DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

26/02/2014

O adeus repentino de Paco de Lucia

 
O guitarrista espanhol Paco de Lucia, (Francisco Sánchez Gómez - 1947-2014conhecido internacionalmente por sua esmerada interpretação  da música flamenca, faleceu hoje em Cancun(México) vítima de um infarto. 
 
 
 
 


24/02/2014

Hilda Hilst : mais uma crônica



I.
 
 
Há  dez  anos  tentava  escrever  o  primeiro  verso  de  um  poema.  Era perfeccionista.
 Aos 30,  anteontem  madrugada,  gritou  para  a  mulher:
 consegui, Jandira!   Consegui! Ela  (sentando-se  na  cama,  desgrenhada):
 O quê?   O emprego?
Ele:  Claro  que  o  verso,  tolinha,  olha  o  brilho  do  meu  olho,  olha!
Ela  (bocejando):  Então  diz,  benzinho.
Declamou  pausado  o  primeiro  verso: “Igual  ao  fruto  ajustado  ao  seu redondo..
.Jandira  interrompendo:  peraí... redondo?  Mas  nem  todo  fruto  é redondo...
Ele: São  metáforas,  amor.
Ela: Metáforas?
Ele:  É... E  há  também  anacolutos,  zeugmas,  eféreses.   Ela: ?!?!?
Mas  onde  é  que  fica  a  banana?
Ele  enforcou-se  manhãzinha  na  mangueira.  O  bilhete  grudado  no  peito dizia: a  manga  não  é redonda,  o  mamão  também  não,  a  jaca  muito  menos,  e  você é  idiota,  Jandira.  Tchau
. Ela (tristinha  depois  de  ler  o  bilhete):  e  a  pêra,  benzinho?  E  a  pêra  então que  ninguém  sabe o  que  é?  E  a  carambola!!!  E  a  carambola,  amor?


Em Cascos e Carícias, coletânea de crônicas escritas entre 1992-1995 para o jornal Correio Popular, de Campinas(SP)

21/02/2014

Sofismas sobre literatura popular


Arte senufo, Costa do Marfim
 

O povo de hoje não é essa fresca e virginal fonte de toda a sabedoria e de toda a beleza que imaginam certos estetas do populismo: é o estudantado de uma péssima universidade, envenenado pelo folhetim da história em quadrinhos ou fotonovela, por um cinema para funcionários públicos e por uma retórica para meninas semianalfabetas e metidas.
O povo, tal como existia nas comunidades primitivas, talvez tivesse um sentido profundo e verdadeiro do amor e da morte, da piedade e do heroísmo. Esse sentido profundo e verdadeiro que se manifestava na mitologia, nos contos folclóricos e lendas, na cerâmica e nas danças rituais. Quando o povo ainda estava entranhadamente unido aos fatos essenciais da existência: ao nascimento e à morte, ao nascer e ao pôr-do-sol, às colheitas e ao começo da adolescência, ao sexo e ao sonho. Mas agora, o que é, realmente, o povo? E, sobretudo, como se pode tomá-lo como pedra de toque de uma arte genuína quando está falsificado, coisificado e corrompido pela pior literatura e por uma arte de bazar barato? Basta comparar a vulgaridade de qualquer estatueta fabricada em série para enfeite do lar ou para uma igreja contemporânea com um ícone popular, ou um fetiche africano, para perceber o enorme fosso que se abriu entre o povo e a beleza. Na tribo mais selvagem do Amazonas ou da África central, jamais encontraremos a vulgaridade, nem em seus vasos e vasilhas, nem em suas roupas, que hoje nos rodeiam por todos os lados.
Assim chegamos a outra conclusão que poderia parecer paradoxal: em nosso tempo, somente os grandes e insubordináveis artistas são os herdeiros do mito e da magia, são os que guardam no cofre de sua noite e de sua imaginação aquela reserva básica do ser humano, através destes séculos de bárbara alienação que suportamos.
Não é, em suma, o artista que está desumanizado, não são Van Gogh e Kafka que estão desumanizados, mas a humanidade, o público.
Contra os que pretendem, demagogicamente, que toda grande obra de arte seja majoritária e contra os que pretendem o contrário, creio que é fácil demonstrar que ambas as pretensões são sofísticas.
1. Há literatura grande e, no entanto, minoritária: Kafka
2. Há literatura minoritária e, no entanto, ruim: a maior parte dos poemas que se escrevem hoje, meros logogrifos ou logomaquias
3. Há literatura grande e majoritária: O velho e o mar.
4. Há literatura majoritária e ruim: histórias em quadrinhos, fotonovelas, literatura água com açúcar, quase toda a literatura policial

.Ernesto Sabato, em O escritor e seus fantasmas - Companhia das Letras.

