DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

27/06/2017

Trabalho após a morte




 
 
por Janderson Lacerda *
 
Edgar morreu aos 81 anos, enquanto operava um torno de CNC, vítima de um infarto fulminante. Apesar de ser “Católico Apostólico Romano” (como gostava de dizer) seu funeral não foi realizado por um padre. Isso porque, a Igreja Católica terceirizou o serviço das missas de corpo presente. Por conta disto, um pastor neopentecostal foi enviado; e apesar das diversas recomendações e preces do sacerdote, Edgar acordou no purgatório com o barulho ensurdecedor de uma sirene. Confuso e transpirando muito, viu um homem baixo, barrigudo, de capacete, segurando com a mão direita uma prancheta, aproximar-se rapidamente.
 
— Levante-se, levante-se! Está pensando que aqui é um SPA?
— Em que lugar eu estou? (Questionou Edgar).
— Você morreu e está no purgatório.
— Eu?
Não, minha mãe! É claro que é você! E olha se quiser ir para o descanso eterno, já vou lhe avisar: terá que trabalhar muito!
—Descanso eterno?
—É seu burro: o céu! Ou você prefere ficar aqui no purgatório?
—Não, não!
—Então trate de se levantar; coloque o uniforme e vá trabalhar. Há muito serviço na carvoaria...
—Sim, senhor...
Edgar trabalhou duro, sem um dia, sequer, de descanso. E depois de 144 anos, 11 meses, 15 dias e 2h45 minutos foi chamado, novamente, por seu encarregado:
— O negócio é o seguinte: tire seu uniforme, pois, finalmente, você irá para o descanso eterno.
—Deus seja louvado! (Bradou Edgar).
O homem, então, retirou o uniforme e foi conduzido ao céu. Chegando ao paraíso, viu diversas pessoas: mulheres e homens, jovens e crianças; todos descansando à beira de um lago celestial, repleto de belas flores e pedras preciosas que ornamentavam todo lugar.
Edgar sentou-se; tocou com a ponta dos dedos na água e quando pensou que poderia desfrutar do sono dos justos, ouviu, novamente, o barulho da sirene... Uma confusão generalizada tomou conta do paraíso. Até que uma voz forte ecoou e estremeceu todo o céu:
— Atenção, Edgar Francisco Oliveira da Silva compareça à gerência. Edgar Francisco Oliveira da Silva compareça, imediatamente, à gerência!
Sem saber ao certo o que acontecia, Edgar caminhou apressado, ao lado de dezenas de anjos...
— O senhor é o Edgar Francisco Oliveira da Silva?
— Sim, sou eu!
— Muito prazer sou seu encarregado. Só quero dizer que o senhor irá reencarnar hoje: é hora de retornar à terra.


* Extraído de  jornalggn.com.br

22/06/2017

Graça Pires - Uma claridade que cega



 
Hesitantes, as palavras procuram um ponto de partida,
um recomeço.
Manejo a corda de amarrar
as dobras do tempo
diluindo os nós de sangue
no recuo dos lábios.
Quero descobrir, num vinco de texto,
a caligrafia ajustada ao barro
que molda um favo de puríssima luz
só visível em gramáticas de espanto.
 
 
***
 
Neste momento dou ao meu perfil
a configuração de uma haste
que, ao primeiro sopro do vento,
adivinha um fogo posto nas palavras.
Conheço o rigor das noites
e o alarmante traço
da obsessão pelas trevas
que me cingem os braços
quando o reflexo do luar
incide nas manchas do meu rosto
e com os mais antigos olhos
posso rever o passado:
tantas vezes vida, tantas vezes morte.
 
***
 
Lentos os dias. Lento o vazio das ruas.
Lentos os caminhos sulcados pelas veias.
Tão lentos que um lento gesto
me bastava para conter um verso
por mais silente que fosse.
Agora, as palavras dançam à minha volta.
São serpentinas de todas as cores
enroladas ao corpo.
Difíceis de domar fragmentam-se, voam.
Como vultos imprecisos
no transtorno das mãos.
 
***
 
 
Impossível encontrar o esteio certo
para entrelaçar a subtil anuência da fala.
As palavras, essas
são arrastadas pelo vento
que geme nas montanhas
onde se pode olhar de frente
o imponderável declive da neve
que rasga no peito
uma claridade que cega.
 
***
 
Só folheio os jornais de vez em quando.
Quase tudo que se escreve
são golpes confusos
que abrem nas entranhas a impressão
de um mundo por entender.
A verdade chega-nos apenas
através do silêncio dos que sonharam
um tempo sem estas ruínas
que descarnam e sepultam
a mais valiosa esperança.
 
 
Graça Pires nasceu em Figueira da Foz (Portugal). É licenciada em História pela Universidade de Lisboa. Tem publicados: Outono: lugar frágil, Ortografia do olhar, Conjugar afectos, Uma certa forma de errância, O silêncio: lugar habitado, Uma claridade que cega, entre outros.

