DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

29/10/2016

Graciliano Ramos: escritor & leitor



 
O escritor é o guardião do repertório das histórias que o povo conta e vive, mas é antes de tudo o guardião da língua de que se serve este povo para contar as histórias do passado e as histórias que os acontecimentos de hoje (em todo o território nacional) fabricam. Numa sociedade complexa como a nossa, seria muito simples se o escritor fosse só o contador de histórias. Ele deve preservá-las, passá-las adiante, mas é responsável pela língua que as gravou. Para isso, é preciso que alargue as suas próprias possibilidades de fabricar uma linguagem, entrando por formas linguísticas que não possui, que não comanda. É assim que acaba por ter acesso ao coletivo da língua e à ficção do outro. Abrindo fronteiras, desbravando território estranho. Ganha, passa, recupera.
[...] Assim como o escritor se interessa pelo alargamento das suas fronteiras linguísticas, também o leitor tem de trabalhar nesse sentido se quiser acompanhar o romancista, lendo sua obra. Dessa forma terá acesso a um pensamento diferente do seu. Terá um melhor conhecimento do outro, do intricado funcionamento da sua cabeça e da maneira como fabrica soluções e problemas. Tudo isso sem a interferência de uma única subjetividade individual ou de classe. [...]
O leitor de jornal (ou de romance espontâneo) não quer fazer esforço algum quando lê. Contenta-se em absorver a escrita de um outro como se fosse um papel mata-borrão. Deixa-se guiar apenas pelas faculdades da memória e não pelas da reflexão. Este leitor tem uma visão fascista da literatura. Fascismo não é apenas governo autoritário e forte, de preferência militar, que deixa que se reproduzam, sem contestação, as forças econômicas da classe dominante. Fascismo existe todas as vezes em que o ser humano se sente cúmplice e súdito de normas. Amolecem o cérebro, espreguiçam os músculos, soltam a fibra.
(...) A verdadeira leitura é uma luta entre subjetividades que afirmam e não abrem mão do que afirmam, sem as cores da intransigência. O conflito romanesco é, em forma de intriga, uma cópia do conflito da leitura. Ficção só existe quando há conflito, quando forças diferentes digladiam-se no interior do livro e no processo da sua circulação pela sociedade. Encontrar no romance o que já se espera encontrar, o que já se sabe, é o triste caminho de uma arte fascista, onde até mesmo os meandros e os labirintos da imaginação são programados para que não haja a dissidência de pensamento.
 
Extraído de Em liberdade, escrito por Graciliano Ramos quando saiu da prisão em 1937, revisto e datilografado em 1946, e entregue a um amigo (não mencionado). Em 1952 o autor pediu ao amigo que queimasse o que havia escrito, pedido evidentemente não atendido. O escritor, poeta e ensaísta Silviano Santiago (Formiga(MG) - 1936) que editou e publicou esse diário, intitulou-o de ficção, mesmo baseando-se num trabalho de rigorosa pesquisa e na realidade factual. Além dessa obra, Silviano é autor de Uma literatura nos trópicos (ensaio), Crescendo durante a guerra numa província ultramarina,(poesia), Ensaios antológicos, entre outros. 

