regime do coronel Kadaffi? Porque motivo se realizam mais seminários sobre segurança do que sobre justiça? Se queremos resolver (e não apenas discutir) a segurança mundial – teremos que enfrentar ameaças bem reais e urgentes.
Há uma arma de destruição massiva que está sendo usada todos os dias, em todo o mundo, sem que seja preciso o pretexto da guerra. Essa arma chama-se fome. Em pleno século 21, um em cada seis seres humanos passa fome. O custo para superar a fome mundial seria uma fração muito pequena do que se gasta em armamento. A fome será, sem dúvida, a maior causa de insegurança do nosso tempo. Mencionarei ainda outra silenciada violência: em todo o mundo, uma em cada três mulheres foi ou será vítima de violência física ou sexual durante o seu tempo de vida. É verdade que sobre uma grande parte de nosso planeta pesa uma condenação antecipada pelo fato simples de serem mulheres. A nossa indignação, porém, é bem menor que o medo.
Sem darmos conta, fomos convertidos em soldados de um exército sem nome, e como militares sem farda deixamos de questionar. Deixamos de fazer perguntas e de discutir razões. As questões de ética são esquecidas porque está provada a barbaridade dos outros. E porque estamos em guerra, não temos que fazer prova de coerência, nem de ética e nem de legalidade. É sintomático que a única construção humana que pode ser vista do espaço seja uma muralha. A chamada Grande Muralha foi erguida para proteger a China das guerras e das invasões. A Muralha não evitou conflitos nem parou os invasores. Possivelmente, morreram mais chineses construindo a Muralha do que vítimas das invasões que realmente aconteceram. Diz-se que alguns dos trabalhadores que morreram foram emparedados na sua própria construção. Esses corpos convertidos em muro e pedra são uma metáfora de quanto o medo nos pode aprisionar. Há muros que separam nações, há muros que dividem pobres e ricos. Mas não há hoje no mundo, muro que separe os que têm medo dos que não têm medo. Sob as mesmas nuvens cinzentas vivemos todos nós do sul e do norte, do ocidente e do oriente. Eduardo Galeano escreveu sobre o medo global: “Os que trabalham têm medo de perder o trabalho. Os que não trabalham têm medo de nunca encontrar trabalho. Quando não têm medo da fome, têm medo da comida. Os civis têm medo dos militares, os militares têm medo da falta de armas, as armas têm medo da falta de guerras. E, se calhar, acrescento agora eu, há quem tenha medo que o medo acabe!

28/11/2011

A Lentidão

Frida Kahlo

Por que o prazer da lentidão desapareceu? Ah, para onde foram aqueles que antigamente gostavam de flanar? Onde estão eles, aqueles heróis preguiçosos das canções populares, aqueles vagabundos que vagavem de moínho em moínho e dormiam sob as estrelas? Será que desapareceram junto com as veredas campestres, os prados e as clareiras, com a natureza? (...) Em nosso mundo, a ociosidade transformou-se em desocupação, o que é uma coisa inteiramente diferente; o desocupado fica frustrado, se aborrece, está constantemente à procura do movimento que lhe falta.

{....}

Na linguagem corrente, a noção de hedonismo designa uma inclinação amoral para uma vida voltada para o prazer, até mesmo para o vício. Certamente a noção é inexata. Epicuro, o primeiro grande teórico do prazer, entendeu a vida feliz de um modo extremamente cético: sente prazer aquele que não sofre. É o sofrimento, portanto, que é a noção fundamental do hedonismo: somos felizes na medida em que sabemos afastar o sofrimento; e como os prazeres trazem muitas vezes mais infelicidade do que felicidade, Epicuro não recomenda senão os prazeres modestos e prudentes. A sabedoria epicurista tem um fundo melancólico: atirado à miséria do mundo, o homem constata que o único valor evidente e seguro é o prazer, mesmo pequeno, que ele próprio pode sentir: um gole de água fresca, um olhar para o céu, uma carícia.

Milan Kundera, República Tcheca, 1929.

25/11/2011

Graciliano Ramos

Foto: Evandro Teixeira

Falo somente com o que falo:

com as mesmas vinte palavras

girando ao redor do sol

que as limpa do que não é faca;

de toda uma crosta viscosa,

resto de janta abaianada,

que fica na lâmina e cega

seu gosto da cicatriz clara.

* * *

Falo somente do que falo:

do seco e de suas paisagens,

Nordestes, debaixo de um sol

alí do mais quente vinagre;

que reduz tudo ao espinhaço,

crosta e simplesmente folhagem,

folha prolixa, folharada,

onde possa esconder-se a fraude.

* * *

Falo somente por quem falo:

por quem existe nesses climas

condicionados pelo sol,

pelo gavião e outras rapinas;

e onde estão os solos inertes

de tantas condições caatinga

em que só cabe cultivar

o que é sinônimo da míngua.

