DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

30/12/2014

Um desejo de falar

 



de uma plantação de borboletas que nunca deixaram de ser casulos e voavam à procura de canções de mel de abelhas; de um jardim outrora das delícias cheio de pássaros sem asas empalhados sobre árvores secas; de tartarugas que corriam em disparada para o fundo do mar na tentativa de salvar seus filhotes; de um corredor escuro ladeado de prateleiras cheias de livros que sussurravam palavras anecóicas saídas do bico dourado de um papagaio...

Um desejo atravessado de falar pelos cotovelos das esquinas da boca latindo palavras de aparente desconexão que saltam da garganta e se esparramam sobre o chão até o ventre da Terra, criando raízes formando túneis e labirintos que se bifurcam interminavelmente; de religar as sinapses do pensamento para formar um grande coral de vozes dissonantes e criativas numa sinfonia em Sol Maior!

28/12/2014

A Funda


 


Era uma vez um menino chamado Davi N.,  cuja pontaria e habilidade no manejo da atiradeira despertavam tanta inveja e admiração entre seus amigos da vizinhança e da escola, que viam nele — e assim comentavam entre si quando os pais não podiam escutar — um novo Davi. O tempo passou. Cansado do tedioso tiro ao alvo que praticava disparando pedrouços contra latas vazias e pedaços de garrafa, Davi descobriu um dia que era muito mais divertido exercer contra os pássaros a habilidade com que Deus o tinha dotado, de modo que dali em diante a exercitou contra todos os que se punham ao seu alcance, em especial contra Pardais, Cotovias, Rouxinóis e Pintassilgos, cujos corpinhos sangrentos caíam suavemente sobre a grama, com o coração ainda agitado pelo susto e a violência da pedrada. Davi corria alegre até eles e os enterrava cristãmente. Quando os pais de Davi se aperceberam desse costume do seu bom filho se alarmaram muito, lhe perguntaram o que é que era aquilo, e denegriram a sua conduta com termos tão ásperos e convincentes que, com lágrimas nos olhos, ele reconheceu sua culpa, se arrependeu sincero, e durante muito tempo se aplicou em disparar apenas sobre os outros meninos. Dedicado anos depois às Forças Armadas, na Segunda Guerra Mundial Davi foi promovido até general e condecorado com as cruzes mais altas por matar sozinho trinta e seis homens, e mais tarde degradado e fuzilado por deixar escapar com vida um Pombo mensageiro do inimigo.


Augusto Monterroso nasceu em Tegucigalpa(Honduras) em 1921; ainda jovem mudou-se para o México, onde faleceu, em 2003.

21/12/2014

Saudade

 
 
Saudade de mim, de ti,
de muitos...
da chuva que me caía como
pedaços de estrelas cintilantes
chicoteando meu corpo,
sussurrando em meus ouvidos
o cantar dos pássaros
anunciando um Novo Dia
 
Saudade da chuva que regava
meu verde bosque perfumado
de frescuras primaveris
pleno de abismos inexplorados
 
Saudade de um não-ser querendo
ser
e não sendo o desejado,
germinando pensamentos
mergulhados em águas profundas
e desconhecidas
 
Uma saudade misturada
ao vivido ou
 ao que jamais será vivido
 
Saudade da não-saudade
do Nada,
do antes de existir
sem ter morrido,
sem ter nascido.
 
Uma saudade metafísica,
talvez?

18/12/2014

23. Absurdo




Tornarmo-nos esfinges, ainda que falsas, até chegarmos ao ponto de já não sabermos quem somos.. Porque, de resto, nós o que somos é esfinges falsas e não sabemos o que somos realmente. O único modo de estarmos de acordo com a vida é estarmos em desacordo com nós próprios. O absurdo é o divino.
Estabelecer teorias, pensando-as paciente e honestamente, só para depois agirmos contra elas - agirmos e justificar as nossas acções com teorias que as condenam. Talhar um caminho na vida, e em seguida agir contrariamente a seguir por esse caninho. Ter todos os gestos e todas as atitudes de qualquer coisa que nem somos, nem pretendemos ser tomados como sendo.
Comprar livros para não os ler, ir a concertos nem para ouvir a música nem para ver quem lá está; dar longos passeios por estar farto de andar e ir passar dias no campo só porque o campo nos aborrece.
 
 
Fernando Pessoa, em Livro do Desassossego

15/12/2014

O Banquete

 Nestes tempos de muito consumo e de muita comilança lembrei-me de O banquete, de Platão,(427 a.C. 347 a.C.) onde ele nos relata uma reunião de amigos da qual participaram Sócrates, Aristófanes, Agaton e outros filósofos de Atenas, que tinham como desafio fazer a melhor definição de Eros (o Amor). Segue abaixo um pequeno trecho da fala de Aristófanes:
 
