DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

21/10/2016

Uma crônica de Rubem Braga

Lembrança de Guignard
 
 
 
 
 
 
 


 
As pessoas retratadas por Alberto da Veiga Guignard têm um certo ar de família, alguma coisa que as liga - não importam cor, idade, classe. E já vi,
em fila de cinema, em festinha de família, em cabaret do interior, em solenidade escolar - já vi pessoas que parecem retrato de Guignard.
Esse ar de família só pode ser uma certa candura, uma insistente infância, alguma coisa que é Guignard e que banha numa luz especial tudo o que ele vê ou inventa. E suas flores e suas paisagens combinam com suas figuras. Aquela cabocla retratada ali, de blusa vermelha, pode rezar naquela igrejinha que está no alto do morro em outro quadro; e, com certeza, reza. E está tão integrada na paisagem ingênua do interior que o artista, amorosa e gentilmente, acabou enfeitando sua blusa com duas palmeiras.
Guignard nasceu em Nova Friburgo (fevereiro, 1896) e foi menino para Petrópolis, onde estudou no Franco-Brasileiro e morava numa daquelas casas de pé-direito alto, com varanda e escada, gradil e portão, jardim e quintal - e um avô de longas barbas brancas e os tios Carvalhais que vinham almoçar aos domingos, e uma certa menina de chapéu de palha com fita que o nosso menino amou em segredo, e sua mãe, sua irmã, seu pai, que um dia morreu ali. Foi então (tinha um avô francês) lavado para a Suíça e França - morou em uma bela casa tirolesa de madeira, perto de Zurique, morou no sul da França, onde
começou a estudar Agronomia...
Mas o menino só gostava de desenhar. Então mandaram ele aprender desenho -
mas não, meu Deus do céu, como se aprende nessas escolas vigaristas de hoje
em dia, mas aprender deveras, ali no castigo, fazer pé, fazer mão, fazer flor. E
pintura, e gravura; terminou seu curso em Florença, e expôs em Veneza, na Suíça, em Paris, amou, foi feliz, foi infeliz, separou, juntou, sofreu; em 1925 estava enjoado da arte acadêmica, foi deixando seu lirismo correr solto, como
se estivesse pintando por música.
Em 1929, veio para o Brasil, ganhou prêmios, ensinou, morou em Copacabana
em Itatiaia, redescobriu o Brasil e descobriu Minas, e contou tudo isso - a gente, as casas, as montanhas, as flores, as igrejas, as festas de São João - na arte mais autêntica, mais simples, mais feliz que já se fez neste país.
Um amigo encontrou-o um dia em Ouro Preto, ele parece que tinha tomado umas e outras, disse: "Belas moças aqui, lindas moças..."
Com o mesmo lirismo puro do menino de Petrópolis, 1905.
 
Publicada no Diário de Notícias - 2 de setembro de 1969 

Um comentário:

  1. Rubem Braga é mu ídolo dos ídolos, Cirandeira.
    Seus textos são, pra mim, uma manifestação da existência de Deus.

    beijão

    R.

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