* * *

Falo somente para quem falo:

quem padece sono de morto

e precisa um despertador

acre, como o sol sobre o olho;

que é quando o sol é estridente,

a contra-pelo, imperioso,

e bate numa porta a socos.

João Cabral de Melo Neto, em Poesias Completas - Editora Sabiá.

22/11/2011

Diálogos com Borges - II

Borges, de Carlinhos Muller
Sobre a metáfora

Osvaldo Ferrari - pelo fato de o sr. divergir da visão que outros autores têm dela, gostaria de saber qual é sua ideia sobre a metáfora na literatura.
Sim, eu comecei, digamos, professando o culto à metáfora que Leopoldo Lugones tinha nos ensinado. Que curioso, toda essa geração que se chamou ultraísta falou contra Lugones e, no entanto, Lugones estava sempre presente para nós.(...) Todos nós professávamos essa estética, a estética da metáfora. Agora, no prólogo de "Lunário sentimental" Lugones afirma que o idioma é feito de metáforas, uma vez que toda palavra abstrata é uma metáfora, começando pela própria palavra "metáfora", que, se não me engano, significa translação, em grego.
Bom, e paralelamente, Emerson disse que a linguagem era poesia fóssil, mas cabe observar que, para nos entendermos, convém esquecer a etimologia das palavras. Ortega y Gasset disse que, para entender algo, devíamos entender a etimologia, e eu diria, na verdade, que para nos entendermos convém esquecer a etimologia das palavras. Um exemplo disso seria a palavra "estilo"; o estilo era uma espécie de lâmina com que escreviam os antigos, acho que na cera. Mas se agora eu falo de estilo barroco, não é conveniente passar na lâmina, ou que barroco é um dos nomes do silogismo, porque se eu penso uma lâmina comparável a um silogismo, evidentemente me afasto do conceito de estilo.
O. F. - Agora, no caso da etimologia latina da palavra metáfora, o senhor deve lembrar: meta- fero (além da meta). Isso é significativo porque, como observa Murena, levar algo para além da meta implicaria que algo está sendo levado para além do propósito da pessoa que tentou fazê-lo.
Nesse caso seria um acerto, pois eu penso que se o que escrevemos expressa exatamente o que queremos, isso perde valor, convém ir além. E é isso que acontece com todo livro antigo: o lemos para mais além da sua intenção. E a literatura consiste não em escrever exatamente o que nos propomos, mas em escrever misteriosa e profeticamente alguma coisa, para além do propósito circunstancial.
O. F. - No caso da metáfora, inevitavelmente, lembramos de Platão. Em "O banquete", Alcebíades diz: "Farei o elogio de Sócrates mediante comparações, porque a finalidade da comparação é a verdade."
Bom, concordo absolutamente com Alcebíades. Além do mais, não podemos nos expressar de outra forma, e por outro lado, o que se diz indiretamente possui mais força do que o que se diz diretamente. Não sei se já falamos alguma vez disso, mas se eu digo "fulano morreu", estou dizendo algo concreto, mas se utilizo uma metáfora bíblica e digo " fulano dorme com seus ancestrais", é mais eficaz. Além disso, aí se indica de forma indireta que todos os homens morrem e voltam com seus ancestrais, ou, como se diz em inglês, que é menos belo, "join the majority", fulano se junta à maioria. E como há mais mortos que vivos, isso quer dizer que morreu, já que os que vivemos somos uma minoria e uma minoria provisória.
(...)
O. F. - No plano literário, o senhor afirmou que talvez bastasse um único verso sem metáfora para refutar a teoria de que a metáfora é um elemento essencial.
Sim, e sem dúvida já falei da poesia japonesa, que ignora a metáfora, e talvez seja fácil encontrar exemplos de versos sem metáfora, salvo se pensarmos que toda palavra é uma metáfora, mas eu penso que não, digamos, se ouvimos ou pronunciamos a frase "via láctea", é melhor não pensarmos num caminho de leite, eu acho. Mauthner comenta que os chineses chamam a via láctea de "ruído de prata", e diz que nos parece poético, e sem dúvida, um chinês deve achar poético que se fale de via láctea, do caminho de leite para designar galáxia. Galáxia é via láctea em grego.
O. F. - Creio que o senhor já disse que, na Grécia, Aristóteles funda a metáfora sobre as coisas e não sobre a linguagem.
Acho que ele diz que uma pessoa que percebe afinidades pode forjar sua própria metáfora, quem percebe afinidades que não se notam imediatamente. E a metáfora consistiria em expressar os vínculos secretos entre as coisas.
(........)
O. F. - Mas é curioso que o senhor, apesar de sua condição de poeta, que parece vinculá-lo naturalmente à metáfora, não tenha concordado com Lugones ou com o ultraísmo em sua valorização...
Mas eu não sei se Lugones foi sempre fiel a essa ideia. Lugones sabia que a cadência, que a música da linguagem é muito importante, deve ter sabido disso. Não sei se já citei os versos de Lugones que dizem:
O jardim com seus íntimos retiros
dará a teu alado sonho fácil jaula.
Bom, isso poderia ser reduzido a uma espécie de equação dizendo: "O sonho é um pássaro cuja jaula é o jardim", mas, dito dessa forma a poesia se evapora.
O. F. - Se dissolve...
Desaparece, de modo que aí, ainda que haja uma metáfora, e uma metáfora talvez nova, embora não muito interessante, sentimos imediatamente que a poesia radica na cadência. E, sobretudo, "dará a teu alado sonho fácil jaula" age imediatamente, sentimos isso como poesia. E depois podemos justificar isso logicamente, dizendo que o sonho é uma ave, e que a jaula do sonho é o jardim, mas justificá-la dessa forma é quase destruí-la de fato.
O. F. - Sim, essa justificativa é alheia à poesia.
É alheia à poesia... No geral, penso que sentimos a beleza de uma frase, e depois, se quisermos, podemos justificá-la ou não. Mas, ao mesmo tempo, é necessário sentirmos que essa frase não é arbitrária.
O. F. - Que de algum modo a justificativa está implícita.
Sim, de algum modo, embora não o saibamos.

