DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

29/09/2015

Robert Walser sobre Van Gogh




Van Gogh
 
O pobre homem
não me pode fazer isto.
Perante a sua paleta grosseira
dissipa-se
em mim qualquer bela
perspectiva de vida. Ó, a frieza
com que pintou a obra da sua vida!
Pintava com correção excessiva.
Se alguém se quiser achar importante
na exposição, sentirá um aperto
perante o movimento deste pincel.
Medonho como estes campos, prados, árvores
tiram à noite, como penosos sonhos,
o sono. Grande respeito porém
merecem fogosas obras artísticas,
um quadro onde vemos, por exemplo,
no círculo do manicômio loucos.
A queimadura do sol, o ar, a terra, o vento
representou, sem dúvida, excepcionalmente.
Mas depressa desviamos os olhos
de tal força masoquista
em obras meramente satisfatórias.
Fica-se
horrorizado quando
a arte não consegue nada mais belo
do que revelar o seu ter, dever, querer
perante as almas que a olham.
Desejo, quando olho um quadro
ser acariciado como que por uma bela fada,
vai, vai-te
embora, adeus!

Extraído de Histórias de Imagens, de Robert Walser - Editora Cotovia - Tradução de Pedro Sepúlveda - Portugal



25/09/2015

De Mallarmé



 
Eu quero distrair a arte voraz de um país
cruel, e, sorrindo das velhas zombarias que me fazem os amigos, o passado, o gênio, e minha lâmpada, que no entanto conhece minha agonia,
imitar o chinês de coração límpido e delicado
 cujo êxtase puro é pintar em xícaras de neve ao luar radiante
uma flor bizarra que perfuma sua vida.
Transparente, a flor que ele sentiu, criança,
na filigrana azul da alma se instalando.
 
 
Stéphane Mallarmé. França (1842-1898)

22/09/2015

Cântico negro

 




"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí!
 Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí... Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou..
. Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!


José Régio,  pseudônimo literário de José Maria dos Reis Pereira, nasceu em Vila do Conde, Portugal ( 1901-1969)  Romancista, dramaturgo, ensaísta e crítico, foi, no entanto, como poeta. que primeiramente se impôs. Com o livro de estreia — "Poemas de Deus e do Diabo" (1925) — apresentou quase todo o elenco dos temas que viria a desenvolver nas obras posteriores: os conflitos entre Deus e o Homem, o espírito e a carne, o indivíduo e a sociedade, a consciência da frustração de todo o amor humano, o orgulhoso recurso à solidão, a problemática da sinceridade e do logro perante os outros e perante a si mesmos.

15/09/2015

A literatura e o mal de Montano


 
 
[...]
 
 
Naquela noite, em meu quarto de hotel, vendo no espelho minha triste figura, fui dizendo para mim mesmo que no início do século 21 - pensava eu, como se vê como um livro aberto já - a literatura não respirava nada bem, apesar do otimismo irresponsável de alguns. A literatura, disse-me, está sendo acossada, como nunca o tinha sido até agora, pelo mal de Montano, que é uma perigosa doença de mapa geográfico bastante complexo, pois é composta das mais diversas e variadas províncias ou zonas maléficas; uma delas, a mais visível e, talvez, a mais populosa, em todo caso a mais mundana e a mais estúpida, acossa a literatura desde os dias em que escrever romances se converteu no esporte favorito de um número quase infinito de pessoas; dificilmente um diletante se põe a construir edifícios ou, logo de saída, fabrica bicicletas sem ter adquirido uma competência específica; sucede, ao contrário, que todo o mundo, exatamente todo o mundo, sente-se capaz de escrever um romance sem nem sequer ter aprendido os instrumentos mais rudimentares do ofício, e sucede também que o vertiginoso aumento desses escrevinhadores terminou por prejudicar gravemente os leitores, afundados hoje em dia numa notável confusão.
[...] Nessa noite, em frente ao espelho que refletia minha triste figura, acabei concentrando meus pensamentos na  província mais mundana e estúpida do mal de Montano da literatura, e disse a mim mesmo que não era uma zona geográfica com poucos anos de existência, pois na realidade Milton, por exemplo, já falava dela quando dizia ter visitado uma nebulosa zona cinzenta, uma província cujos habitantes se dedicavam, por hábito, a triturar a elegância do espírito e as mais nobres correntes da tradição literária.
 
