DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

10/08/2013

Sobre a memória

 


(...) Tinha aprendido sem esforço o inglês, o francês, o português, o latim. Suspeito, entretanto, que não era muito capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. No absurdo mundo de Funes não havia senão pormenores, quase imediatos.
 
Funes, memorioso - Ficções, de Jorge Luís Borges
 
 
 
Como acontece que sejamos capazes de reconhecer uma pessoa querida, mesmo alguns anos depois(e depois que seu rosto se modificou), ou de reencontrar o caminho de casa todos os dias, ainda que nos muros existam novos cartazes, e que talvez a loja da esquina tenha sido redecorada com novas cores? Isso se dá porque, do rosto amado ou do trajeto habitual, conservamos só alguns traços fundamentais, como um esquema, que permanece invariado por trás de muitas modificações superficiais.(...)
Essa memória seletiva, tão importante para nos permitir sobreviver como indivíduos, funciona também em nível social e permite a sobrevivivência das comunidades. Desde os tempos em que a espécie começava a emitir seus primeiros sons significativos, as famílias e as tribos precisaram dos velhos. Talvez, antes, eles não tivessem utilidade e fossem descartados, quando já não serviam para encontrar comida. Mas, com a linguagem, os velhos se tornaram a memória da espécie: sentavam-se na caverna,  ao redor do fogo, e contavam o que havia acontecido( ou que se dizia haver acontecido, aí está a função dos  mitos) antes de os jovens nascerem. Antes de começar-se a cultivar essa memória social, o homem nascia sem experiência, não tinha tempo de fazê-la, e morria. Depois, um jovem de vinte anos era como se tivesse vivido cinco mil. Os fatos ocorridos antes dele, e aquilo que os anciãos tinham aprendido, passavam a fazer parte de sua memória.
Os velhos, que articulavam a linguagem para consignar a cada um as experiências dos que tinham precedido, representavam ainda, em seu nível mais evoluído, a memória orgânica, aquela registrada e administrada pelo nosso cérebro. Mas, com a invenção da escrita, assistimos ao nascimento de uma memória mineral. Digo mineral porque os primeiros signos foram gravados em tabuínhas de argila, ou esculpidos sobre pedras; porque faz parte da memória mineral também a arquitetura, visto que, das pirâmides egípicias às catedrais góticas, o templo era também um registro de números sacros, de cálculos matemáticos, e por intermédio de suas imagens ou de suas pinturas transmitia histórias, ensinamentos morais: em suma, constituía, como já foi dito, um enciclopédia em pedra.
 
escrita ideográfica
 
E assim como os primeiros ideogramas, caracteres cuneiformes, runas e letras alfabéticas tinham um suporte mineral, também o tem a mais atual das memórias, a dos computadores, cuja matéria-prima é o silício. Hoje, graças aos computadores, dispomos de uma memória social imensa: basta conhecer as modalidades de acesso aos bancos de dados e, sobre um tema qualquer, poderemos obter tudo o que convém saber, uma bibliografia de dez mil títulos sobre um único assunto. Mas não há silêncio maior do que o ruído absoluto, e a abundância de informação pode gerar a ignorância absoluta. Diante do imenso estoque de memória que o computador pode nos oferecer, sentimo-nos todos como Funes: obsedados por milhões de detalhes, poderemos perder todo critério de escolha.
 
HUMBERTO ECO,  em  A memória vegetal e outros escritos sobre bibliofilia



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