Todas as tardes entro no sol e ardo em chamas. Minhas cinzas o vento leva rumo ao zênite, e à noite as transforma em estrelas...
Todas as tardes entro no sol e ardo em chamas. Minhas cinzas o vento leva rumo ao zênite, e à noite as transforma em estrelas...
Dentro da noite por fim construída
há tempo para tudo, e muito espaço.
Longas janelas.
Cortinas corridas.
Nos armários vazios,
grandes chumaços de algodão
a preencher cada centímetro e gaveta.
Na parede, um termômetro no qual
ninguêm dá corda há muito tempo.
Nas prateleiras, livros entulhados
de palavras que escorrem devagar,
formando umas poças ralas no chão.
É uma espécie de véspera. Calados,
os cômodos esperam o raiar de
alguma coisa como um dia. Ou não.
( de Nenhum mistério, 2018)
Toda vida é provisória,
todo poema é fragmento.
Cada dia, cada hora, cada verso
é só um momento de alguma totalidade
que você sequer concebe.
Viva e escreva e não se abale.
Você não é o que você escreve.
( de Fim de verão, 2022)
Paulo Henriques Britto, nasceu no Rio de Janeiro em 1951. É poeta, contista e tradutor.
Saudade de mim..., da chuva que caía em pedaços, de estrelas brilhantes rimbombando em meus ouvidos feito o canto dos passarinhos; saudade da chuva que regava meu verde bosque perfumado de fragrâncias primaveris e cheio de abismos inexplorados. Saudade de um não-ser querendo ser e não sendo o desejado, germinando entre as nuvens pensamentos mergulhados em águas desconhecidas. Uma saudade misturada com o vivido, e mais com o que viveria impregnada de silêncios, de dúvidas, mas mais do que tudo isso: uma saudade da não-saudade, do nada, do antes de existir, sem ter morrido sem ter nascido; uma saudade metafísica. Alguns poderiam até dar-lhe um nome, mas se não cheguei sequer a nascer? Uma saudade de quando se é um nada, um grãozinho de areia, uma poeira a flutuar levemente vagando pelo espaço...
Ninguém cantará como os galos de outrora, sumiram os ovos e os quintais; quem irá subir e descer ad eternum com uma pedra nas costas? Não há sequer um José para ser interrogado, um Sísifo, que seja para o castigo. Não houve festas, todos sumiram. E a luz também faltou. Ovos galos quintais Sísifo José pedras rolam pelas ruas e avenidas das pequenas e grandes cidades mundo afora. E agora, Zeus?
Nossos pensamentos mais importantes são os que contradizem nossos sentimentos.
Paul Valéry
A solidão é um mundo povoado por devaneios, uma floresta de árvores de pensamentos isolados; de espantos e desejos. Em espiral circular, num movimento côncavo-convexo tentamos ser uma crisálida para na ponta dos dedos da noite moldarmos a argila dos nossos sonhos. As palmas das mãos espalmam-se sobre as palmas dos coqueiros, e o vento sopra para aplaudi-la com as ondas que vêm do mar.
Ai, ai, ai, Poesia qu'eu não consigo olhar pra ti;
o espelho está cego
a ilusão virou farelo que
a formiguinha não aguenta carregar nos ombros.
Meus olhos fechados tudo veem;
a poeira é branca
e da pedra de amolar pensamentos saltam
palavras correnteza abaixo.
O que acontece contigo, Poesia
quando te vendem a qualquer um
e esse um desaparece da face da terra
deixando apenas pinceladas
de sangue nas paredes da alma
feito natureza morta?
Sou filha do samba, do frevo e da batucada
que ecoa das primitivas cavernas
e mesmo assim não consigo decifrar
os sentimentos dos pirilampos que
saltam em círculos desconexos
fantasiados de ti, Poesia!
Farid Belkahia
Às seis horas vi as badaladas do sino passarem entre suas pernas. - Onde já se viu uma coisa dessas? Desde quando sino tem pernas? - Não sei, só sei que elas passaram correndo em disparada, como loucas. E aí deu meia-noite. Fez-se um grande clarão, e então eu vi o olho dele: era um só, no meio da testa. Eis senão quando, tudo girou - as badaladas aceleraram os passos ao mesmo tempo que entoavam uma cantoria desritmada.
A mão soltou o lápis e o pensamento voou pra bem longe. O rascunho era um palimpsesto de antanho...
"De onde vêm as palavras? De onde vêm os versos? De onde eles vêm? Talvez viessem de todos os lugares. De todas as partes do meu corpo. De todo o barulho ao redor. De todas as vozes que li. Do coração silencioso de minha mãe. Da sujeira e da degradação do mundo. Então percebi que o poema é arbitrário. Não nasce nem morre. Não tem lógica nem função. Trata-se apenas de fluxos."
Trecho do romance De onde eles vêm, de Jeferson Tenório (Rio de Janeiro, 1977-), autor de O avesso da pele, ganhador do Prêmio Jabuti.
Passaram os dias os meses os anos... - Quantos? - Tantos, que por enquanto não dá pra contar os tiques dos dias, os taques da noite. Noites e dias, e as horas não passavam, emperradas num poste no meio da rua, debaixo da mesa - onde estariam aquelas horas aqueles dias e noites e meses e anos tantos - Quantos? E era um, eram dois, eram três, eram 100 mil, uma verdadeira legião ensandecida a correr atrás de um bezerro de ouro imaginário que alguém dissera ter visto voando, brilhante e incandescente como o sol do meio-dia; e esse alguém ficara desorientado, com as ideias obnubiladas de tanta claridez que as vistas ficaram turvas e doravante não será fácil atribuir um sentido a esses escritos que seguem na contramão do até aqui esboçado, porque são apenas fragmentos da imaginação ou do imaginário de acordo com a preferência ou o entendimento de quem os ler. Alguns dirão: quanta bobagem, que perda de tempo! Outros mais talvez perguntem: por quê então escrever? E lhes respondo: por quê não? O cérebro está cheio de perguntas sem resposta e de respostas sem perguntas...
- Minha velha, está na hora de tomar o comprimido para dormir. - Mas eu não quero dormir. Tem um filme na televisão que eu queria ver. - Acho melhor você não ficar acordada. Pode não gostar do filme e depois passa a noite em claro.
- Não. Você tome o seu comprimido e eu prefiro ficar acordada. - Mas eu não sei tomar o meu comprimido sem você tomar o seu. Acho que não vou dormir se tomar o comprimido sozinho. - Experimente, Artur. Só esta noite. - Estamos tão acostumados que, se os dois comprimidos não forem tomados juntos, acho que um não faz efeito. - Ah, Artur, você é a cruz da minha vida, Será possível que eu não possa nem ao menos rever um filme de Cary Grant? - Estou te estranhando, Lindaura. Nunca pensei que você tivesse paixão por esse Cary Grant. - Muito bonito, cena de ciúmes a essa altura da vida. Trinta e oito anos de fidelidade, e você me vem com uma coisa dessas. Você se esquece que, quando a Ginger Rogers passou o carnaval no Rio, o seu assanhamento não teve limites. Não sossegou enquanto não pediu a ela um autógrafo e Deus sabe o que mais. - Nunca tive nada com a Ginger Rogers. Juro! - Não teve porque ela não deu bola. Quer saber de uma coisa, Artur? Você diz que o seu comprimido sozinho não faz efeito. Então, tome também o meu. Tome os dois, tome cinco ou dez, e me deixe em paz curtindo o meu Cary Grant!
Carlos Drummond de Andrade, em Contos plausíveis (1981)