25/10/2016

A função do escritor - Anton Tchekhov

Que o mundo «está infestado com a escória do gênero humano» é perfeitamente verdade. A natureza humana é imperfeita. Mas pensar que a tarefa da literatura é separar o trigo do joio é rejeitar a própria literatura. A literatura artística é assim chamada porque descreve a vida como realmente é. O seu objetivo é a verdade - incondicional e honestamente. O escritor não é um confeiteiro, um negociante de cosméticos, alguém que entretém; é um homem constrangido pela realização do seu dever e  sua consciência. Para um químico, nada na terra é puro. Um escritor tem de ser tão objectivo como um químico.
Parece-me que o escritor não deveria tentar resolver questões como a existência de Deus, pessimismo, etc. A sua função é descrever aqueles que falam, ou pensam, acerca de Deus e do pessimismo, como e em que circunstâncias. O artista não deveria ser juiz dos seus personagens e das suas conversas, mas apenas um observador imparcial.
Têm razão em exigir que um artista deva ter uma atitude inteligente em relação ao seu trabalho, mas confundem duas coisas: resolver um problema e enunciar corretamente um problema. Para o artista, só a segunda cláusula é obrigatória.
Acusam-me de ser objetivo, chamando-me de indiferente em relação ao bem e ao mal, falta de ideias e ideais, etc. Querem que, ao descrever ladrões de cavalos,  diga: «Roubar cavalos é mau». Mas isso é sabido há séculos sem que eu tenha de dizê-lo.  Deixem que um júri os julgue; a minha tarefa é simplesmente mostrar que gênero de pessoas são. Escrevo: estão a lidar com ladrões de cavalos e, assim, deixem-me dizer-lhes que não são mendigos, mas gente bem alimentada que segue um culto especial e que roubar cavalos não é simplesmente roubo, mas uma paixão. Claro que seria agradável combinar arte com sermões, mas, quanto a mim,  é impossível,  por questões técnicas. Para descrever ladrões de cavalos em setecentas linhas, tenho de falar, pensar e sentir à maneira deles. De outro modo, a história não será tão compacta como os contos deveriam ser. Quando escrevo, conto inteiramente com o leitor para que este acrescente os elementos subjetivos que faltam na história.
 
Anton Tchekhov, era médico, dramaturgo e escritor. Nasceu em 1860 em Taganrov, na Rússia e faleceu em 1904 na Alemanha. Deixou-nos uma vasta obra literária abrangendo peças teatrais e inumeráveis contos. Entre suas peças mais conhecidas podemos mencionar O jardim das cerejeiras, A gaivota, As três irmãs. Entre os inúmeros contos estão O beijo, A dama do cachorrinho, A arte da simulação, O escritor, O espelho, A morte do funcionário, Um homem extraordinário, Enfermaria número seis, e muitos outros.

21/10/2016

Uma crônica de Rubem Braga

Lembrança de Guignard
 
 
 
 
 
 
 


 
As pessoas retratadas por Alberto da Veiga Guignard têm um certo ar de família, alguma coisa que as liga - não importam cor, idade, classe. E já vi,
em fila de cinema, em festinha de família, em cabaret do interior, em solenidade escolar - já vi pessoas que parecem retrato de Guignard.
Esse ar de família só pode ser uma certa candura, uma insistente infância, alguma coisa que é Guignard e que banha numa luz especial tudo o que ele vê ou inventa. E suas flores e suas paisagens combinam com suas figuras. Aquela cabocla retratada ali, de blusa vermelha, pode rezar naquela igrejinha que está no alto do morro em outro quadro; e, com certeza, reza. E está tão integrada na paisagem ingênua do interior que o artista, amorosa e gentilmente, acabou enfeitando sua blusa com duas palmeiras.
Guignard nasceu em Nova Friburgo (fevereiro, 1896) e foi menino para Petrópolis, onde estudou no Franco-Brasileiro e morava numa daquelas casas de pé-direito alto, com varanda e escada, gradil e portão, jardim e quintal - e um avô de longas barbas brancas e os tios Carvalhais que vinham almoçar aos domingos, e uma certa menina de chapéu de palha com fita que o nosso menino amou em segredo, e sua mãe, sua irmã, seu pai, que um dia morreu ali. Foi então (tinha um avô francês) lavado para a Suíça e França - morou em uma bela casa tirolesa de madeira, perto de Zurique, morou no sul da França, onde
começou a estudar Agronomia...
Mas o menino só gostava de desenhar. Então mandaram ele aprender desenho -
mas não, meu Deus do céu, como se aprende nessas escolas vigaristas de hoje
em dia, mas aprender deveras, ali no castigo, fazer pé, fazer mão, fazer flor. E
pintura, e gravura; terminou seu curso em Florença, e expôs em Veneza, na Suíça, em Paris, amou, foi feliz, foi infeliz, separou, juntou, sofreu; em 1925 estava enjoado da arte acadêmica, foi deixando seu lirismo correr solto, como
se estivesse pintando por música.
Em 1929, veio para o Brasil, ganhou prêmios, ensinou, morou em Copacabana
em Itatiaia, redescobriu o Brasil e descobriu Minas, e contou tudo isso - a gente, as casas, as montanhas, as flores, as igrejas, as festas de São João - na arte mais autêntica, mais simples, mais feliz que já se fez neste país.
Um amigo encontrou-o um dia em Ouro Preto, ele parece que tinha tomado umas e outras, disse: "Belas moças aqui, lindas moças..."
Com o mesmo lirismo puro do menino de Petrópolis, 1905.
 
