DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

29/08/2017

"No ajuste de contas" *



A nossa burguesa finança governamental só conhece dois remédios para equilibrar os orçamentos: aumentar os impostos e cortar lugares de amanuenses e serventes. Fora desses dois paliativos, ela não tem mais beberagem de feiticeiro para curar a crônica moléstia do déficit.
Quanto a cortar lugares, é engraçado o que se passa na nossa administração. Cada ministro, e quase anualmente, arranja uma autorização para reformar o seu ministério. De posse dela, um, por exemplo, o da Guerra, realiza a sua portentosa obra e vem cá para fora blasonar que fez uma economia de sessenta e nove contos, enquanto o do Exterior, por exemplo, com a sua aumentou as despesas de sua pasta em mais de cem contos.
Cada secretário do presidente concebe que governo é só e unicamente o seu respectivo ministério e cada qual puxa a brasa para a sua sardinha.
Cabia ao presidente coordenar estes movimentos desconexos, ajustá-los, conjugá-los; mas ele nada faz, não intervém nas reformas e deixa correr o marfim, para não perder o precioso tempo que tem de empregar em satisfazer os hipócritas manejos dos caixeiros da fradalhada obsoleta ou em pensar nas coisas de sua politiquinha de aldeola.
Enquanto as reformas com as hipotéticas economias são em geral obra dos ministros, o aumento de imposto parte, em geral, dos nossos financeiros parlamentares. Eles torram os miolos para encontrar meios e modos de inventar novos; e, como bons burgueses que são, ou seus prepostos, sabem, melhor que o imperador Vespasiano, que o dinheiro não tem cheiro. Partem desse postulado que lhes remove muito obstáculo e muitas dificuldades e chegam até às latrinas, como aconteceu o ano passado.
Essa pesada massa de impostos, geralmente sobre gêneros de primeira necessidade, devendo ser democraticamente igual para todos, vem verdadeiramente recair sobre os pobres, isto é, sobre a quase totalidade da população brasileira, que é de necessitados e pobríssimos, de forma que as taxas dos Colberts da nossa representação parlamentar conseguem esta coisa maravilhosa, com as suas medidas financeiras: arranham superficialmente os ricos e apunhalam mortalmente os pobres. Pais da pátria!
Desde que o governo da República ficou entregue à voracidade insaciável dos políticos de São Paulo, observo que o seu desenvolvimento econômico é guiado pela seguinte lei: tornar mais ricos os ricos; e fazer mais pobres os pobres.
São Paulo tem muita razão e procede coerentemente com as suas pretensões; mas devia ficar com os seus propósitos por lá e deixar-nos em paz. Eu me explico. Os políticos, os jornalistas e mais engrossadores das vaidades paulistas não cessam de berrar que a capital de São Paulo é uma cidade europeia; e é bem de ver que uma cidade europeia que se preza não pode deixar de oferecer aos forasteiros o espetáculo de miséria mais profunda em uma parte de sua população.
São Paulo trabalha para isso, a fim de acabar a sua flagrante semelhança com Londres e com Paris; e podem os seus eupátridas estar certos que ficaremos muito contentes quando for completa, mas não se incomodem conosco, mesmo porque, além de tudo, nós sabemos com Lord Macaulay que, em toda a parte, onde existiu oligarquia, ela abafou o desenvolvimento do gênio.