Extraído de "Sobre a amizade e outros diálogos" - Editora Hedra Ltda.

20/11/2011

Almirante Negro

Uma homenagem ao Dia da Consciência Negra!






A revolta da chibata
Pôs um ponto final no convés
É o revés de uma história
Que venceu os coronéis
João Candido Felisberto
O almirante negro
Enfrentou os marechais
Conquistou em sua armada
O comando do “Minas Gerais”
Os marujos conspirados
Revoltados pelos castigos aplicados
Acenderam o estopim pra este motim
Não queriam mais ser tratados como escravos
O clarim pediu combate
No silêncio pôs um fim
E a Guanabara enquadrada
Rendeu-se a sua esquadra
Mas depois de tudo resolvido
Este pobre marinheiro negro
Foi detido com os demais companheiros
Sendo banido da marinha
Viveu o seu conflito pessoal
Mas como tal...
Jamais será esquecido
“Almirante Negro”
O herói nacional.

A Revolta da Chibata não pode ser esquecida, a lembrança de João Cândido, o “Almirante Negro” deve perpetuar por toda história. Esse marinheiro gaúcho, nascido em 24 de janeiro de 1880, demonstrou mais uma vez a coragem herdada dos seus descendentes negros. Morreu aos 89 anos mas, deixou um legado de luta como exemplo para todos os negros e afros-decendentes do Brasil. Eis mais um testemunho de sangue derramado, por um ideal de transformação. Continuemos na luta!

Cesar Moura - Taubaté (SP)