18/02/2014

Poema vertical


 
 
12.
 
 
Há roupas que duram mais que o amor.
Há roupas que começam com a noite
e dão a volta ao mundo.
E há dois mundos
 
Há roupas que em vez de desgastarem-se
tornam-se cada vez mais novas.
 
Há roupas para se desnudar.
Há roupas verticais.
 
Cai o homem
e elas permanecem de pé.
 
 
 
Roberto Juarroz,  Argentina, 1925-1995

16/02/2014

POR QUE VOCÊ ME TRATA MAL ?


André Abujamra
 
O mundo é pequeno pra caramba,
tem alemão, italiano, italiana.
O mundo filé à milanesa,
tem coreano, japonês, japonesa.
O mundo é uma salada russa,
tem nego da Pérsia, tem nego da Prússia.
O mundo é uma esfiha de carne,
tem nego do Zâmbia, tem nego do Zaire.
O mundo é azul lá de cima,
o mundo é vermelho na China.
O mundo tá muito gripado.
O açúcar é doce, o sal é salgado.
O mundo caquinho de vidro,
tá cego do olho, tá surdo do ouvido.
O mundo tá muito doente,
o homem que mata, o homem que mente.

Por que voê me trata mal, se eu te trato bem?
Por que você me faz o mal, se eu só te faço o bem?
Todos somos filhos de Deus,
só não falamos a mesma língua. 
André Abujamra 
 

 
 

13/02/2014

Requerimento


Ana Hatherly


  posso dizer que estou triste sem precisar usar o word depois salvar e revisar alheia aos sublinhados vermelhos. posso falar de taquicardia, falta de ar, dor no peito, tricotomia, você. posso escalar a minha caminha e dormir com o mesmo lençol dois meses. posso depois ver a água que se desprende desse lençol e neste momento ter a revelação que foi assim com a endorfina, com a serotonina. os dias foram me lavando e elas escorregaram para um ralo qualquer. elas: serotonina e endorfina. posso gritar seu nome e cortar todos os meus 10 dedos para não mais tocar. posso sumir por aí, flanar por uma Lapa morta e suja, ver vultos nas esquinas do Lido, sumir para Santa e mudar para Tereza. Norma, Andréa, Clara, Suzana. Posso ser Zuleika. Ser uma Laika, ser um instantâneo. posso ser um dia assim cheio de nuvens corvos e um frio particular esticado nos meus novos ossos. Novos depois do mistério de me abandonar. posso dedilhar novas lorotas para parecer uma escrita, uma prosa, um qualquer subtítulo novo de literatura. posso ser a vida que levo quando vejo o povo das ruas engravidando, povoando mais ruas, se esfregando ao sol, estendendo as mãos para roubar meus amendoins. posso ir morrendo?


Mara Coradello,  Vitória (ES), é autora do livro O colecionador de segundos, 7 Letras, 2003; participou da antologia 25 mulheres que estão fazendo a literatura brasileira, Record.

10/02/2014

Uma crônica de Hilda Hilst




A morte me apareceu certa noite no quarto. Era uma menina vestida de negro, os cabelos loiros escorridos. O vestido era estufado, brilhoso, assim que a vi, soube que era a morte. Recostou-se em um canto da parede à minha frente, os pezinhos cruzados, não usava sapatos.
 Então, Hans, está pronto?
 Não, respondi-lhe agoniado.
 Sorriu, tinha dentes negros e minúsculos. Assustei-me. Esperou que eu me acalmasse e perguntou:
 Quanto tempo você ainda deseja?
 Algum tempo.
 Respondeu-me que era preciso que eu fosse mais preciso. A frase tinha humor e pude até sorrir.
 Disse-lhe:
 Mais dez anos talvez.
 Dez anos talvez, é hoje. Impossível. Não. Para ser mais exata: dez anos e dez dias. O tempo é outro quando eu apareço.
 Senti náuseas e uma dor profunda no peito. Ainda pude perguntar-lhe:
 Há uma outra vida? 
 Sim, milhões de crianças como eu. Você será uma delas. É tedioso e até inaceitável, mas é assim.
 O espelho do quarto refletiu um menino vestido de negro, calças curtas e camisa comum, os cabelos loiros escorridos.
 Olhei-me assombrado. Depois disso, nunca mais me vi.
 
