DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

28/04/2012

Árvore adentro



Cresceu em minha fronte uma árvore. Cresceu para dentro. Suas raízes são veias, nervos suas ramas. Sua confusa folhagem pensamentos. Teus olhares a acendem e seus frutos de sombras são laranjas de sangue, são granadas de luz. Amanhece na noite do corpo. Ali dentro, em minha fronte, a árvore fala. Aproxima-te. Ouves?


Octavio Paz
 (Trad. Antônio Moura)

21/04/2012

Novelas nada exemplares

O que não me contam, eu escuto atrás das portas. O que não sei, advinho e, com sorte, você advinha sempre o que, cedo ou tarde, acaba acontecendo.

Dalton Trevisan, PR, 1925

17/04/2012

O que é viver bem?





Um repórter perguntou à Cora Coralina o que é viver bem?
Ela disse: "Eu não tenho medo dos anos e não penso em velhice. E digo pra você, não pense.
Nunca diga estou envelhecendo, estou ficando velho. Eu não digo. Eu não digo estou velha, e não digo que estou ouvindo pouco. É claro que quando preciso de ajuda, eu digo que preciso.
Procuro sempre ler e estar atualizada com os fatos e isso me ajuda a vencer as dificuldades da vida. O melhor roteiro é ler e praticar o que lê.
O bom é produzir sempre e não dormir de dia.
Também não diga pra você que está ficando esquecido, porque assim você fica mais.
Nunca digo que estou doente, digo sempre: estou ótima.
Eu não digo nunca que estou cansada. Nada de palavra negativa. Quanto mais você diz estar ficando cansada e esquecida, mais esquecida fica.
Você vai se convencendo daquilo e convence o outro. Então silêncio!
Sei que tenho muitos anos. Sei que venho do século passado, e que trago comigo todas as idades, mas não sei se sou velha não. Você acha que eu sou?
Posso dizer que eu sou a terra e nada mais quero ser. Filha dessa abençoada terra de Goiás.
Convoco os velhos como eu, ou mais velhos que eu, para exercerem seus direitos. Sei que alguém vai ter que me enterrar, mas eu não vou fazer isso comigo.
Tenho consciência de ser autêntica e procuro superar todos os dias minha própria personalidade, despedaçando dentro de mim tudo que é velho e morto, pois lutar é a palavra vibrante que levanta os fracos e determina os fortes. O importante é semear, produzir milhões de sorrisos de solidariedade e amizade.
Procuro semear otimismo e plantar sementes de paz e justiça. Digo o que penso, com esperança. Penso no que faço, com fé. Faço o que devo fazer, com amor.
Eu me esforço para ser cada dia melhor, pois bondade também se aprende.
Mesmo quando tudo parece desabar, cabe a mim decidir entre rir ou chorar, ir ou ficar, desistir ou lutar; porque descobri, no caminho incerto da vida, que o mais importante é o decidir".


Cora Coralina

12/04/2012

Princípio




No meio de frases destruídas,
de cortes de sentido e de falsas
imagens do mundo organizadas
por agressão ou por delírio
como vou saber se a diferença
não há-de ser um pacto novo,
um regresso às histórias e às
árduas gramáticas da preservação.
Depois dos efeitos de recusa
se dissermos não, a que diremos
não?
Que cânones são hoje dominantes
contra que tem de refazer-se
a triunfante inovação?
Voltar junto dos outros, voltar
ao coração, voltar à ordem
das mágoas por uma linguagem
limpa, um equilíbrio do que se diz
ao que se sente, um ímpeto
ao ritmo da língua e dizer
a catástrofe pela articulada
afirmação das palavras comuns,
o abismo pela sujeição às formas
directas do murmúrio, o terror
pela construída sintaxe sem compêndios.
Voltar ao real, a esse desencanto
que deixou de cantar, vê-lo
na figura sem espelho, na perspectiva
quase de ninguém, de um corpo
pronto a dizer até às manchas
a exacta superfície por que vai
onde se perde. Em perigo.

Joaquim Magalhães, em Os Dias, Pequenos Charcos

08/04/2012

O remo quebrado






Certo dia da Islândia em plaga solitária
ia um poeta a vagar, levando o livro e a pena,
buscando um doce amém, uma frase serena,
que pudesse fechar sua obra literária.

Soluçava a seus pés cada onda tumultuária.
Os pássaros, cortando o azul da tarde amena,
passavam, lentos, no ar. Do poente a rubra cena
iluminava o mar de luz extraordinária.