19/11/2011

A vertigem do tempo

Foto: Louis Lumière, 1904
No verão de 1965, um velho senhor mergulhava, todas as manhãs, no mar de um balneário próximo a Nice, na França. Os frequentadores da praia diziam que era um homem rabugento, pois não falava com ninguém, ignorava o mundo. "Ora, deixem-no em paz!", defendia-o o dono do botequim praiano. "Durante toda a sua vida o aborreceram. Agora, ele tem o direito de descansar."
As crianças se intrigavam porque, entre um mergulho e outro, o velho tinha o hábito de desenhar, na areia molhada, riscos enigmáticos, nunca figuras. Ele passava longas horas em uma pequena cabana, erguida no rochedo. Parecia perdido e estranho. Em uma manhã escaldante, o velho senhor deu seu mergulho matinal e não foi mais visto. Nunca mais. O inquérito policial falou em "afogamento", quando seu destino se parecia mais com uma escolha. No dia seguinte, os jornais estampavam: "Morre Le Corbusier".
O triste fecho para a vida do arquiteto genial contradiz todo o seu passado de glórias. Durante seus 68 anos de vida, Le Corbusier parecia imortal. A consagração era asfixiante. Apesar dela, a chegada dos anos o transformou em um velho qualquer. Será que ele contava com isso? Uma frase de Louis-Ferdinand Céline, escrita também na velhice, sintetiza esse destino incongruente: "Não passamos de um velho poste de lembranças em uma esquina que quase ninguém mais cruza".
Para o autor autor, a velhice, é uma espécie de arma enfurecida, que fulmina, indistintamente, tudo e todos. Não faz escolhas, faz vítimas.
A triste história de Le Corbusier é só um dos capítulos de "Eles se Acreditavam Ilustres e Imortais...", coletânea de ensaios breves sobre a velhice incoerente de artistas famosos. O livro é assinado por Michel Ragon. Doloroso paradoxo: quanta glória e quanta tristeza! A velhice, nos mostra Ragon, é uma espécie de arma enfurecida, que fulmina, indistintamente, tudo e todos. Não faz escolhas, faz vítimas. Não tem moral, ou gosto, tampouco bons sentimentos - tem fome.
Lembra Ragon que um dia, já velho e doente, Charles Chaplin chegou, amparado pela filha Geraldine, a um vernissage na Suíça. "Ninguém reconhecia nem se importava com o ancião de cadeira de rodas que Carlitos se tornara", relata. Atordoado não pelo assédio, mas pelo desprezo, Chaplin teria dito a Geraldine: "Sabe, eu também era conhecido antigamente". Velhices, o autor nos lembra, são sempre inverossímeis. Desmentem, sem pudor ou delicadeza, toda a vida que a antecedeu. Nem todos os artistas conseguem, apesar da dor e fraqueza, conservar a dignidade. Muitos sucumbem - como corpos que devorassem a si mesmos.
Para montar sua coleção de retratos, Ragon partiu de um princípio: "Todos tiveram uma velhice trágica, com esquecimento que, para alguns, parecia definitivo". Quem se lembra, por exemplo, de Paul Fort, o penúltimo Príncipe dos Poetas franceses (o último teria sido Jean Cocteau)? "Do poeta popular que foi, e dos 40 volumes de suas 'Ballades Françaises', permanecem apenas alguns textos encantadores musicados por Georges Brassens", o autor rememora. Quando digitamos "Paul Fort" no Google, não chegamos a mais que três linhas.
Le Corbusier, que aos 68 anos deu um mergulho sem volta no mar de um balneário perto de Nice: esse triste fim do genial arquiteto contradiz o seu passado de glórias
Michel Ragon nos lembra do destino trágico de Alexandre Dumas, homem vigoroso e sensual, que, aos 68 anos, só se movimentava com uma poltrona rolante. "Seu sexo, do qual tanto se orgulhara, agora o envergonha", descreve. "Precisa chamar alguém para que sua incontinência não molhe as calças." Um dia, o filho tenta reanimá-lo, anunciando que Garibaldi está na Borgonha, à frente dos camisas-vermelhas, em combate contra a Prússia. No passado, os dois lutaram juntos. Mas e agora, o que ainda os aproxima? "A paixão prevalece", ainda diz Dumas, apegando-se a um fio de esperança. O filho o aniquila: "A paixão não desculpa nada".
A escritora Françoise Sagan e a atriz Brigitte Bardot foram amigas de juventude e parceiras de beleza. "Simbolizaram a libertação da mulher de todas as imposições, preconceitos, proibições", escreve Ragon. Aos 17 anos, quando publicou o célebre "Bom Dia Tristeza", Françoise parecia uma estrela que jamais deixaria de brilhar. Levou, porém, uma existência desordenada, sempre perseguida pelo fisco e pela polícia de entorpecentes. Aos 54 anos, uma velha precoce, fraturou o fêmur. "Sua derrocada é tão vertiginosa quanto seu sucesso", Ragon constata. Recolhida a um hospital geriátrico, recebe, um dia, uma visita de surpresa. É Brigitte Bardot que, sustentando ainda restos de esplendor, deseja estar com ela. Françoise, porém, se recusa a vê-la, "para não expor sua ruína".
Mas, na maior parte das vezes, a ruína não se deixa esconder. Em 1945, ano em que Adolf Hitler foi derrotado, Knut Hamsun - o mais importante narrador norueguês do século XX - tem dificuldades para escutar a notícia. "Marie, sua mulher, grita-lhe no ouvido. Ele está surdíssimo", conta Ragon. Mesmo fraco, Hamsun logo decide escrever o necrológio de Hitler. O ódio aos ingleses e aos americanos, com seu apego à modernidade que ele execrava, o levou a aderir ao nazismo. A admiração por Hitler, porém, não macula a grandeza da obra literária. "A obra tão singular de Knut Hamsun se explica ao mesmo tempo por seu autodidatismo, sua perpétua vagabundagem e pela situação singular de seu país natal", cogita Ragon.
Quando, em 1905, a Noruega recuperou a independência, Hamsun já tinha 46 anos. Quando o nazismo se expande sobre a Europa, já é um septuagenário. Suas escolhas políticas não combinam, porém, com sua grandeza literária. É internado como louco e submetido a longos interrogatórios. A velhice o põe sob suspeita. Foi, enfim, liberado - para uma decadência interminável. Só morreu em 1952, aos 93 anos. Seu estado era digno de lástima. Mais repulsivo ainda era o sentimento de exclusão. "O que fiz não foi bem compreendido", disse. "Perdi e devo assumir isso."
A glória literária não estanca a derrota do corpo e as suspeitas que recaem, em consequência, sobre o psiquismo. O filósofo René Descartes, que jamais adoecera, desprezava as drogas e os boticários. Doente, prescrevem-lhe lavagem e sangria. Recusa não só os remédios, mas a comida. Só acreditava em certa emulsão infalível, resultado do tabaco infundido no vinho. Seu médico, mesmo horrorizado, cede - mas exige que as doses sejam diluídas. Quem pode levar a sério o desejo de um velho? Em 11 de fevereiro de 1650, René Descartes morre. Carregou consigo a crença de que Cristina, a rainha da Suécia, sua aluna de filosofia, mesmo diante de sua indisfarçável decadência, se interessava por ele. "Acreditava que a rainha o amava (quer dizer, amava seu espírito) e que ela o matou." Mesmo a mais brilhante das mentes se deixa roer. A vertigem não poupa a glória.