Entretanto, não atribuirei a todos os financeiros parlamentares que têm proposto novos impostos e aumento dos existentes; não atribuirei a todos eles, dizia, tenções malévolas ou desonestas. Longe de mim tal coisa. Sei bem que muitos deles são levados a empregar semelhante panaceia, por mero vício de educação, por fatalidade mental que não lhes permite encontrar os remédios radicais e infalíveis para o mal de que sofre a economia da nação.
Quando se tratou aqui da abolição da escravatura negra, deu-se fenômeno semelhante. Houve homens que por sua generosidade pessoal, pelo seu procedimento liberal, pelo conjunto de suas virtudes privadas e públicas e alguns mesmo pelo seu sangue, deviam ser abolicionistas; entretanto, eram escravocratas ou queriam a abolição com indenização, sendo eles mais respeitáveis e temíveis inimigos da emancipação, por não se poder suspeitar da sua sinceridade e do seu desinteresse.
É que eles se haviam convencido desde meninos, tinham como artigo de fé que a propriedade é inviolável e sagrada; e, desde que o escravo era uma propriedade, logo…
Ora, os fundamentos da propriedade têm sido revistos modernamente por toda a espécie de pensadores e nenhum lhe dá esse caráter no indivíduo que a detém. Nenhum deles admite que ela assim seja nas mãos do indivíduo, a ponto de lesar a comunhão social, permitindo até que meia dúzia de sujeitos espertos e sem escrúpulos, em geral fervorosos católicos, monopolizem as terras de uma província inteira, títulos de dívida de um país, enquanto o Estado esmaga os que nada têm com os mais atrozes impostos.
A propriedade é social e o indivíduo só pode e deve conservar, para ele, de terras e outros bens, tão-somente aquilo que precisar para manter a sua vida e de sua família, devendo todos trabalhar da forma que lhes for mais agradável e o menos possível, em benefício comum.
Não é possível compreender que um tipo bronco, egoísta e mau, residente no Flamengo ou em São Clemente, num casarão monstruoso e que não sabe plantar um pé de couve, tenha a propriedade de quarenta ou sessenta fazendas nos estados próximos, muitas das quais ele nem conhece nem as visitou, enquanto, nos lugares em que estão tais latifúndios, há centenas de pessoas que não têm um palmo de terra para fincar quatro paus e erguer um rancho de sapê, cultivando nos fundos uma quadra de aipim e batata-doce.
As fazendas, naturalmente, estarão abandonadas; por muito favor, ele ou seus caixeiros permitirão que os desgraçados locais lá se aboletem, mas estes pobres roceiros que nelas vegetam, não se animam a desenvolver plantações, a limpá-las do mato, do sapê, da vassourinha, do carrapicho, porque, logo que o fizerem, o dono vendê-las-á a bom preço e com bom lucro sobre a hipoteca com que a obteve, sendo certo que o novo proprietário expulsá-los-á das terras por eles beneficiadas.
Na Idade Média e, mesmo no começo da Idade Moderna, os camponeses de França tinham contra semelhantes proprietários perversos que deixavam as suas terras en friche, o recurso do haro, e mesmo se apossavam delas para cultivá-las; mas a nossa doce e resignada gente da roça não possui essa energia, não tem mesmo um acendrado amor à terra e aos trabalhos agrícolas e procedem como se tivessem lido o artigo XVII da Declaração dos Direitos do Homem.
O que se diz com relação à propriedade imóvel, pode-se dizer para a móvel. Creio que é assim que os financistas denominam as apólices, moedas, títulos, etc.
O povo, em geral, não conhece esta engrenagem de finanças e ladroeiras correlativas de bancos, companhias, hipotecas, cauções, etc.; e quando, como atualmente, se sente esmagado pelo preço dos gêneros de primeira necessidade, atribui todo o mal ao taverneiro da esquina.
 