 
Enrique Vila-Matas em O mal de Montano

13/09/2015

Mar das mortes


 

Amar o amaro mar de amarelas marés, de maremotos. Mar de mortes! Nem mesmo quando dormes acalmas o pulsar do mar vermelho de vidas que correm nas veias em busca de oxigênio, do sangue que deságua em nossos corações. A beleza de tuas águas serenas e límpidas (agora sujas), não acalmam meu disparatado coração diante do horror sofrido pelos que sobre ti navegam em busca de novos horizontes, por melhores condições de vida.
Como dormir tranquilamente sabendo das tormentas por que passam em tuas águas nossos semelhantes? Nem o sol, sequer o luar me alegrariam; nem um dia chuvoso e calmo sobre o sertão sofrido e sedento; um dia lacrimoso que derramasse suas águas sobre os bancos de areia de tantos rios assoreados e secos...!
Quantas vidas têm sido ceifadas por tuas ondas nervosas, amargo mar das tormentas? Sei que não é da tua competência resolver os problemas da miséria, das guerras, da ganância e da ambição desenfreada comandadas e disputadas entre as nações mais ricas desse planetinha chamado Terra!
Quem sabe fosse melhor colocar esta mensagem numa garrafa e lançá-la a ti, ó grande mar bravio...!?

11/09/2015

"As crises estão cheias de oportunidades..."


 
 
   Não havia no povoado pior ofício do que ‘porteiro do prostíbulo’. Mas que outra coisa poderia fazer aquele homem? O fato é que nunca tinha aprendido a ler nem escrever, não tinha nenhuma outra atividade ou ofício. Um dia, entrou como gerente do prostíbulo um jovem cheio de ideias,  criativo e empreendedor, que  decidiu modernizar o estabelecimento. Fez mudanças e chamou os funcionários para as novas instruções. Ao porteiro disse: - A partir de hoje, o senhor, além de ficar na portaria, vai preparar um relatório semanal onde registrará a quantidade de pessoas que entram e seus comentários e reclamações sobre os serviços. - Eu adoraria fazer isso, senhor – balbuciou – mas eu não sei ler nem escrever! - Ah! Quanto eu sinto! Mas se é assim, já não poderá seguir trabalhando aqui. - Mas senhor, não pode me despedir, eu trabalhei nisto a minha vida inteira, não sei fazer outra coisa. - Olhe, eu compreendo, mas não posso fazer nada pelo senhor. Vamos dar-lhe uma boa indenização e espero que encontre algo que fazer. Eu sinto muito e espero que tenha sorte. Sem mais nem menos, deu meia volta e foi embora. O porteiro sentiu como se o mundo desmoronasse. Que fazer? Lembrou que no prostíbulo, quando quebrava alguma cadeira ou mesa, ele a arrumava, com cuidado e carinho. Pensou que esta poderia ser uma boa ocupação até conseguir um emprego. Mas só contava com alguns pregos enferrujados e um alicate mal conservado. Usaria o dinheiro da indenização para comprar uma caixa de ferramentas completa. Como o povoado não tinha casa de ferragens, deveria viajar dois dias em uma mula para ir ao povoado mais próximo para realizar a compra. E assim o fez. No seu regresso, um vizinho bateu à sua porta: - Venho perguntar se você tem um martelo para me emprestar. - Sim, acabo de comprá-lo, mas eu preciso dele para trabalhar… - Bom, mas eu o devolverei amanhã bem cedo. - Se é assim, está bem. Na manhã seguinte, como havia prometido, o vizinho bateu à porta e disse: - Olha, eu ainda preciso do martelo. Porque você não o vende para mim? - Não, eu preciso dele para trabalhar e além do mais, a casa de ferragens mais próxima está a dois dias mula de viagem. - Façamos um trato – disse o vizinho. Eu pagarei os dias de ida e volta mais o preço do martelo, já que você está sem trabalho no momento. Que lhe parece? Realmente, isto lhe daria trabalho por mais dois dias… aceitou. Voltou a montar na sua mula e viajou. No seu regresso, outro vizinho o esperava na porta de sua casa. - Olá, vizinho. Você vendeu um martelo a nosso amigo. Eu necessito de algumas ferramentas, estou disposto a pagar-lhe seus dias de viagem, mais um pequeno lucro para que você as compre para mim, pois não disponho de tempo para viajar para fazer compras. Que lhe parece? O ex porteiro abriu sua caixa de ferramentas e seu vizinho escolheu um alicate, uma chave de fenda, um martelo e uma talhadeira. Pagou e foi embora. E nosso amigo guardou as palavras que escutara: ‘não disponho de tempo para viajar para fazer compras’. Se isto fosse certo, muita gente poderia necessitar que ele viajasse para trazer as ferramentas. Na viagem seguinte, arriscou um pouco mais de dinheiro trazendo mais ferramentas do que as que havia vendido. De fato, poderia economizar algum tempo em viagens. A notícia começou a se espalhar pelo povoado e muitos, querendo economizar a viagem, faziam encomendas. Agora, como vendedor de ferramentas, uma vez por semana viajava e trazia o que precisavam seus clientes. Com o tempo, alugou um galpão para estocar as ferramentas e alguns meses depois, comprou uma vitrine e um balcão e transformou o galpão na primeira loja de ferragens do povoado. Todos estavam contentes e compravam dele. Já não viajava, os fabricantes lhe enviavam seus pedidos. Ele era um bom cliente. Com o tempo, as pessoas dos povoados vizinhos preferiam comprar na sua loja de ferragens, do que gastar dias em viagens. Um dia ele se lembrou de um amigo que era torneiro e ferreiro, e pensou que este poderia fabricar as cabeças dos martelos. E logo, por que não, as chaves de fendas, os alicates, as talhadeiras, etc.. E após foram os pregos e os parafusos… Em poucos anos, nosso amigo se transformou, com seu trabalho, em um rico e próspero fabricante de ferramentas. Um dia decidiu doar uma escola ao povoado. Nela, além de ler e escrever, as crianças aprenderiam algum ofício. No dia da inauguração da escola, o prefeito lhe entregou as chaves da cidade, abraçou-o e lhe disse: - É com grande orgulho e gratidão que lhe pedimos que nos conceda a honra de colocar a sua assinatura na primeira página do Livro de Atas desta nova escola. - A honra seria minha – disse o homem. Seria a coisa que mais me daria prazer, assinar o Livro, mas eu não sei ler nem escrever, sou analfabeto. - O senhor?!?! – disse o prefeito sem acreditar. O senhor construiu um império industrial sem saber ler nem escrever? Estou abismado. Eu pergunto: o que teria sido do senhor se soubesse ler e escrever? - Isso eu posso responder – disse o homem com calma. Se eu soubesse ler e escrever… ainda seria o porteiro do prostíbulo! Geralmente as mudanças são vistas como adversidades. As adversidades podem ser bênçãos. As crises estão cheias de oportunidades. Se alguém lhe bloquear a porta, não gaste energia com o confronto, procure as janelas. Lembre-se da sabedoria da água: ‘A água nunca discute com seus obstáculos, contorna-os.’ A cada dia que vivo, mais me convenço de que o desperdício da vida está no amor que não damos, nas forças que não usamos, na prudência egoísta que nada arrisca e que, esquivando-nos do sofrimento, perdemos também a felicidade. A dor é inevitável. O sofrimento é opcional.


CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE  em O porteiro do prostíbulo

08/09/2015

A verdade tem duas caras e a neve é negra



A verdade tem duas caras e a neve é negra na nossa cidade. Já não somos capazes de desespero como antes, e o fim caminha para a muralha, com passos firmes, sobre este azulejo molhado de lágrimas, com passos firmes. Quem baixará as nossas bandeiras: nós, ou eles? E quem nos lerá “o acordo de paz”, ó rei da agonia? Tudo está preparado, quem arrancará os nossos nomes da nossa identidade: você ou eles? E quem semeará em nós o discurso da arrogância: “Não conseguimos romper o cerco, entreguemos as chaves do paraíso para o ministro da paz, e salvemo-nos...” A verdade tem duas caras, o lema santo era uma espada para nós e sobre nós, e então o que você fez do nosso forte antes desse dia? Você não lutou porque temia a morte, mas o seu trono é um caixão, carregue então o seu caixão para salvar o trono, ó rei da espera. Esta paz fará de nós um punhado de pó.... Quem vai nos enterrar os dias depois que tivermos ido: você ou eles? Quem levantará as bandeiras deles sobre as nossas muralhas: você ou um cavalheiro sem esperanças? Quem pendurará os sinos em cima da nossa partida: você ou um guarda miserável? Tudo está preparado para nós, então por que delonga a negociação, ó rei da agonia?


Mahmoud Darwish nasceu na aldeia Al-Birweh, na Palestina em 1942 e faleceu em 2008, em Houston(EUA). Em 1988 escreveu a Declaração de Independência da Palestina, lida por Yasser Arafat quando declarou unilateralmente a criação do Estado Palestino.
É considerado o poeta nacional da Palestina; seus poemas já foram traduzidos para mais de vinte idiomas.

01/09/2015

Rito do irmão pequeno (trechos)


 
 

 
(...)
 
Assim você preferirá viagens, progresso...
Você não terá paz, você não será indiferente,
Nem será religioso, você...ôh você, irmão pequeno, vai
atingir o telefone, os gestos dos aviões,
O norte-americano, o inglês, o arranha-céu!...
 
Matemos a hora que assim mataremos a terra e com ela
Estas sombras de sumaúmas e violentos baobás,
Monstros que não são daqui e irão se arretirando
Matemos a hora que assim mataremos as sombras sinistras,
Esta ambição de morte, que nos puxa, que nos chupa,
Guia da noite,
Guiando a noite que canta de uiara no fundo do rio.
 
Venha comigo. Por detrás das árvores, sobrado dos igapós,
Tem um laguinho fundo onde nem medra o grito do cacauê...
Junto à tocaia espinhenta das largas vitórias-régias,
Boiam os paus imóveis, alcatifados de musgo úmido, com calor...
 
Extraído do Livro azul, de Mário de Andrade, escrito em 1931