19/06/2017

Profético

Hyeronimus Bosch

 
Com as mãos prontas para fazer o mal o governante exige presentes, o juiz
aceita suborno, os poderosos impõem o que querem.
Todos tramam em conjunto.
 
 
Miquéias, profeta do século VIII a. C., morador do antigo Reino de Judá, capital de Jerusalém.

16/06/2017

Fractais

 
Alexandre Farto
 
 
fragmentos de palavras cintilam através do tempo por dias e noites multiplicando-se na mente - grãozinhos de pó que vagueiam no espaço em busca de uma trilha ainda que seja nas páginas brancas de um caderno - nelas não há espaço para vertigem desfiladeiros nem precipícios a transpor - apenas o caminhar de uma mão que tenta ouvir os sussurros do pensar nesse lusco-fusco dos dias; os dedos percorrem ruas imaginárias atravessam pontes circundam curvas de rios ora caudalosos ora turbulentos como se flutuassem entre nuvens de paixão e de espanto. O sussurro do vento alinhava e descostura, constrói e desconstrói palavras e sentimentos como no movimento das ondas de um mar silencioso bravio e turbulento...
 
na morada do eco as palavras ficam distorcidas, transformam-se em lamentos gritos gargalhadas ao relembrar o vivido, a refletir sobre o que ainda está por vir: um porvir não desejado, uma tragicomédia transformada em farsa.

11/06/2017

Uma fábula e uma parábola de Kafka

Mimese, ou realidade?


 
 
 
Pequena fábula
 
"Ah", disse o rato, "o mundo torna-se a cada dia mais estreito. A princípio era tão vasto que me dava medo, eu continuava correndo e me sentia feliz com o
fato de que finalmente via à distância, à direita e à esquerda, as paredes, mas
essas longas paredes convergem tão depressa uma para a outra, que já estou
no último quarto e lá no canto fica a ratoeira para a qual eu corro." - "Você só
precisa mudar de direção", disse o gato e devorou-o.
 
 
 
 
Desista! (ou Um comentário)
 
Era de manhã bem cedo, as ruas limpas e vazias, eu ia para a estação ferroviária. Quando confrontei um relógio de torre com o meu relógio, vi que já era muito mais tarde do que havia acreditado, precisava me apressar bastante;
o susto dessa descoberta fez-me ficar inseguro no caminho, eu ainda não conhecia bem aquela cidade, felizmente havia um guarda por perto, corri até ele e perguntei-lhe sem fôlego pelo caminho. Ele sorriu e disse:
- De mim você quer saber o caminho?
- Sim - eu disse -, uma vez que eu mesmo não posso encontra-lo.
- Desista, desista - disse ele e virou-se com um grande ímpeto, como as pessoas que querem estar a sós com o seu riso.
 
 
Franz Kafka (1883-1924)

08/06/2017

Um dia


Ulisses e as sereias
 
um dia
a gente ia ser homero
a obra nada menos que uma ilíada
 
depois
a barra pesando
dava pra ser aí um Rimbaud
um ungaretti um Fernando pessoa qualquer
um lorca um éluard um ginsberg
 
por fim
acabamos o pequeno poeta de província
que sempre fomos
por trás de tantas máscaras
que o tempo tratou como flores
 
Paulo Leminski
 

 
 
 
 
a cacunda do bobo é o poleiro do esperto
 
João Guimarães Rosa, em Sagarana


04/06/2017

Exortação aos crocodilos

Caravaggio
 
[...]
e a morte torna-se alheia, menor, distante, como vista da rua, uma silhueta no
interior de uma janela acesa onde não moramos, aquarelas, estantes, pessoas
e a morte com os outros, não conosco, com os outros, familiar, trazendo pratos,levando pratos ajudando na ceia, ocupando um dos três lugares do sofá,
amável risonha simpática, estudando-os sem pressa e escolhendo um deles sem
que se deem conta, ao observar a fotografia de um grupo sei que a morte é a
criatura sorrindo lá no fundo, meio apagada, que se parece com alguém amigo
de que não lembramos a idade nem o nome, um parente que esteve ali  o
tempo inteiro, anos seguidos, a fitar-nos do álbum e só no momento de nos vir
buscar se apresenta, discreto, delicado, ia apostar que com pena, a morte é um estranho com um pacotinho de bolos que nos cumprimenta de fugida  nas
escadas ou segura a porta do elevador à nossa espera, nos pergunta para que andar vamos e se despede numa inclinação de cabeça continuando a subir
[...]
a morte é esta com a qual me confundem se calha pintar-me, calçar-me,
arranjar-me, pôr brincos, eu não sou assim, não tenho bochechas demasiado
vermelhas, pálpebras exageradas, um batom tão intenso
 
 
Antônio Lobo Antunes, Lisboa,1942. Também é autor de Memória de elefante, Os cus de Judas, Conhecimento do inferno(trilogia), Manual dos inquisidores, Tratado das paixões da alma, A morte de Carlos Gardel.