* Trechos do artigo escrito por Afonso Henriques de Lima Barreto(1881-1922), em 11.05.1918, no jornal carioca A.B.C.
 

28/08/2017

Quem é essa mulher? - Hombres necios *




Hombres necios que acusáis
a la mujer sin razón,
sin ver que sois la ocasión
de lo mismo que culpáis.
 
Si com ânsia sin igual,
solicitáis su desdén,
por que quereis que obren bien
si las incitáis al mal?
 
Combatís su resistência,
y luego com gravedad
decís que fue liviandad
lo que hizo la diligencia
 
Bien com muchas armas fundo
que lidia vuestra arrogância
pues em promessa e instancia
juntáis diablo carne y mundo
 
***
 
Homens néscios que acusais
as mulheres sem ter razão,
sem ver que sois a causa
daquilo de que a culpais.
 
Se com ânsia inigualável
solicitais seu desdém,
como quereis que hajam bem
se as incitais para o mal?
 
Combateis sua resistência,
para em seguida dizer
que foi leviandade
o que fez vossa diligência.
 
Com muitas armas
luta a vossa arrogância,
com promessas e solicitudes
juntais diabo, carne e mundo
 
*Sóror Juana Inés de la Cruz, monja católica, poetisa e dramaturga. Nasceu em Nepantia (México) em 1651 e faleceu em 1695.

21/08/2017

Quem é essa mulher ?




Segundo a mitologia grega a deusa Têmis foi uma das esposas de Zeus, o deus do Olimpo. Esse deus truculento e autoritário, reinava através da força, possuía
as mulheres que desejava, à revelia de suas vontades. E Têmis foi uma delas, mas, como era considerada uma mulher sábia, que percebia com agudeza os verdadeiros sentimentos humanos, Zeus permitiu-lhe, ou melhor, resolveu lhe dar uma compensação: seria considerada a representante da Justiça! Só que a lei não seria (nem nunca foi), elaborada por ela, mas por Zeus e seus conselheiros masculinos. Se a mulher fosse, de fato, o símbolo da justiça, com certeza nós mulheres, que somos a maioria absoluta da população mundial, não seríamos as principais vítimas da violência, no Brasil e quiçá, no mundo inteiro.
 
O tapa-olhos na deusa, longe de demonstrar sua imparcialidade diante dos fatos, revela o quanto temos sido impedidas de ver o mundo e os fatos como são de verdade, e de direito. Para completar esse embuste representado como o "símbolo da justiça", falta colocar um tapa-boca na figura da deusa!
Nada é eterno, muito menos a Lei, que não deve ser regida por divindades, mas
por seres humanos, mulheres e homens, de carne e osso!
 
Alguém já se perguntou por quê existem pouquíssimas mulheres nos tribunais de justiça, no Congresso Federal ou em cargos de chefia do poder público? Por quê os salários das mulheres são infinitamente inferiores aos dos homens?
 
É hora de arrancarmos essas vendas que tapam nossos olhos e nossas bocas!  

20/08/2017

A construção poética de Cora Coralina


 

As pedras

Ajuntei todas as pedras
Que vieram sobre mim
Levantei uma escada muito alta
E no alto subi
Teci um tapete floreado
E no sonho me perdi
Uma estrada,
Um leito,
Uma casa,
Um companheiro,
Tudo de pedra
Entre pedras
Cresceu a minha poesia
Minha vida...
Quebrando pedras
E plantando flores
Entre pedras que me esmagavam
Levantei a pedra rude dos meus versos.

Cora Coralina - Cidade de Goiás, 20.08.1889- Goiânia, 10.04.1985 


17/08/2017

Cegueira

Tribunal de Justiça legitima genocídio dos negros

 

"Quando um tribunal de justiça decide aplicar, como em uma humilhação pública no pelourinho, a desqualificação do ser humano não branco, se confirma a institucionalização do racismo e a legitimação do genocídio dos negros. É urgente se colocar visceralmente em oposição a este que tem sido o maior genocídio brasileiro. O qual, juntamente com o etnocídio e o feminicídio, é a estrutura central das formas de dominação e violência."



Por Edson Teles.

Em junho de 2013 era detido no Centro do Rio de Janeiro, em meio às manifestações contra o aumento das tarifas, Rafael Braga. Catador de material reciclável, Rafael estava próximo ao “local do crime”, apesar de não participar dos protestos, e carregava consigo duas garrafas de produtos de limpeza. Sob a alegação de porte de coquetéis molotov ele foi detido por policiais militares e a Justiça ordenou sua prisão provisória com posterior julgamento. Ao final (como se este tipo de acontecimento tivesse fim) foi condenado a 5 anos de detenção com sentença fundamentada no depoimento de um policial. As provas técnicas, favoráveis ao réu ou desqualificantes da acusação, foram desconsideradas nos laudos ajuntados ao processo. Rafael é negro, pobre, favelado. Como não poderia ser ele o criminoso?

