Ainda era uma criança quando o sol pôs-se a cair. Carregava-o entre os dedos ignorando os perigos do fogo, sem conhecer as dores e as cicatrizes que seus raios deixariam; ouvia o galo cantar e cantarolava sua própria canção. Entre o sol e a lua confundia a noite com o dia. Acabou perdendo a linha quando a agulha escorregou de sua mão: sua boca foi ficando larga como uma saia desfranzida cujos pontos se soltaram da barra e começaram a deslizar sobre o amplo e interminável salão da linguagem...
CIRANDEIRA
DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)
28/04/2025
19/04/2025
(Des)conversa
René Magritte
- Olá, como vai?, comeu muitos sonhos? Quero dizer, de valsa...Se foram sonhos, continue dormindo, mas amanhã acorde! Se de valsa, então dance, isto é, o tempo da valsa já passou, não há mais castelos encantados, nem príncipes! Se pelos menos ainda existissem sapos...Mas até os sapos estão em extinção...!?
- Foi, não foi?
10/04/2025
Entardesquecer
Todas as tardes entro no sol e ardo em chamas. Minhas cinzas o vento leva rumo ao zênite, e à noite as transforma em estrelas...
06/04/2025
Dois poemas de Paulo Henriques Britto
Dentro da noite por fim construída
há tempo para tudo, e muito espaço.
Longas janelas.
Cortinas corridas.
Nos armários vazios,
grandes chumaços de algodão
a preencher cada centímetro e gaveta.
Na parede, um termômetro no qual
ninguêm dá corda há muito tempo.
Nas prateleiras, livros entulhados
de palavras que escorrem devagar,
formando umas poças ralas no chão.
É uma espécie de véspera. Calados,
os cômodos esperam o raiar de
alguma coisa como um dia. Ou não.
( de Nenhum mistério, 2018)
Toda vida é provisória,
todo poema é fragmento.
Cada dia, cada hora, cada verso
é só um momento de alguma totalidade
que você sequer concebe.
Viva e escreva e não se abale.
Você não é o que você escreve.
( de Fim de verão, 2022)
Paulo Henriques Britto, nasceu no Rio de Janeiro em 1951. É poeta, contista e tradutor.
29/03/2025
De outra saudade...
Saudade de mim..., da chuva que caía em pedaços, de estrelas brilhantes rimbombando em meus ouvidos feito o canto dos passarinhos; saudade da chuva que regava meu verde bosque perfumado de fragrâncias primaveris e cheio de abismos inexplorados. Saudade de um não-ser querendo ser e não sendo o desejado, germinando entre as nuvens pensamentos mergulhados em águas desconhecidas. Uma saudade misturada com o vivido, e mais com o que viveria impregnada de silêncios, de dúvidas, mas mais do que tudo isso: uma saudade da não-saudade, do nada, do antes de existir, sem ter morrido sem ter nascido; uma saudade metafísica. Alguns poderiam até dar-lhe um nome, mas se não cheguei sequer a nascer? Uma saudade de quando se é um nada, um grãozinho de areia, uma poeira a flutuar levemente vagando pelo espaço...
19/03/2025
Nada além
Ninguém cantará como os galos de outrora, sumiram os ovos e os quintais; quem irá subir e descer ad eternum com uma pedra nas costas? Não há sequer um José para ser interrogado, um Sísifo, que seja para o castigo. Não houve festas, todos sumiram. E a luz também faltou. Ovos galos quintais Sísifo José pedras rolam pelas ruas e avenidas das pequenas e grandes cidades mundo afora. E agora, Zeus?
07/03/2025
Divagações
Nossos pensamentos mais importantes são os que contradizem nossos sentimentos.
Paul Valéry
A solidão é um mundo povoado por devaneios, uma floresta de árvores de pensamentos isolados; de espantos e desejos. Em espiral circular, num movimento côncavo-convexo tentamos ser uma crisálida para na ponta dos dedos da noite moldarmos a argila dos nossos sonhos. As palmas das mãos espalmam-se sobre as palmas dos coqueiros, e o vento sopra para aplaudi-la com as ondas que vêm do mar.
02/03/2025
Já que é carnaval...
Ai, ai, ai, Poesia qu'eu não consigo olhar pra ti;
o espelho está cego
a ilusão virou farelo que
a formiguinha não aguenta carregar nos ombros.
Meus olhos fechados tudo veem;
a poeira é branca
e da pedra de amolar pensamentos saltam
palavras correnteza abaixo.
O que acontece contigo, Poesia
quando te vendem a qualquer um
e esse um desaparece da face da terra
deixando apenas pinceladas
de sangue nas paredes da alma
feito natureza morta?
Sou filha do samba, do frevo e da batucada
que ecoa das primitivas cavernas
e mesmo assim não consigo decifrar
os sentimentos dos pirilampos que
saltam em círculos desconexos
fantasiados de ti, Poesia!
19/02/2025
Obliquação 2
Farid Belkahia
Às seis horas vi as badaladas do sino passarem entre suas pernas. - Onde já se viu uma coisa dessas? Desde quando sino tem pernas? - Não sei, só sei que elas passaram correndo em disparada, como loucas. E aí deu meia-noite. Fez-se um grande clarão, e então eu vi o olho dele: era um só, no meio da testa. Eis senão quando, tudo girou - as badaladas aceleraram os passos ao mesmo tempo que entoavam uma cantoria desritmada.
A mão soltou o lápis e o pensamento voou pra bem longe. O rascunho era um palimpsesto de antanho...
11/02/2025
"De onde vêm as palavras? De onde vêm os versos? De onde eles vêm? Talvez viessem de todos os lugares. De todas as partes do meu corpo. De todo o barulho ao redor. De todas as vozes que li. Do coração silencioso de minha mãe. Da sujeira e da degradação do mundo. Então percebi que o poema é arbitrário. Não nasce nem morre. Não tem lógica nem função. Trata-se apenas de fluxos."
Trecho do romance De onde eles vêm, de Jeferson Tenório (Rio de Janeiro, 1977-), autor de O avesso da pele, ganhador do Prêmio Jabuti.