José Castello, Rio de Janeiro, 1951 - biógrafo, cronista, romancista, crítico literário e jornalista.

16/11/2011



É bom morrermos em nossas camas
num tavesseiro limpo
e entre amigos.
É bom morrermos uma vez
com as mãos cruzadas no peito,
vazias, pálidas, sem algemas,
sem arranhões, sem bandeiras,
nem petições.
É bom termos uma morte
não empoeirada, sem furos nas camisas,
sem marcas nas costelas.
É bom morrermos tendo o rosto
num travesseiro branco,
não no asfalto,
de mãos dadas com quem amamos
cercados pelo desespero de médicos
e enfermeiros, com nada além
do abençoado adeus,
sem nenhuma atenção à história,
largando este mundo como está
para um 'outro' - quem sabe
possa vir consertar.
Murid Barghuti (1944- ) - poeta nascido em Deir-Ghassana, aldeia próxima a Ramallah, na Palestina

14/11/2011

Diálogos com Borges - I

Em 1984 e 1985 o poeta e ensaísta argentino Osvaldo Ferrari, realizou uma série de diálogos (90 ao todo) com o escritor Jorge Luís Borges, que originalmente foram transmitidos pelo rádio e posteriormente publicados no jornal "Tiempo argentino" e depois como livro. Nesses diálogos são abordados os mais variados temas, como a poesia, a pintura, a amizade, o ensino, e essencialmente literatura. Minha intenção é apresentar aos poucos e alternadamente alguns deles, o de hoje, por exemplo, é sobre a poesia.




O.F. - Há algumas ideias suas sobre poesia que me interessam, sr. Borges, o senhor disse que qualquer poesia que se baseie na verdade deve ser boa


Bem, deveríamos dizer na verdade ou na absoluta imaginação, não? Que é o contrário, bom, não, mas é que a imaginação também tem que ser verdadeira, no sentido de que o poeta deve acreditar no que imagina. Creio que o fatal é pensar na poesia como um jogo de palavras, embora, ao mesmo tempo, isso pudesse levar à cadência.


O.F. - Sim, mas me parece que o senhor está interessado, particularmente, na verdade emocional, digamos...


A verdade emocional, quer dizer, eu invento uma história, eu sei que essa história é falsa, é uma história fantástica ou uma história policial - que é outro gênero de literatura fantástica - , mas, enquanto escrevo, devo acreditar nela. E isso coincide com Coleridge, que disse que a fé poética é a suspensão momentânea da incredulidade.


O. F. - Isso é fantástico.


Sim, por exemplo, uma pessoa assiste em um teatro, Macbeth. Sabe que são atores, homens disfarçados que repetem versos do século XVII, mas essa pessoa esquece tudo isso, e acredita que está acompanhando o terrível destino de Macbeth, levado ao assassinato pelas bruxas, por sua própria ambição e por sua mulher, Lady Macbeth. Ou, quando vemos um quadro, vemos uma paisagem e não pensamos que é um simulacro pintado numa tela, vemos isso, bem, como se o quadro fosse uma janela que se abre a essa paisagem.


O. F. - Sim, o senhor também disse que a palavra música aplicada ao verso, é um erro ou uma metáfora, que existe uma entonação própria da linguagem.


Sim, por exemplo, penso que eu tenho ouvido para o que Bernard Shaw chamava word music (música verbal), e não tenho nenhum ouvido, ou muito pouco, para a música instrumental ou cantada.


O. F. - São duas coisas diferente.


Sim, são duas coisas diferentes, e, além disso, conversei com músicos que não têm ouvido para a música verbal, que não sabem se um parágrafo em prosa ou uma estrofe em verso está bem medida.


O. F. - Outra opinião sua sobre a poesia é que é possível prescindir da metáfora no poema.


Penso que sim, salvo no sentido... quando Emerson disse que a linguagem é poesia fóssil, nesse sentido, toda palavra abstrata começaria sendo uma palavra concreta, e é uma metáfora. Mas, ao mesmo tempo, para entender um discurso abstrato, temos que esquecer as raízes físicas, as etimologias de cada palavra, temos que esquecer que são metáforas.


O. F. - Sim, porque a etimologia de metáfora...


É translação


O. F. - Translação...


Sim, mas a metáfora é uma metáfora, a palavra metáfora é uma metáfora.


