DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

21/01/2016

Dois poemas de Manuel Antonio Pina




Narciso

Quando me dizes "Vem",
 já eu parti e já estou tão próximo de ti
que sou eu quem me chama,
 e quem te chama é o meu amor
que em ti me ama.
 
Se me olhas sou eu que me contemplo
longamente através do teu olhar e moro em ti
 e sou eu o lugar
e demoro-me em ti e sou o tempo.
 
Eu sou talvez aquilo que me falta
(a alma se sou corpo, o corpo se sou alma)
em ti, e afogo-me na tua vida
como na minha imagem desmedida:
Sol, Lua, água, ouro, horizontalidade,
 concordância, indiferente ordem da infância,
união conjugal, morte, repouso.
 

Na biblioteca

O que não pode ser dito
guarda um silêncio feito de primeiras palavras diante do poema,
que chega sempre demasiadamente tarde,
quando já a incerteza e o medo se consomem em metros alexandrinos.
Na biblioteca, em cada livro, em cada página sobre si recolhida,
às horas mortas em que a casa se recolheu também
virada para o lado de dentro, as palavras dormem
talvez, sílaba a sílaba, o sono cego que dormiram as coisas
antes da chegada dos deuses.
Aí, onde não alcançam nem o poeta nem a leitura,
o poema está só.
E, incapaz de suportar sozinho a vida, canta.

Manuel Antônio Pina, em Cuidados Intensivos
Manuel Antônio Pina nasceu em Sabugal(Portugal) em 1943; foi jornalista e escritor laureado com o Prêmio Camões em 2011. Faleceu em 2012 na cidade do Porto.

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