DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

12/07/2024

Das Indefinições




Bem que podia escrever alguma coisa, mas o que é

alguma coisa? 

Mesmo sem saber bem sobre o quê, sobre quem ou

ou tal e qual e etecétera e tal, porque "ao fim e ao

cabo", como dizem agora (virou moda!?)é tudo igual

mesmo pondo e tirando de lugar. 

Nada está no mesmo lugar ou tudo ou quase tudo está

fora-de-lugar, fora-da-lei que nem nos tempos idos e 

sofridos dos reis onde reinava o "cala a boca", o 

calabouço.

Parece até que foi ontem...foi? Não foi?   Ah! Tá tão

recente...mas tem gente que nem se lembra mais   ou

faz de conta que; outros nunca ouviram falar sobre....

Não sei se é refluxo ou reflexo de um antigo fluxo sem

nexo nem amplexo pro dias e noites de hoje em dia...

pois já lá se vão muitos desvios e desvãos entre tantos

devaneios alheios a certos interesses, ou quem sabe...

alhures, sem nenhum parentesco à vista ou a prazo...

sem nenhuma terra achada nos cais, nos aeroportos  e

rodoviárias desse nosso país...!? "Quem acha vive    se

perdendo", como dizia o poeta Agenor, que de sua 

Cartola nos deixou um legado de lindas pérolas para o

nosso cancioneiro popular. Entre achados   e  perdidos

mortos e feridos, vamos endoscopiando em busca    de

alguns pólipos, a ver se saudáveis ou malignos,   para

mantê-los ou extirpá-los.

25/06/2024


Há tempos não escrevo nada. Não mais sonhos apenas

vigílias; não mais cantos: da mesa, da sala, nem do 

quarto, e o da voz arribou com os pássaros que se 

foram em debandada para além da Taprobana, fugindo

das pessoas. - Fazer o quê? - Ora, vá ser o que lhe der

na telha! - Não há mais telhas, foram-se com a 

enxurrada. Agora só zinco quente, um fogaréu 

devastando árvores, pássaros, répteis esturricados e 

toda a biodiversidade que existia. As estrelas também

se foram. Será   que   ainda   existem  pirilampos?  Ou

vagalumes? 


- Quando o bicho homem se for todos eles voltarão!

05/06/2024

 


"Papel , amigo papel, não recolhas tudo o que escrever esta pena vadia.

Querendo servir-me, acabarás desservindo-me, porque se acontecer que

eu me vá desta vida, sem tempo de te reduzir a cinzas, os que me lerem

depois da missa de sétimo dia, ou antes, ou ainda antes do enterro, po -

dem cuidar que te confio cuidados de amor.

Não, papel. Quando sentires que insisto nessa nota, esquiva-te da minha

mesa, e foge. A janela aberta te mostrará um pouco de telhado,  entre  a

rua e o céu, e ali ou acolá acharás descanso. Comigo, o mais que  podes

achar é esquecimento, que é muito, mas não é tudo; primeiro que     ele

chegue. virá a troça dos malévolos ou simplesmente vadios."


Machado de Assis em Memorial de Aires.

25/05/2024

HESITAÇÃO

 




O HOMEM no meio da escada hesitava há vários dias entre subir e descer.

Os anos passavam e o homem continuava a hesitar: subo ou desço?

Até que certo dia a escada caiu.


GOÇALO M. TAVARES, em O senhor Brecht

20/05/2024

O "olho clínico" de Machado de Assis *

 




A impunidade é o colchão dos tempos; dormem-se aí sonos deleitosos. 

Casos há em que se podem roubar milhares de contos de réis...e acordar

com eles na mão.


Vaca e dinheiro são, como se sabe, expressões correlatas; diz-se vaca 

do orçamento; diz-se também: o pelintra meteu a boca na teta, quando 

se quer deprimir alguém, que andou mais depressa que nós, etc.


Mete dinheiro no bolso. Vende-te bem, não compres mal os outros, 

corrompe e sê corrompido, mas não te esqueças do dinheiro, que é com 

ele que se compram os melões. Mete dinheiro no bolso.



* Pequenos trechos de crônicas escritas por Machado de Assis, da série

"Balas de Estalo" (ao todo foram 126), entre 1883-1886, publicadas no 

jornal A Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro.