O. F. - Tudo tem um sentido simbólico, mas uma das ideias que me parecem mais interessantes, a encontro em Rilke sob uma forma, e, no senhor, sob outra parecida. Rilke disse que a beleza não é outra coisa que o começo do terrível, e o senhor relacionou a poesia com o terrível, lembrando talvez, de poetas celtas: a ideia de que o homem não é completamente digno da poesia. O senhor lembrou que, em termos bíblicos, o homem não poderia ver Deus, porque ao vê-lo, morreria e inferiu que com a poesia aconteceria algo parecido.


Eu tenho um conto baseado nessa antiga ideia: trata-se de um poeta celta a quem o rei encomenda um poema sobre o palácio. E o poeta ensaia durante três anos, três vezes, esse poema. Nas duas primeiras vezes ele se apresenta com um manuscrito, mas na última não, chega sem manuscrito e diz uma palavra ao rei, essa palavra, evidentemente, não é a palavra "palácio", é uma palavra que expressa o palácio de um modo mais perfeito. E então, quando o poeta pronuncia essa palavra, o palácio desaparece, porque não há motivo para o palácio continuar existindo, já que foi expresso em uma única palavra.


O. F. - A poesia e a magia.


Sim, viria a ser isso, e em outro final possível, creio que o rei entrega um punhal ao poeta, porque o poeta alcançou a perfeição: encontrou essa palavra, e não tem porque continuar vivendo. E também porque o fato de ter encontrado uma palavra que poderia substituir a realidade viria a ser uma espécie de blasfêmia, não? O que é um homem para encontrar uma palavra que possa substituir uma das coisas do universo?


{.....}


Borges/Osvaldo Ferrari - Sobre a amizade e outros diálogos.

08/11/2011

A culpa de não ser feliz e os indignados



A obrigação da felicidade é um subproduto dos movimentos progressistas dos anos 60, dos movimentos de jovens que eram legitimamente progressistas, (que pediam) por liberdade, por direitos, por direito ao prazer, a esquerda aliado aos movimentos operários na França, etc. Enquanto as reivindicações mais políticas foram derrotadas, as reivindicações existenciais, o capitalismo respondeu. O movimento dos anos 60 abriu a passagem, para uma transformação super importante na história do século XX, que é a do capitalismo na sua fase de produção para o capitalismo com ênfase no consumo.
Para você poder dinamizar o consumo, você precisa de um outro sujeito. Você precisa de um sujeito que se sente livre, livre de entrave de culpa, de religião; com direito ao prazer, porque o consumo oferece isso. Com direito a criar o seu próprio estilo, a transgredir, a ir além, bandeiras legítimas dos jovens dos anos 60. E do direito à felicidade, que é um direito até da Revolução Francesa, passa-se para a obrigação da felicidade. Porque aí já é o mercado te dizendo: ‘ou você está por dentro das ondas ou você consegue comprar os objetos contemporâneos’. Esse modo de pensar da felicidade obrigatória contribuiu para o aumento das depressões. Porque o sujeito se sente culpado de não ser feliz. Sobretudo os jovens.


A obrigação da felicidade e os indignados


Talvez os movimentos também se relacionem com essa obrigação da felicidade. Só o fato de as pessoas se disporem a ficar acampados, no Vale do Anhangabaú, o que não é nenhuma rave, sem nenhum conforto, já estão contestando um pouco que o sentido de estar no mundo é ser feliz.
Eu acho que, por um lado, tem a culpa. Tem essa humilhação narcisista de ver os outros e pensar ‘por que eu não sou feliz se os outros são?’ e que leva a muito suicídio na adolescência. Em segundo lugar, porque nossa cultura talvez seja a única que não criou estilos culturais, estéticos, para o sofrimento. Até as igrejas evangélicas, essas mais comerciais, mesmo o cristianismo, que era uma estilística do sofrimento até exagerada, hoje até uma parte das igrejas evangélicas que falam que ‘você está aqui, porque Deus quer te deixar pra cima, que você seja rico’. Parte da existência não encontra mais lugar na cultura para pensar a si mesma. A psicanálise talvez seja a última proposta para explicar o sofrimento.

Maria Rita Kehl, psicanalista, escritora, ensaísta e crítica literária - Campinas(SP) - 1951

Extraído da revista Carta Capital

A vida é sonho (fragmentos)

Contam de um sábio, que um dia

tão pobre e mísero estava


que apenas se sustentava


com as ervas que colhia;


"Haverá alguém", se dizia,


"mais triste e vil do que sou?"


E quando o rosto voltou


achou a resposta, vendo


outro sábio recolhendo


as folhas que ele jogou.

{.....}

Sonha o rei que é rei, e deve

com este erro viver mandando,

só dispondo e governando,

e este aplauso, que por breve

período recebe, inscreve

no vento, e em cinzas a morte

o converte, triste sorte!

Há quem pretenda reinar

vendo que há de despertar

em pleno sono da morte?