Pelas ondas, então, foi à praia trazido
velho remo quebrado, em que ele a custo leu:
"Quantas vezes contigo eu cansei de lutar!"

E como quem encontra o que julgou perdido,
essa frase traçou, aos céus a fronte ergueu,
e, trêmulo, atirou a inútil pena ao mar.


Henry-Wadsworth Longfelow, Maine (EUA), 1807-1882 - Tradução de Ana Amélia de Queiroz Carneiro de Mendonça.

07/04/2012

O Futuro





Aos domingos, iremos ao jardim.
Entediados, em grupos familiares,
aos pares,
dando-nos ares
de pessoas invulgares.
Aos domingos iremos ao jardim.
Diremos dos encontros casuais
com outros clãs iguais,
banalidades rituais,
fundamentais
autômatos afins,
misto de serafins,
sociais,
e de standardizados mandarins.
Teremos preconceitos e pruridos,
produtos recebidos na herança
de certos caracteres adquiridos.
Falaremos do tempo,
do que foi, do que já houve...
E sendo já então por tradição
e formação
antiburguesa -
solidamente antiburguesa -
inquietos falaremos da tormenta que passa
e seus desvarios
Seremos aos domingos, no jardim,
reacionários.

Reinaldo Ferreira, Lisboa (1922-1959)

06/04/2012

A Coruja





são todo ouvidos
os teus olhos
de vigília.

olhos acesos,
luzeiros
de sabedoria.

olhos atentos
à geografia
do dentro

és uma concha.

um encorujado
caramujo.

monja em voto de silêncio.

Sérgio de Castro Pinto, João Pessoa(PB), 1947, é poeta, jornalista e professor de Literatura da Universidade Federal da Paraíba.

03/04/2012

O que ela quer da gente é coragem!





"Assim como não se pode viver sem oxigênio, é a utopia que nos faz viver. Sem ela, não há esperança e a vida esmorece. Em qualquer atividade, a utopia nos impele a partir em busca, enfrentar obstáculos, acreditar no futuro e esperar que o amanhã seja melhor do que o hoje."

" O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem."


João Guimarães Rosa

02/04/2012

Psicografia

Snake God




Também eu saio à revelia
e procuro uma síntese nas demoras
cato obsessões com fria têmpera e digo
do coração: não soube e digo
da palavra: não digo (não posso ainda acreditar
na vida) e demito o verso como quem acena
e vivo como quem despede a raiva de ter visto.



Ana Cristina Cesar, Rio de Janeiro (1952-1983)