Publicada no Diário de Notícias - 2 de setembro de 1969 

16/10/2016

Discurso da servidão voluntária II




É certamente por isso que o tirano nunca é amado nem ama: a amizade é um nome sagrado, é uma coisa santa; ela nunca se entrega senão entre pessoas de bem e só se deixa apanhar por mútua estima; se mantém não tanto através de benefícios como por meio de uma vida boa; o que torna um amigo seguro do outro é o conhecimento que tem de sua integridade; as garantias que tem são sua bondade natural, a fé e a constância. Não pode haver amizade onde está a crueldade, onde está a deslealdade, onde está a injustiça.

***

Pobre e miseráveis povos insensatos, nações obstinadas em vosso mal e cegas ao vosso bem. deixais levar, à vossa frente, o mais belo e o mais claro de vossa
renda, pilhar vossos campos, roubar vossas casas e despojá-las dos móveis antigos e paternos, viveis de tal modo que não podeis vos gabar de que algo seja vosso; e pareceria ser agora uma grande fortuna para vós conservar a meias vossas famílias e vossas vidas vis; e todo esse estrago, esse infortúnio,
essa ruína vos advém não dos inimigos, mas do inimigo, e daquele que engrandeceis, por quem ides valorosamente à guerra, para a grandeza de quem não vos recusais a apresentar vossa pessoa à morte.

***
Há três tipos de tiranos: uns obtêm o reino por eleição do povo; outros pela força das armas; outros por sucessão de sua raça. Como se sabe bem, os que
o adquiriram pelo direito de guerra, comportam-se no reino como se estivessem
em terra conquistada. [...] Parece-me que aquele a quem o povo deu o Estado
deveria ser mais suportável e creio que o seria; mas assim que se vê elevado
acima dos outros, decide não sair mais.
 
***
 
Aquele que vos domina tanto só tem dois olhos, duas mãos. só tem um corpo
e não tem outra coisa além do que tem o menor homem do grande e infinito
número de vossas cidades, senão a vantagem que lhe dais para destruir-vos.
De onde tirou tantos olhos com os quais vos espia, se não os colocais a serviço
dele? Como tem tantas mãos para golpear-vos, se não as toma de vós? Os pés com que espezinha vossas cidades, de onde lhe vem senão dos vossos? Como
ele tem algum poder sobre vós, senão por vós?
 
Etienne de La Boétie filósofo, poeta, ensaísta. Nasceu em Sarlat (França) em
1530 e faleceu, ainda jovem, em 1563.


10/10/2016

Às escuras






Amanhece. Nada é igual, tudo difere. Nada mudou, mas o galo que anunciava a aurora desapareceu. E os quintais. Já as galinhas aumentaram exponencialmente. Nem por isso têm vez ou voz: geradas em chocadeiras industriais, são alimentadas compulsivamente vinte e quatro horas por dia, ininterruptamente. O galo de hoje é invisível, não canta mas continua dando ordens no grande terreiro nacional.
Escurece. Tudo é vazio e branco. Na linha do horizonte a palavra sumiu entre as paralelas linhas do caderno. O poema enamorou-se do silêncio, emaranhou-se
na madrugada fria e sonolenta. Teve um sono profundo. Desapareceu.

