30/03/2024

Quando o escritor dá um "puxão de orelhas" no leitor *

 Ana Hatherly



Como a senhora pôde ser tão desatenta ao ler o último capítulo, madame? Nele eu já dissera que minha mãe não era papista - Papista! Perdoe-me, mas o senhor não afirmou nada disso. Madame, com sua licença, repito mais uma vez que o afirmei de modo claro, ao menos tão claro quanto as palavras, por inferência direta, são capazes de comunicar. - Senhor, neste caso devo haver pulado uma página. - Não, madame, a senhor não pulou sequer uma palavra. - Então eu cochilei, senhor. - Madame, meu orgulho não lhe faculta esse refúgio. - Pois bem, declaro, então, que nada sei a esse respeito. - Madame, eis a falta que lhe imputo; e, à guisa de castigo, insisto que a senhora volte imediatamente, ou melhor, assim que chegar ao próximo ponto final, releia todo o capítulo.

          Impus essa penitência à senhora não por capricho nem por crueldade, mas com a melhor das intenções; de modo que não pedirei desculpas quando ela retornar: - foi para censurar um hábito mui prejudicial que aflige milhares de outras pessoas - o de ler sempre em frente, mais em busca das aventuras do que da profunda erudição e conhecimento que um livro desta casta, se lido da forma adequada, haveria sem dúvida de propiciar.


*Laurence Sterne (Clonmem, Irlanda-  1713-1768) em A vida e as opiniões do cavaleiro Tritram Shandy

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