No início de 2017, após um mês de regime semi-aberto (acabara de cumprir mais de 3 anos de privação de liberdade), foi novamente encarcerado. Pasmem: Rafael foi acusado de tráfico de drogas e associação criminosa por supostamente portar menos de um grama de maconha e 9 gramas de cocaína, além de um rojão. Apesar de testemunha corroborar a versão de Rafael de que teria sido uma detenção forjada, a versão aceita pela Justiça foi a do testemunho dos policiais. Afinal, ele é negro, favelado e pobre. Como não seria ele um traficante?
Recentemente, impetrado um habeas corpus por seus advogados em defesa de sua liberdade, desembargadores do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro negaram o pedido. Instância jurídica que legitima, com este ato, o genocídio do negro no Brasil.
Ao se negar habeas corpus a jovens pobres e negros não se trata necessariamente do cumprimento da lei. Porém, é a norma do ordenamento jurídico. São incontáveis as tentativas de liberdade, pedidas e negadas, pelas defensorias públicas em nome de adolescentes e jovens detidos sem direito à defesa e cujos encarceramentos se fundamentam somente em testemunhos de agentes de segurança. É clara a intenção dos juízes em manterem preso Rafael e outros jovens negros, com ou sem provas. São vários os casos em que indivíduos ricos que recebem a liberdade ou a troca de punição aos seus atos por internações, penas alternativas e, até mesmo, absolvição.
Mas por que manter um jovem negro na prisão sem provas seria um ato genocida, como afirma este texto?
Isto se deve ao racismo institucional, existente no judiciário, mas também nas polícias, nos sistemas educacionais e de saúde, nas universidades, no sistema de transporte público, nos partidos e nas organizações políticas. Assim como é difuso e disseminado nas práticas sociais e nas relações econômicas e culturais e nas mais enraizadas ocorrências do cotidiano.
Existe no país um racismo ao estilo brasileiro cuja fonte liberal discursiva são as ideias de “democracia racial” e “mestiçagem”, por muitos anos veiculadas como conhecimento inequívoco, inclusive nas principais universidades. Mas nada mais é do que uma política de embranquecimento e assimilação das “populações nativas”. Um processo “civilizatório” desenvolvimentista nacional.
Para uma criança negra e pobre nascer no país é preciso enfrentar um sistema de saúde racista. Segundo o Ministério da Saúde, através da campanha “Racismo faz mal à saúde” (2014), 66% das mortes em partos são de mulheres não brancas. As gestantes negras adentram ao SUS e, na maioria dos casos têm suas gestações mal acompanhadas, isto quando recebem este atendimento. Seus sofrimentos e reclamações, se ocorrem, são de modo geral desconsiderados. Diante de alguma gravidade, pouco é feito e alega-se sua condição de resistência à dor e ao sofrimento. Após o nascimento, enquanto 78% das mulheres brancas recebem orientação sobre amamentação, pouco mais da metade das mulheres negras recebem o mesmo tratamento. Se sobreviver ao nascimento, a criança negra (e também a indígena) tem o dobro de chance de falecer nos cinco primeiros anos de vida em relação à criança branca. Isto é genocídio.
