DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

16/01/2013

Os sapateiros da literatura

Foi uma questão muito séria que não chamou, como esperávamos, a atenção dos interessados e morreu no nascedouro. O Sr, Mário de Andrade, num dos seus excelentes rodapés do Diário de Notícias, condenou, entre amável e acrimonioso, a literatura feita à pressa, abundante nestes dias de confusão. Um dos nossos grandes homens de letras divergiu azedamente do escritor paulista. Este voltou à carga e afinal o Sr. Joel Silveira, no hebdomadário D. Casmurro, fechou a discussão rápida com uma nota curiosa que infelizmente não foi examinada pelos entendidos. Os telegramas de guerra mataram essa pendência que agora procuro desenterrar.
Em resumo, o Sr. Mário de Andrade sustentou, com citações e argumentos de peso, esta coisa intuitiva: um sujeito que se dedica ao ofício de escrever precisa, antes de tudo, saber escrever. Há tempo o Sr. Rubem Braga, num artigo curto, desprovido de citações e com poucos argumentos, tinha dito o mesmo. Isto é quase uma verdade laplaciana.
Dificilmente podemos coser ideias e sentimentos, apresentá-los ao público, se nos falta a habilidade indispensável à tarefa, da mesma forma que não podemos juntar pedaços de couro e razoavelmente compor um par de sapatos, se os nossos dedos bisonhos não conseguem manejar a faca, a sovela, o cordel e as ilhós. A comparação efetivamente é grosseira: o cordel e ilhós diferem muito de verbos e pronomes. E expostos à venda romance e calçado, muita gente considera o primeiro um objeto nobre e encolhe os ombros diante do segundo, coisa de somenos importância. Essa distinção é o preconceito. Se eu soubesse bater sola e grudar palmilha, estaria colando, martelando. Como não me habituei a semelhante gênero de trabalho, redijo umas linhas, que dentro de poucas horas serão pagas e irão transformar-se num par de sapatos bastante necessários. Para ser franco, devo confessar que esta prosa não se faria se os sapatos não fossem precisos. Por isso desejo que o fabricante deles seja honesto, não tenha metido pedaços de papelão nos tacões. E espero também que os meus fregueses fiquem satisfeitos com a mercadoria que lhes ofereço, aceitem as minhas ideias ou pelo menos, em falta disto, alguns adjetivos que enfeitam o produto.
Evidentemente o Sr. Mário de Andrade, homem de cultura e gosto, não iria aproximar um escritor dum operário. Mas agora estou pensando nos rapazes do D. Casmurro. E não atino com a razão por que eles torceram o nariz à oponião do crítico.
Afinal, que são os rapazes do D. Casmurro?  Os sapateiros da literatura. Não se zanguem, é isto. Somos sapateiros, apenas. Quando, há alguns anos, desconhecidos, encolhidos e magros, descemos das nossas terras miseráveis, éramos retirantes, os flagelados da literatura. Tomamos o costume de arrastar os pés no asfalto, frequentamos as livrarias e os jornais, arranjamos por aí ocupações precárias e ficamos na tripeça, cosendo, batendo, grudando.
Certamente há outros que são literatos por nomeação. Necessitamos letras, como qualquer país civilizado, e escolhemos para representá-las um certo número de indivíduos que se vestem bem, comem direito, gargarejam discursos, dançam e conversam besteira com muita suficiência.
Os rapazes do D. Casmurro, uns pobres-diabos, não sabem fazer nada disso. Peçam ao Sr. Joel Silveira ou ao Sr. Wilson Lacerda uma conferência a respeito do namoro e verão o desastre: as moças da platéia se chatearão horrivelmente.
Restam, pois, a esses desgraçados, a essas criaturas famintas as novelas e a faca miúda com que se corta o couro. Mas é preciso que a faca e as novelas sejam bem manejadas. Quando lá fora disserem: "Esta crônica está bem feita, este livro é mais ou menos legível", os autores, uns infelizes, pensarão: "Bem. Não há no mundo uma pessoa que tenha interesse em elogiar-nos. Fizemos qualquer coisa apreciável, é claro." E dormirão tranquilos um sono curto.
Enfim as novelas furam e a faca pequena corta. São armas insignificantes, mas são armas. 


Graciliano Ramos, crônica publicada no livro  Linhas tortas - Editora Record, 1962

2 comentários:

  1. essa cê buscou no fundo do baús.
    vidas eternamentes verdejantes, sob a pena deste senhor.

    beijão,
    r.

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    1. Os baús estão cheios de preciosidades, verdadeiras relíquias!, como essa de Graciliano Ramos, que além de excelente escritor, era uma cronista de mão cheia, sua pena era sutil, irônica e afiadíssima!

      beijos, Roberto

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