[...] Parece-me que os homens não perceberam nada do poder de Eros. Se o tivessem percebido, dele seriam os templos mais imponentes, os mais vistosos altares teriam sido erguidos em seu louvor, para ele arderiam os mais fartos sacrifícios. Não seria como agora, quando nada disso se vê, embora necessitemos dele acima de tudo. Eros é, ao que tudo indica, o mais filantrópico dos deuses, o mais benéfico aos homens, médico de males que, ao curar proporciona o mais completo bem-estar ao gênero humano. [...] Importa que compreendam primeiro a natureza humana e as características dela. Nossa natureza primitiva não era a atual, era diferente. Para começar, a humanidade compreendia três sexos, não apenas dois, o masculino e o feminino, como agora. O andrógino era então, quanto à forma e à designação, um gênero comum, composto do macho e da fêmea. (...) A forma de cada homem era um todo esférico. O dorso e os flancos fechavam-se em círculo. Cada um desses seres era provido de quatro mãos; movia-se com igual número de pernas. Um pescoço torneado sustinha dois rostos, semelhantes em tudo. Uma era a cabeça em que se opunham dois rostos. Os rostos ostentavam quatro orelhas e um par de genitais, a exemplo destes, dobrados eram os outros órgãos. Andavam eretos como os homens de agora em qualquer direção que se locomovessem.(...)De pernas erguidas, formavam uma roda. Rolavam céleres com seus oito membros estendidos. Três eram os gêneros. O gênero masculino primitivo era descendente do sol, o feminino, da terra; o que reunia os dois gêneros em si mesmo, descendia da lua, dotado de características desses dois astros. Lembravam os genitores na circularidade e no deslocamento. Terríveis na força e no vigor, extraordinários na arrogância, desafiaram os deuses. (...) Ao cabo de cansativa deliberação, sentenciou Zeus: "Julgo ter encontrado um recurso para preservar os homens e enfraquecendo-os deter a insolência. Seccionarei cada um em dois para torna-los mais fracos e mais prestativos a nós visto que serão mais numerosos. Andarão eretos, sustentados por duas pernas. Se mesmo assim continuarem insolentes, se não se aquietarem, desferirei outro golpe para deixá-los saltitando numa perna só". Com esse decreto Zeus cortou o homem em dois como se partem sorvas para conserva ou como se dividem ovos à crina. A cada golpe, Apolo, sujeito a ordens, virava o rosto e o pescoço partido na direção do corte com o objetivo de tornar mais ordeiro o homem ciente de sua própria mutilação. Apolo mudou-lhe a direção do rosto, puxou a pele de todos os lados para o ventre, nome atual, como se faz para produzir uma bolsa. Os movimentos dirigiam-se decisivos ao centro, deixando uma abertura, agora chamada umbigo. (...) Como a natureza humana foi dividida em duas, cada uma das partes, saudosa, unia-se  à outra, aos abraços, ardentes por se confundirem num único ser. Morriam de fome e de inércia, porque não queriam fazer nada separadamente. Quando morria uma das partes, a sobrevivente procurava outra e a estreitava nos braços. A meia-mulher procurava outra meia-mulher(mulher agora), o meio-homem procurava outro meio-homem e assim se aniquilavam. Condoído, Zeus transportou as partes pudendas para a frente. Eles as traziam, como agora, fora do corpo, mas geravam e se reproduziam não unidos um com o outro, mas em comércio com a terra, como as cigarras. O propósito era este: se o enlace fosse de um homem com uma mulher, haveria descendência e a constituição de uma família, mas se dois homens se abraçassem, a conjunção os devolveria tranquilos ao trabalho, às outras ocupações do dia a dia. Eros, que atrai um ao outro está implantado nos homens desde então para restaurar a antiga natureza. faz de dois um só e alivia as dores da natureza humana. Cada um de nós é, portanto, a metade complementar de outro (um símbolo). Somos como uma das partes de um linguado cortado ao meio, dois formando um. Cada qual anda à procura de seu próprio complemento.

Como podemos ver, essa busca continua até os dias atuais. Com ou sem Deus, mutilados ou não, cada um de nós carrega em si uma certa dose de arrogância. Mesmo necessitando uns dos outros, poucos são aqueles que o admitem, raros os que de fato se preocupam uns com os outros.
Façamos um banquete universal no qual todos possam compartilhar!!!

11/12/2014

Antony Gormley




Qual o papel do poeta na seleção natural?
 


o poeta - atleta do abismo
espreita o entardecer
por detrás
da história
 
O poeta
- alpinista do nada -
pendura-se na fenda
do portal do tempo
 
Vê o branco
- o não desvio -
- o não impulso -
e não mais se move.
 
 
Matilha
 
 
Nomeados
os lobos
desembanhei os caninos
- incógnitos
e ensaiei a dança
solitária
do uivo
na imensidão astral

Jorge Elias Neto

 


08/12/2014

Eupalinos ou o arquiteto (trecho - II)


 

 
[...] O corpo é um instrumento admirável, pelo qual me asseguro de que os viventes, tendo-o cada qual a seu serviço, dele não dispõem em plenitude; extraem apenas prazer, dor e os atos indispensáveis para viver. Ora confundem-se com ele, ora distraem por algum tempo de sua existência; ora animais, ora puros espíritos, ignoram os vínculos universais que possuem. Graças, no entanto, à prodigiosa substância de que são feitos, participam do que veem e do que apalpam.
 
 
Paul Valéry

04/12/2014

Sísifo & Tédio

Sísifo, de Max Klinger, 1914

 
 
o tempo flui na fruiçãodos dias não vividos; corpo e mente separados
no templo do (des)prazer, o eterno ir-e-vir de Sísifo ou a maldição sobre o acorrentado Prometeu por ousar ser Homem?
 
sexo drogas e pedras muitas pedras rolando no templo do homem-máquina:
o robô-pássaro emite mensagens de última geração em nuvens de paixão cibernética - faz-se e desfaz-se do amor na velocidade da luz;
na velocidade da luz mergulha  no obscurantismo das ideias
 
Sísifo e o Tédio -
quem será engolido por quem?
O Homem criou uma máquina à sua imagem e semelhança
qual dos dois sobreviverá?