As escolas destinadas aos pobres e negros, públicas e localizadas nas periferias, são cada vez mais de baixa qualidade e precárias, esquecidas pelo poder público. Segundo o PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), uma em cada quatro crianças abandonam a escola ainda no ensino fundamental. Em sua ampla maioria crianças negras. A evasão escolar se dá pela pobreza destes indivíduos, que desde muito cedo têm que se envolver em alguma atividade econômica. Bem como é o resultado da discriminação racial intramuros escolares e da ausência de repertório próprio da cultura afrodescendente nos currículos.
Tal como no sistema escravocrata, às meninas negras é imposto, desde cedo, o trabalho doméstico. Segundo dados da OIT (Organização Internacional do Trabalho), de 2013, 93% das crianças e adolescentes envolvidos em trabalho no país são meninas negras. Este é o genocídio da identidade e da dignidade desta população.
Na universidade, as recentes políticas afirmativas, tímidas diante do quadro de racismo existente, pouco transformaram a situação. Houve o acesso de indivíduos negros, em especial nas universidades públicas federais, mas mantendo uma proporção inegavelmente branca. O conteúdo dos currículos continua estudando metodologias e pensadores de uma tradição eurocêntrica, operando uma espécie de categorização da cultura e do pensamento negro como um saber menor, desqualificado e não autorizado. No quadro docente, assim como entre os pós graduandos, a presença de indivíduos não brancos atinge proporções ainda mais desiguais. Até hoje são quase nulos os programas de pesquisa acad6emica que possuem cotas raciais.
A violência policial tem sido o foco das campanhas e manifestações de movimentos negros e objetivamente nomeada por estes sujeitos de genocídio do negro brasileiro. Na idade de 21 anos, o jovem negro tem 147% maiores chances de ser assassinado do que um branco. E, infelizmente, no discurso de uma sociedade branca e masculinizada, de viés liberal, a instituição de proteção ao indivíduo é a que mais mata violentamente o jovem negro.
A designação de genocídio para o que ocorre no cotidiano da sociabilidade brasileira pode parecer, à primeira vista, um exagero emotivo e desproporcional. Afinal, o brasileiro nasceu e cresceu sob a ideia de que nestas terras se experimenta um sincretismo racial. O que vem ocorrendo com a população negra, desde sempre, mas agora com o incremento das máquinas políticas – suas tecnologias e estratégias de controle –, é um genocídio institucional e sistêmico. Justamente por seus aspectos cotidianos e discursivos se efetiva de modo silencioso e, para alguns, invisível, apesar de ser tão evidente como o cheiro do podre invadindo o olfato. Nos é tão próximo quanto um fenômeno que se encontra diante de nossos narizes.
Se faz urgente que sujeitos combatentes de genocídios outros, em momentos diversos, se coloquem visceralmente em oposição a este que tem sido o maior genocídio brasileiro. O qual, juntamente com o etnocídio e o feminicídio, é a estrutura central das formas de dominação e violência.
Quando um tribunal de justiça decide aplicar, como em uma humilhação pública no pelourinho, a desqualificação do ser humano não branco, se confirma a institucionalização do racismo e a legitimação do genocídio dos negros.
***
Edson Teles é doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), é professor de filosofia política na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Pela Boitempo, organizou com Vladimir Safatle a coletânea de ensaios O que resta da ditadura: a exceção brasileira (2010), além de contar com um artigo na coletânea Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas (2012). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.