 
Publicado em Cascos e Carícias, reunião de crônicas escritas entre 1992-1995 para o Correio Popular, de Campinas(SP)

05/02/2014

Deborah Brennand




O Javali
 
O sol caiu no açude
igual a um javali eriça pelos de luz.
                      Vai às águas fundas.
Depois flutua em juncos.
O seu dourado focinho.
As nuvens não ligam,
ficam longe, arredias,
                      as folhas se amoitam em sombras infiéis.
Alguém diz: - Está ali a presa, atira,
suja o juncal de sangue,
no amanhã escuro dos beirais do charco
surgirá a caça morta.
                      - Nunca, é só engano. O sol não dorme.
Cai outra vez no açude.
Vai em águas fundas
e novamente flutua eriçado de luz.



Hoje tive o prazer de conhecer a poesia de Deborah  Brennand, essa poeta nascida no município de Nazaré da Mata(PE) e que durante muito tempo relutou em publicar seu tesouro. Após os apelos insistentes de seu marido, o artista plástico pernambucano Francisco Brennand, Ariano Suassuna  e do poeta César Leal, acabou cedendo. Ainda bem!!
 

 

CRUEL MENSAGEM
 
Morto foi o sonho de um jardim
Por um verão servil, de cruel mensagem
E eu vi raízes, a vida agonizando,
Na lâmina acesa de um punhal.
Os musgos, as heras, as papoulas,
Manchavam a grama seca.
E lírios, junto ao sangue das rosas,
Magoados eram o pasto
De cavalos alheios e famintos.
 
 
IGUAL A MÃO
 
Velhas cortinas de renda
Por sonhos bordando brasões
Agulhas trançaram ouro e linha
 Em sombras fugazes de flores
 Fantasmas de um morto verão.
Cobrindo vidraças, embaçando a vida,
Escondes desvarios, alucinações,
Olhares perdidos de condessas
 Caminhos ocultos na distância
 E o vento forte, agitando o pano
Com a rudeza de sua mão.
 
 
SEMPRE
 
  Assim, além da cerca, eu espero,
O quê? Não sei. Espero.
Embora só o vento chegue todo arranhado,
 em gemidos, caindo e já sem sentidos
Jogue aos meus pés as folhas secas.
 
 
DE AMARELO
 
  Hoje devo me vestir de amarelo:
espantar os olhos negros da solidão,
tal a luz do girassol de ouro dourado
que abre pétalas iluminando nuvens.
Quem saberá (nem ela mesma) o artifício usado para enganá-la?
 Sonhos? Jardins? Não digo.
 Hoje me visto de amarelo e vou,
 nos ramos, entoar da ave o canto.
Quero espantar olhos de solidão
que vem das grutas e abandona montes
para comer a relva rubra do meu coração.
Mas hoje, de amarelo, espantarei a fera
Fugindo, à procura de outra vítima:
Quem sabe, a mata?

02/02/2014

Sobre os cotovelos a água olha o dia sobre



 
 
 
os cotovelos batem folhas da luz
 um pouco abaixo do silêncio. Quero saber o nome de quem morre: 
 o vestido de ar ardendo, 
os pés e movimento no meio
 do meu coração. 
O nome: madeira que arqueja, seca desde o fundo
 do seu tempo vegetal coarctado. 
E ao abrir-se a toalha viva, o
 nome: a beleza a voltar-se para trás,
com seus pulmões de algodão queimando 
. Uma serpente de ouro abraça os quadris
 negros e molhados.  E a água que se debruça
 olha a loucura com seu nome: indecifrável cego.


Herberto Helder, Funchal, Ilha da Madeira - (1930-     )