04/10/2016

Triste Bahia!

Salvador, antiga Baixa dos sapateiros

 
 
Triste Bahia! ó quão dessemelhante
Está e estou do nosso antigo estado!
Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado,
Rica te vejo eu já, tu a mi abundante.
A ti tocou-te a máquina mercante,
Que em tua larga barra tem entrado.

A mim foi-me trocando, e tem trocado
Tanto negócio e tanto negociante.
Deste em dar tanto açúcar excelente
Pelas drogas inúteis, que abelhuda
Simples aceitas do sagaz brichote.


Oh se quisera Deus que de repente
Um dia amanheceras tão sisuda
Que fora de algodão o teu capote!


As cousas do mundo

Neste mundo é mais rico, o que mais rapa
Quem mais limpo se faz, tem mais carepa*:
Com sua língua ao nobre o vil decepa.
O velhaco maior sempre tem capa.

Mostra o patife da nobreza o mapa:
Quem tem mão de agarrar, ligeiro trepa;
quem menos falar pode, mais increpa*;
quem dinheiro tiver, pode ser Papa.

A flor baixa se inculca por Tulipa;
bengala hoje na mão, ontem garlopa*.
Mais isento se mostra o que mais chupa.
Para a tropa do trapo vazo a tripa.
E mais não digo, porque a Musa topa
em apa, epa, ipa,upa.

Todo

o todo sem a parte não é todo;
a parte sem o todo não é parte.
Mas se a parte o faz todo sendo parte,
não se diga que é parte, sendo todo.


* carepa - caspa, pó de madeira

increpa -  acusação, censura

garlopa - plaina, instrumento p/modelar a madeira

 
Gregório de Matos, conhecido como o Boca do inferno, era advogado e poeta nascido em Salvador(BA); sendo de família rica e abastada, fez seus estudos em Coimbra e era desejo do pai que ele se envolvesse nos negócios da família. Mas o Boca de brasa, como também era conhecido, por não ter papas na língua passou a criticar os poderosos que comandavam a economia do estado da Bahia. Perseguido e ameaçado de morte conseguiu ser deportado para Angola, onde ajudou a conter uma rebelião militar, teve permissão para voltar ao Brasil, desde que não fosse pra Salvador; foi então para Recife, permanecendo por lá até sua morte em 1696, vitimado por vírus que contraiu em Angola.   


02/10/2016

Onde está a democracia?



 
Eu tinha dito que iria propor tirar a palavra utopia do dicionário. Mas enfim, não
vou a tanto. Deixa ela lá estar, porque está quieta. O que eu queria dizer é que há uma outra questão que tem que ser urgentemente revista! Tudo se discute
neste mundo, menos uma coisa: a democracia. Ela está aí, como se fosse uma
espécie de santa no altar, de quem já não se espera milagres, mas que está aí
como referência. E não se repara que a democracia em que vivemos é uma
democracia sequestrada, condicionada, amputada.
O poder do cidadão, o poder de cada um de nós, limita-se, na esfera política, a
tirar um governo de que não se gosta e a por outro que talvez venha a se gostar. Nada mais. Mas as grandes decisões são tomadas em uma outra grande
esfera e todos sabemos qual é. As grandes organizações financeiras internacionais, os FMIs, a Organização Mundial do Comércio, os bancos mundiais. Nenhum desses organismos é democrático. E, portanto, como falar
em democracia se aqueles que efetivamente governam o mundo não são eleitos
democraticamente pelo povo? Quem é que escolhe os representantes dos países
nessas organizações? Onde está então a democracia?
 
José Saramago