Extraído de  https://blogdaboitempo.com.br

07/08/2017

Uma estrela chamada Clarice Lispector

 Giorgio de Chirico
 

Apelidada na França de “princesa da língua portuguesa”, Clarice Lispector escrevia como se pudesse salvar a vida de uma pessoa e aproximá-la da beleza silenciosa do mundo. Grande figura da literatura brasileira, por muito tempo permaneceu desconhecida na França. A recente publicação de suas cartas deve contribuir para sua difusão
por: Sébastien Lapaque *
28 de julho de 2017
                  
Comecemos pelo fim. Dois volumes de correspondências publicados no Brasil, ambos traduzidos entre 2015 e 2016 para o francês, permitiram aos admiradores de Clarice Lispector se aproximar intimamente da romancista intangível nascida Chaya Pinkhasovna Lispector, no dia 10 de dezembro de 1920, em Tchetchelnik, Ucrânia. Desembarcada no Nordeste brasileiro aos 2 anos de idade com seus pais para fugir da guerra civil, ela morreu no dia 9 de dezembro de 1977, no Rio de Janeiro. Na França, onde foi descoberta em 1954,2 as quinze obras de ficção publicadas a partir de 1978 pelas edições Des Femmes/Antoinette Fouque não foram capazes de provocar tal familiaridade com essa artista cuja obra evoca Franz Kafka pela angústia e Virginia Woolf pelo refinamento – e a personalidade de algumas das mais misteriosas estrelas da literatura universal, como Katherine Mansfield, Catherine Pozzi, Victoria Ocampo, Simone Weil e Sylvia Plath. O sorriso de “meia satisfação” – como ela descreve o de uma personagem – estampado em suas fotografias guardam intacto seu segredo. Desde Perto do coração selvagem, seu primeiro romance, aos 23 anos, até A hora da estrela, póstumo, cada um de seus livros parece ter sido escrito para construir um muro protetor entre ela e o mundo. Alguns julgaram hermético esse monumento de sensações sutis. A artista se defende, afirmando que ela era tão simples como Bach…
Mãe e filha, judia e cristã, cerebral e sensual, santa e feiticeira, humana e animal, da Europa e da América, ela assumiu sua “tentativa de ser duas”, como diz Ângela Pralini, que dialoga com “o autor” em Um sopro de vida, outro romance publicado após sua morte. Brasileira, pois defendia as perfeições da língua portuguesa e que esse era seu estado civil, Chaya – tornada Clarice – nasceu em uma família onde se falava iídiche. Leitora de A imitação de Jesus Cristo, que propõe uma ascese espiritual, mística, sem sinagoga nem igreja, ela não era praticante, mas foi enterrada segundo sua vontade no cemitério israelita do Caju, no Rio de Janeiro, sob uma lápide com seu nome inscrito em hebraico: “Chaya bat Pinkhas” (Chaya, filha de Pinkhas).
Essa mulher cosmopolita, de quem Giorgio de Chirico pintou um retrato e que foi homenageada com uma estátua de bronze em 2016 na praia do Leme, no Rio, falava muito bem francês, inglês e espanhol. Levava uma existência onírica e viajante na Itália, Suíça, Inglaterra, Estados Unidos, porém jurava – é preciso acreditar nela – que sentia saudade de seu país, do qual se dizia impregnada depois de ter conhecido “a verdadeira vida brasileira”, em Recife, Pernambuco. “Não sinto nenhum prazer em viajar. Adoraria estar perto de você […]. O mundo inteiro é levemente tedioso, eu acho. O que importa na vida é estar perto de quem amamos. Essa é a grande verdade do mundo. E, se existe um lugar especialmente simpático, é o Brasil”, escreve a uma de suas irmãs, em 1944.
Mais adiante, frequentaria embaixadas e cenáculos literários com o mesmo leve fastio, à exceção talvez de Paris, onde perseguia as lembranças de Marcel Proust e prestava atenção às vozes de François Mauriac, Julien Green e Paul Valéry. Durante quinze anos, seguiu seu marido, Maury Gurgel Valente, um de seus colegas na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro e diplomata no Itamaraty, com quem se casou em 1943 e teve dois filhos. Viveu com ele até 1959, antes de se divorciar, cansada de suas infidelidades: a mentira, a fraude e a promessa jurada são alguns temas ocasionais em sua obra. Com problemas materiais constantes nos últimos anos de vida, escreveria crônicas para os jornais Correio da Manhã e Jornal do Brasil e para a revista Manchete, além de contos para O Estado de S. Paulo, e traduzia obras de Jonathan Swift, Júlio Verne, Oscar Wilde e Agatha Christie.