Sonha o rico em sua riqueza,

que mais ganhos lhe oferece,

sonha o pobre que padece

sua miséria e sua pobreza,

sonha o rei que terá grandeza,

sonha o que afana e pretende,

sonha o que agrava e ofende,

e no mundo, em conclusão,

todos sonham o que são,

embora ninguém o entenda.

Eu sonho que estou aqui

das prisões encarregado,

e sonhei que em outro estado

mais lisonjeiro me ví.

Que é a vida? Um frenesi.

Que é a vida? Uma ilusão,

uma sombra, uma ficção,

e é pequeno o maior bem

que a vida é sonho também,

e os sonhos, sonhos são.

{.....}


Pedro Calderón De La Barca, Madrí, 1600-1681

06/11/2011

A casa de Walt Whitman

Em 1983, a primavera foi especialmente agradável em Nova York. A cidade celebrava o primeiro centenário da Ponte do Brooklin, e as pessoas pareciam flutuar na luz suave dos dias amenos. A cantora venezuelana Soledad Bravo estava por lá, depois do êxito desenfreado de 'Caribe', em que reuniu canções do cubano Sílvio Rodrigues e Chico Buarque. Costumávamos nos encontrar nos começos de noite para ouvir as novidades da jornada - ela contava histórias de músicas, Matha e eu contávamos do que tínhamos visto enquanto flanávamos pela primavera.

Num daqueles dias chegou, vindo de Washington, o boliviano Enrique Arnal, um dos grandes pintores da Anérica Latina desses nossos tempos. Estava trabalhando num enorme mural para a Organização dos Estados Americanos, e resolveu ir até Nova York para comprar pincéis. Eu ficava pasmo com sua meticulosidade, escolhia um por um apalpando as fibras como se quisesse confirmar se alguma vez haveria diálogo entre sua mão, o pincel, as cores, a tela.




Decidimos ir com ele até Washington, de automóvel. Eu queria parar numa cidadezinha chamada Camden, em Nova Jersey, para visitar a casa que tinha sido o derradeiro pouso de Walt Whitman. Estava mergulhado até a alma na leitura de alguns de seus poemas, e lá fomos nós. Chegamos no final da tarde, e o primeiro que vimos foi uma gigantesca lata de sopa Campbell's, plantada na porta da fábrica que eu não sabia que ficava na cidade. Ninguém sabia dizer onde ficava a casa de Whitman. Lembro que fomos parar num bairro estranho e negro enorme, de macacão, limitou-se a olhar para nós e dizer: 'Caiam fora, este bairro é perigoso para gente como vocês'. Decidimos perguntar no Corpo de Bombeiros. Nada. E quando já íamos desistindo vimos a casinha de madeira cor de cinza, com a pequena placa dizendo que alí o poeta Walt Whitman havia passado seus últimos anos.
Foi um pequeno alumbramento: uma senhora muito velha, neta da aia que havia cuidado do poeta, nos conduzia pela pequena casa falndo de Whitman como se ele estivesse vivo: 'Aqui ele escreve', dizia apontando para uma mesa posta debaixo de uma janela que dava para o pátio dos fundos. 'Aqui costuma tomar seu café da manhã, aqui escreve cartas antes do almoço, aqui ele gosta de ler antes de ir dormir'. Contava de seus hábitos mínimos, de sua enorme dificuldade em se locomover de pois de ter ficado com metade do corpo paralisada, de seu humor melancólico.
Whitman tinha morrido 91 anos antes daquela tarde, ela jamais conhecera o poeta, mas falava dele como alguém que ainda estivesse por alí.

Na despedida, perguntou de onde éramos. Evidentemente não tinha a menor ideia de onde ficava o Brasil, muito menos do que seria a Bolívia. Explicamos que eram países de América do Sul. Ela então nos disse que dias antes havia passado por alí um senhor muito velho que conhecia tudo de Walt Whitman e que também era 'lá de baixo', quer dizer, daquela estranha e misteriosa parte do mundo de onde nós tínhamos vindo. Pediu que assinássemos o livro de visitas. E então ví que antes de nós apenas dois visitantes haviam assinado o livro naquele maio de 1983: uma mulher chamada Maria Kodama e de um velho nuito velho que deixou um garrancho disforme, onde se podia ler, com algum trabalho, o nome de Jorge Luís Borges.

Mas tudo isso foi há muito tempo, em outro lugar do mundo, quando éramos jovens, líamos Walt Whitman, e Soledad Bravo mostrava que o Caribe não tem fim.

Eric Nepomuceno, jornalista, escritor e tradutor do espanhol - São Paulo (1948- )

05/11/2011

O Jogo da Amarelinha (trecho)

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E o velho não parecia muito ferido. Sorria vagamente, passando a mão pelo bigode. Chegou uma ambulância, içaram-no para a padiola, o motorista continuou agitando as mãos e explicando o acidente ao policial e aos curiosos.