01/04/2012

Nossos Quixotinhos destemidos e desaforados diante do Clube Militar




Foi um acaso. Eu passava hoje pela Rio Branco, prestes a pegar o Aterro, quando ouvi gritos e vi uma aglomeração do lado esquerdo da avenida. Pedi ao motorista para diminuir a marcha e percebi que eram os jovens estudantes caras-pintadas manifestando-se diante do Clube Militar, onde acontecia a anunciada reunião dos militares de pijama celebrando o “31 de Março” e contra a Comissão da Verdade.
Só vi jovens, meninos e meninas, empunhando cartazes em preto e branco, alguns deles com fotos de meu irmão e de minha cunhada. Pedi ao motorista para parar o carro e desci. Eu vinha de um almoço no Clube de Engenharia. Para isso, fui pela manhã ao cabeleireiro, arrumei-me, coloquei joias, um vestido elegante, uma bolsa combinando com o rosa da estampa, sapatos prateados. Estava o que se espera de uma colunista social.
A situação era tensa. As crianças, emboladas, berrando palavras de ordem e bordões contra a ditadura e a favor da Comissão da Verdade. Frases como “Cadeia Já, Cadeia Já, a quem torturou na ditadura militar”. Faces jovens, muito jovens, imberbes até. Nomes de desaparecidos pintados em alguns rostos e até nas roupas. E eles num entusiasmo, num ímpeto, num sentimento. Como aquilo me tocou!
Manifestantes mais velhos com eles, eram poucos. Umas senhoras de bermudas, corajosas militantes. Alguns senhores de manga de camisa. Mas a grande maioria, a entusiasmada maioria, a massa humana, era a garotada. Que belo!
Eram nossos jovens patriotas clamando pela abertura dos arquivos militares, exigindo com seu jeito sem modos, sem luvas de pelica nem punhos de renda e sem vosmecê, que o Brasil tenha a dignidade de dar às famílias dos torturados e mortos ao menos a satisfação de saberem como, de que forma, onde e por quem foram trucidados, torturados e mortos seus entes amados. Pelo menos isso. Não é pedir muito, será que é?
Quando vemos, hoje, crianças brasileiras que somem, se evaporam e jamais são recuperadas, crianças que inspiram folhetins e novelas, como a que esta semana entrou no ar, vendidas num lixão e escravizadas, nós sabemos que elas jamais serão encontradas, pois nunca serão procuradas. Pois o jogo é esse. É esta a nossa tradição. Semente plantada lá atrás, desde 1964 – e ainda há quem queira comemorar a data! A semente da impunidade, do esquecimento, do pouco caso com a vida humana neste país.
E nossos quixotinhos destemidos e desaforados ali diante do prédio do Clube Militar. ”Assassino!”, “assassino!”, “torturador!”, gritava o garotinho louro de cabelos longos anelados e óculos de aro redondo, a quem eu dava uns 16 anos, seguido pela menina de cabelos castanhos e diadema, e mais outra e mais outro, num coro que logo virava um estrondo de vozes, um trovão. Era mais um militar de cabeça branca e terno ajustado na silhueta, magra sempre, que tentava abrir passagem naquele corredor humano enfurecido e era recebido com gritos e desacatos. Uma recepção com raiva, rancor, fúria, ressentimento. Até cuspe eu vi, no ombro de um terno príncipe de Gales.
Magros, ainda bem, esses velhos militares, pois cabiam todos no abraço daqueles PMs reforçados e vestidos com colete à prova de balas, que lhes cingiam as pernas com os braços, forçando a passagem. E assim eles conseguiram entrar, hoje, um por um, para a reunião em seu Clube Militar: carregados no colo dos PMs.
Os cartazes com os rostos eram sacudidos. À menção de cada nome de desaparecido ao alto-falante, a multidão berrava: “Presente!”. Havia tinta vermelha cobrindo todo o piso de pedras portuguesas diante da portaria do edifício. O sangue dos mortos ali lembrados. Tremulavam bandeiras de partidos políticos e de não sei o quê mais, porém isso não me importava. Eu estava muito emocionada. Fiquei à parte da multidão.
Recuada, num degrau de uma loja de câmbio ao lado da portaria do prédio. A polícia e os seguranças do Clube evacuaram o local, retiraram todo mundo. Fotógrafos e cinegrafistas foram mandados para a entrada do “corredor”, manifestantes para o lado de lá do cordão de isolamento. E ninguém me via. Parecia que eu era invisível. Fiquei ali, absolutamente sozinha, testemunhando tudo aquilo, bem uns 20 minutos, com eles passando pra lá e pra cá, carregando os generais, empurrando a aglomeração, sem perceberem a minha presença. Mistério.
Até que fui denunciada pelas lágrimas. Uma senhora me reconheceu, jogou um beijo. E mais outra. Pessoas sorriram para mim com simpatia. Percebi que eu representava ali as famílias daqueles mortos e estava sendo reverenciada por causa deles. Emocionei-me ainda mais. Então e enfim os PMs me viram.
Eu, que estava todo o tempo praticamente colada neles! Um me perguntou se não era melhor eu sair dali, pois era perigoso. Insisti em ficar, mesmo com perigo e tudo. E ele, gentil, quando viu que não conseguiria me demover: “A senhora quer um copo d’água?”. Na mesma hora o copo d’água veio. O segurança do Clube ofereceu: “A senhora não prefere ficar na portaria, lá dentro? “. “Ah, não, meu senhor. Lá dentro não. Prefiro a calçada”. E nela fiquei, sobre o degrau recuado, ora assistente, ora manifestante fazendo coro, cumprindo meu papel de testemunha, de participante e de Angel. Vendo nossos quixotinhos empunharem, como lanças, apenas a sua voz, contra as pás lancinantes dos moinhos do passado, que cortaram as carnes de uma geração de idealistas.
A manifestação havia sido anunciada. Porém, eu estava nela por acaso. Um feliz e divino acaso. E aonde estavam naquela hora os remanescentes daquela luta de antigamente? Aqueles que sobreviveram àquelas fotos ampliadas em PB? Em seus gabinetes? Em seus aviões? Em suas comissões e congressos e redações? Será esta a lição que nos impõe a História: delegar sempre a realização dos “sonhos impossíveis” ao destemor idealista dos mais jovens?


Hildegard Angel, (Rio de Janeiro, 1949- ), é jornalista e irmã de Stuart Angel Jones, assassinado durante a ditadura militar que ocorreu no Brasil, de 1964 a 1985.