Orgulhosa de ser mulher, Clarice Lispector queria, contudo, escapar do senso comum do ser mulher. Anunciou-o a uma de suas irmãs em uma carta escrita em Belém, sobre os rios da Amazônia, em julho de 1944. Texto surpreendente, em que a escritora desnuda seu coração e anuncia o caráter selvagem de suas personagens femininas – mesmo e talvez principalmente as vencidas, como Macabéa, inquietante imigrante nordestina em A hora da estrela: “Que me interessa que isso suceda a outras mulheres? O que para umas é condição da própria feminilidade noutras é a morte desta e de tudo o que é mais delicado. Sei que eu mesma não presto. Mas eu te digo: eu nasci para não me submeter; e se houver essa palavra, para submeter os outros. Não sei por que nasceu em mim desde sempre a ideia profunda de que sem ser a única nada é possível. […] Se eu fosse me modificar não me transformaria numa mulher normal e comum”. Todas as suas criaturas – Joana, em Perto do coração selvagem; Lori, em Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres; Ana, no fascinante conto intitulado “Amor”, da coletânea Laços de família; e Lucrécia, em A cidade sitiada – falam assim. Todas têm uma alma de mulher em um corpo de mulher, atravessam a violência, a covardia e a loucura dos homens como Lena Grove em William Faulkner e Sophie Zawistowska em William Styron.
As cartas dirigidas às irmãs mais velhas permitem escutar uma voz do coração de Clarice Lispector em geral abafada em suas obras, oprimidas pelo sentimento trágico da vida e pela impossibilidade do dizer – como A paixão segundo GH, “confissão penitente” que começa com uma série de travessões e em que uma mulher de classe média do Rio de Janeiro conta sobre seu encontro com uma barata. Contrariamente ao que se podia esperar em A maçã no escuro, sua obra anterior, ainda portadora de uma fé ingênua no futuro, não há mais lampejos de esperança nesse romance asfixiante. “Isso não é a eternidade, é a condenação.”
Remete-se à Metamorfose, de Kafka. Mas também a Monsieur Ouine, de Georges Bernanos, publicado no fim de 1943 em francês no Brasil, onde ele viveu a partir de 1938. Grande leitora, Clarice Lispector teria conhecido esse romance no qual o nada aspira o mundo e as palavras, assim como o ralo a água, no fundo da banheira? Quando apareceu Perto do coração selvagem, no mesmo ano, os críticos se perguntaram sobre as influências dessa prosista vinda de outro planeta cujo estilo contrastava com a maioria da produção da época. Entre eles, Álvaro Lins e Sérgio Milliet conheciam bem Bernanos e sua obra. Nenhum dos dois evoca uma relação possível. E Clarice Lispector não menciona, em suas cartas publicadas, o autor de L’Imposture e sua capacidade de fazer sentir a “dominação do infortúnio”. É ainda mais surpreendente que muitas delas sejam dirigidas a dois escritores de sua geração – Lúcio Cardoso e Fernando Sabino –, com os quais ela era ligada. Ambos liam Bernanos e o haviam encontrado em Minas Gerais.
Em Cartas perto do coração, a correspondência entre Lispector e Sabino, trocada entre 1946 e 1969, fala em história da literatura e arte do romance, mas não de Monsieur Ouine. Deslizam por artistas, compartilham com eles seus horrores, suas noites em claro e seus “carnavais sem alegria”. No início da amizade, Lispector havia escrito Perto do coração selvagem e O lustre. Em suas cartas a Fernando, ela evoca a gênese dolorosa de seus romances A cidade sitiada e A maçã no escuro, e de certos contos reunidos em 1960 no livro Laços de família, em geral perpassados por certo terror. Ela fala da coragem que deseja encontrar para dar um passo a mais em direção à obscuridade. “Cada um dos meus novos livros é tão hesitante e tímido quanto um primeiro”, confidencia. Tateando a noite da alma, Lispector não escreve seus livros com ideias, e sim com palavras. “A linguagem é meu esforço humano”, explica G. H., criatura à qual a romancista não deu um nome. A ausência de palavras não torna necessário o infortúnio, o inexprimível nem sempre se abre ao nada, mas às vezes a todo outro, todo Outro, contemplação, atenta ou recolhida – a possibilidade de uma alegria. O que não pode ser dito pode sempre ser vivido. G. H. mais uma vez: “Nunca! Nunca mais compreenderei o que eu disser. Pois como poderia eu dizer sem que a palavra mentisse por mim? Como poderei dizer senão timidamente assim: a vida se me é. A vida se me é, e eu não entendo o que digo. E então adoro…”.


*Sébastien Lapaque é escritor. Última obra publicada: Théorie d’Alger [Teoria de Argel], Actes Sud, Arles, 2016.

Le Monde Diplomatique Brasil – edição 118 – maio de 2017