- Mora no número 32 da rua Madame - informou um rapaz ruivo que trocara algumas frases com Oliveira e outros curiosos. - É um escritor. Conheço-o. Escreve livros.

- O pára-lamas o pegou pelas pernas, mas o carro já estava freado.

- Pegou no peito - disse o rapaz. - O velho escorregou num montão de merda.

- Foi nas pernas - disse Oliveira.

- Depende o ponto de vista - argumentou um senhor muito baixo.

- Foi no peito - insistiu o rapaz - Ví com estes meus olhos.

- Nesse caso... Não seria melhor avisar a família?

- Não tem famíia, é um escritor.

- Ah! - exclamou Oliveira.

- Tem um gato e muitos livros. Um dia subí para lhe levar um embrulho, que a porteira me pediu. Havia livros por todos os cantos. Isso tinha de lhe acontecer, os escritores são distraídos. Eu, para que um carro me pegue...

Caíam algumas gotas de chuva, que num instante dissolveram o grupo de testemunhas. Subindo a gola do casaco, Oliveira meteu o nariz pelo vento frio e começou a caminhar sem rumo. Estava certo que o velho não sofrera maiores danos, mas continuava vendo o seu rosto quase plácido, perplexo, melhor dizendo, enquanto o estendiam sobre a maca, entre frases de alento e cordiais "Allez, pépère, c'est rien, ça!" do enfermeiro, um ruivo que devia dizer o mesmo a todo o mundo, "A incomunicabilidade total", pensou Oliveira. "O pior não é tanto estarmos sós, pois isso já é conhecido e nem tem solução. Estar só, é, definitivamente, estar só dentro de um certo plano, no qual outras solidões poderiam comunicar-se conosco se a coisa fosse possível. Todavia, qualquer conflito, um acidente de rua ou uma declaração de guerra, provoca o brutal cruzamento de planos diferentes, e um homem, que talvez seja uma eminência do sânscrito ou da física quântica, se converte num pépère para o enfermeiro que o assiste num acidente. Edgar Poe metido numa ambulância, Verlaine nas mãos de um médico qualquer, Nerval e Artaud diante dos psiquiatras, Que podia saber de Keats o galeno italiano que o sangrava e o matava de fome? Se os homens como esse guardam o silêncio, com é provável, os outros triunfam cegamente, sem qualquer má intenção, é claro, sem saber que aquele operado, aquele tuberculoso, aquele acidentado despido sobre a cama se encontra duplamente só, rodeado por seres que se movem como por trás de um vidro, num outro tempo..."

Júlio Cortázar, Bruxelas-Buenos Aires (1914-1984)

03/11/2011

Tigela de ágate


Você fechou a janela, desceu as escadas e disse em prosa que se sentia bem embaixo, no pátio aberto, perto da porta. Você desceu o lixo, olhou o pássaro, brincou de cabra-cega com as crianças do pátio. Então, pediu-me que servisse a sopa numa tigela de ágate. A morte com dor não vale a sopa numa tigela de ágate. O mundo reduzido ao essencial. Isso a faz morrer de rir. O essencial, você me diz, cabe numa tigela de ágate. O que quis dizer com isso? Que essencial não há, ou muito pouco, que no fundo não importa, ou que de fato está nesta tigela de ágate? Desde então, a dúvida me impede de dizer meu nome. Com a sola dos pés procuro o fundo da terra sob um brejo de taboas. Cada vez que me perguntam que fundo é esse, as entranhas me gelam, a discrepância me invade. Sinto o fundo e ele me abala. Toda uma sismologia. Viajo sem ter vontade. Em cada lugar por onde passo, quero de mim uma nova coragem. Certa vez, você me acenou de longe, ao pé da plataforma, com os olhos vermelhos. Você que nunca chorava. Quis exilar-me em você. E talvez eu fique aqui, nesse boteco de luz amarela, no meio da amazônia, até o fim dos tempos. Mal penso nisso, o galo ainda não cantou, você já se estendeu ao longo do meu corpo, se derramou sobre mim e eu a contive. Você cabe em mim tão completamente. Ouço a sua voz fraca, perdida no percurso da garganta. O poema deve ser escrito com sangue? Pois que o sangue seja vivo, vermelho pêssego, turquesa, esmeralda. Foi então que você perdeu a voz, olhou de lado, fechou-se muda. E sobre as pálpebras cerradas palpitam veias de um sangue veloz. Diga-me: quanto sangue será necessário para aplacar o seu silêncio?

Marcos Siscar, poeta, ensaísta, tradutor e professor de Literatura. -

Borborema(SP) - 1964

01/11/2011

Eu te amo...

"Namorados" - Ismael Nery
Eu te amo porque te amo,
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.


Amor é estado de graça
e com amor não se paga.

Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.

Eu te amo porque não amo
bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.

Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.


Carlos Drummond de Andrade