28/04/2024

Memória, montagem *

 Beatriz Milhazes




O poema é um animal;

nenhum poema se destina ao leitor;

ou, como um quadro, assume o poder dos feitiços, objectos mágicos ou

 instrumentos de esconjurar os espíritos, ou a emoção, ou o 

inconsciente,

 guardando o homem de uma oculta dependência de tudo;

porque se vive dos lucros da superstição;

e é forçoso existir a natureza, outorgada às nossas violações;

ou que as regras de organização do poema são as mesmas da natureza, 

mas os elementos com que o poema se organiza não estão na natureza;

e o poema não transcreve o mundo, mas é rival do mundo.

São casas de Aristóteles, Benjamin, Picasso, Huidobro, Malraux.

Casas para onde se entra e de onde se sai, por portas travessas ou

 janelas, por telhados e escadas derradeiras, pela frente, abrindo túneis

 nas caves, escrevendo torto em linhas direitas, ateando fogos, pelas

 traseiras.


Extraído de PHOTOMATON & VOX, de Herberto Helder, Funchal (Ilha da

 Madeira), 1930-2015.

30/03/2024

Quando o escritor dá um "puxão de orelhas" no leitor *

 Ana Hatherly



Como a senhora pôde ser tão desatenta ao ler o último capítulo, madame? Nele eu já dissera que minha mãe não era papista - Papista! Perdoe-me, mas o senhor não afirmou nada disso. Madame, com sua licença, repito mais uma vez que o afirmei de modo claro, ao menos tão claro quanto as palavras, por inferência direta, são capazes de comunicar. - Senhor, neste caso devo haver pulado uma página. - Não, madame, a senhor não pulou sequer uma palavra. - Então eu cochilei, senhor. - Madame, meu orgulho não lhe faculta esse refúgio. - Pois bem, declaro, então, que nada sei a esse respeito. - Madame, eis a falta que lhe imputo; e, à guisa de castigo, insisto que a senhora volte imediatamente, ou melhor, assim que chegar ao próximo ponto final, releia todo o capítulo.

          Impus essa penitência à senhora não por capricho nem por crueldade, mas com a melhor das intenções; de modo que não pedirei desculpas quando ela retornar: - foi para censurar um hábito mui prejudicial que aflige milhares de outras pessoas - o de ler sempre em frente, mais em busca das aventuras do que da profunda erudição e conhecimento que um livro desta casta, se lido da forma adequada, haveria sem dúvida de propiciar.


*Laurence Sterne (Clonmem, Irlanda-  1713-1768) em A vida e as opiniões do cavaleiro Tritram Shandy

13/03/2024

Sobre o Tempo *

 



Soneto 123


De me fazer mudar, não te gabes, ó Tempo.

As pirâmides que de novo construíste

para mim nada têm de novo nem de estranho;

são elas do já visto a imagem disfarçada.

Os dias breves são: deixamo-nos arrebatar

por coisas bem senis, mas dadas como novas, [...]

Desafio a um tempo, a ti e a teus anais:

não me espanta ou me encanta o presente ou o passado;

falsa a tua lembrança e falso o que se vê,

que se aumenta ou reduz por tua presa incessante.

Faço este voto ao qual sempre me apegarei:

Fiel sempre, apesar de ti, de tua foice.


*****


Soneto 77


Ao espelho verás declinar-te a beleza

e a volúvel montra ir-se teu rico tempo;

[...]

As rugas que um sincero espelho mostrará

far-te-ão relembrar a tumba escancarada;

na montra, a hora que foge a ti ensinará

que para a eternidade o tempo a furto avança.


* William Shakespeare - 1564-1616

26/02/2024

Degraus em grãos






Tentar desatar os nós de todos nós; os dedos das mãos como crisálidas,

 movimentam-se em espirais, até se tornar circular, num movimento

 côncavo convexo. 

Na ponta dos dedos da noite, moldar a argila dos sonhos do dia. 

Somos como cascas de árvores que no outono submergem em seu pró-

pio suor para tornar-se o sumo de novas sementes.

18/02/2024

A Brevidade *

 




Por que és tão breve?

Não amas mais, como outrora, o canto?

Quando jovem, não chegavas, nos dias de esperança,

nunca ao fim, quando cantavas!


Tal qual minha sorte é meu canto -

Queres ao arrebol banhar-te alegremente?

Foi-se! E a terra está fria.

E o pássaro da noite esvoaça 

incomodamente aos olhos teus.


* Friedrich Hölderlin - Laufen (Alemanha) 1770-1843

Tradução: Antonio Cícero



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Vai-me apertando amargo, o coração, se penso em como tudo passa e 

passa, quase sem deixar rastro.


Giacomo Leopardi - Recanati(Itália) 1798-1837