DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

02/06/2025

Desmonte

 




Um faz de conta onde o hoje já é o amanhã, onde o que era um conto da carochinha é a mais dura realidade. Você vai sem querer, e não volta jamais porque a travessia é longa, cheia de idas e vindas pela estrada, mas sem retorno. Você sai pra ganhar a vida e ela te consome sem que te apercebas que ela é cheia de veredas, de encruzilhadas e labirintos e, de perdas irrecuperáveis. E como você pensa, ou melhor, imagina que viverá sempre protegido como se ainda estivesse na placenta da mamãe, como se pudesse viver eternamente em berço esplêndido, a bolha era de borracha! Ou era de vidro? Não sei. Dizem as más línguas que era de sabão...!

21/05/2025

"Alcóolicas"

 




É crua a vida, alça de tripa e metal.

Nela despenco: pedra mórula ferida.

É crua e dura a vida

Como um naco de víbora,

Como-a no livor da língua

Tinta, lavo-te os antebraços, Vida,

Lavo-me no estreito-pouco do meu corpo,

Lavo as vigas dos ossos, minha vida

Tua unha plúmbea, meu casaco rosso.

E perambulamos de coturno pela rua

Rubras, góticas, altas de corpo e copos.

A vida é crua.

Como o bico dos corvos,

E podia ser tão generosa e, mítica: arroio, lágrima

Olho d'água, bebida.

A vida é líquida


Hilda Hilst - Jaú(SP) 1930-2004

28/04/2025

" Recuerdos "




Ainda era uma criança quando o sol pôs-se a cair. Carregava-o entre os dedos ignorando os perigos do fogo, sem conhecer as dores e as cicatrizes que seus raios deixariam; ouvia o galo cantar e cantarolava sua própria canção. Entre o sol e a lua confundia a noite com o dia. Acabou perdendo a linha quando a agulha escorregou de sua mão: sua boca foi ficando larga como uma saia desfranzida cujos pontos se soltaram da barra e começaram a deslizar sobre o amplo e interminável salão da linguagem...

19/04/2025

(Des)conversa

 

René Magritte



- Olá, como vai?, comeu muitos sonhos? Quero dizer, de valsa...Se foram sonhos, continue dormindo, mas amanhã acorde! Se de valsa, então dance, isto é, o tempo da valsa já passou, não há mais castelos encantados, nem príncipes! Se pelos menos ainda existissem sapos...Mas até os sapos estão em extinção...!?

- Foi, não foi?

10/04/2025

Entardesquecer

 


Todas as tardes entro no sol e ardo em chamas. Minhas cinzas o vento leva rumo ao zênite, e à noite as transforma em estrelas...  

06/04/2025

Dois poemas de Paulo Henriques Britto

 




Dentro da noite por fim construída

há tempo para tudo, e muito espaço.

Longas janelas. 

Cortinas corridas.

Nos armários vazios,

grandes chumaços de algodão

a preencher cada centímetro e gaveta.

Na parede, um termômetro no qual

ninguêm dá corda há muito tempo.

Nas prateleiras, livros entulhados

de palavras que escorrem devagar,

formando umas poças ralas no chão.

É uma espécie de véspera. Calados,

os cômodos esperam o raiar de

alguma coisa como um dia. Ou não.

( de Nenhum mistério, 2018)


Toda vida é provisória,

todo poema é fragmento.

Cada dia, cada hora, cada verso

é só um momento de alguma totalidade

que você sequer concebe.

Viva e escreva e não se abale.

Você não é o que você escreve.

( de Fim de verão, 2022)


Paulo Henriques Britto, nasceu no Rio de Janeiro em 1951. É poeta, contista e tradutor.

29/03/2025

De outra saudade...

 




Saudade de mim..., da chuva que caía em pedaços, de estrelas brilhantes rimbombando em meus ouvidos feito o canto dos passarinhos; saudade da chuva que regava meu verde bosque perfumado de fragrâncias primaveris e cheio de abismos inexplorados.                                  Saudade de um não-ser querendo ser e não sendo o desejado, germinando entre as nuvens pensamentos mergulhados em águas desconhecidas. Uma saudade misturada com o vivido, e mais com o que viveria impregnada de silêncios, de dúvidas, mas mais do que tudo isso: uma saudade da não-saudade, do nada, do antes de existir, sem ter morrido sem ter nascido; uma saudade metafísica. Alguns poderiam até dar-lhe um nome, mas se não cheguei sequer a nascer? Uma saudade de quando se é um nada, um grãozinho de areia, uma poeira a flutuar levemente vagando pelo espaço...

19/03/2025

Nada além

 



Ninguém cantará como os galos de outrora, sumiram os ovos e os quintais; quem irá subir e descer ad eternum com uma pedra nas costas? Não há sequer um José para ser interrogado, um Sísifo, que seja para o castigo. Não houve festas, todos sumiram. E a luz também faltou.                                                                              Ovos galos quintais Sísifo José pedras rolam pelas ruas e avenidas das pequenas e grandes cidades mundo afora.                                                                                   E agora, Zeus?   

07/03/2025

Divagações

 




Nossos pensamentos mais importantes são os que contradizem nossos sentimentos.

Paul Valéry


A solidão é um mundo povoado por devaneios, uma floresta de árvores de pensamentos isolados; de espantos e desejos. Em espiral circular, num movimento côncavo-convexo tentamos ser uma crisálida para na ponta dos dedos da noite moldarmos a argila dos nossos sonhos. As palmas das mãos espalmam-se sobre as palmas dos coqueiros, e o vento sopra para aplaudi-la com as ondas que vêm do mar. 

02/03/2025

Já que é carnaval...

 




Ai, ai, ai, Poesia qu'eu não consigo olhar pra ti;

o espelho está cego

a ilusão virou farelo que

a formiguinha não aguenta carregar nos ombros.

Meus olhos fechados tudo veem;

a poeira é branca

e da pedra de amolar pensamentos saltam

palavras correnteza abaixo.


O que acontece contigo, Poesia

quando te vendem a qualquer um

e esse um desaparece da face da terra

deixando apenas pinceladas

de sangue nas paredes da alma

feito natureza morta?


Sou filha do samba, do frevo e da batucada

que ecoa das primitivas cavernas

e mesmo assim não consigo decifrar

os sentimentos dos pirilampos que

saltam em círculos desconexos

fantasiados de ti, Poesia!