DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

10/07/2025

OBLIQUIDADE

 




Andava sempre em linha reta. Não se dobrava. Desdobrava-se. Se caía, era em pé. Certo dia foi dobrado e envelopado numa esquina. Paralelepipedou-se em quadriláteros caleidoscópicos só porque ouviu o cantar de um galo vindo não sabia ao certo de onde.    O que se sabe ao certo é que o galo está sendo cozido em banho-maria já que os quintais estão  desaparecendo...!

30/06/2025

Do pensar

 




Pensando sobre os pensamentos armazenados nesta imensa máquina que é o nosso cérebro, percebo que muitas ideias estarão perdidas para sempre nesse emaranhado de infinitas conexões sinápticas. O agora será imediatamente o passado daqui a um segundo e o futuro já será hoje; tudo é muito rápido, embora existam muitas coisas que andam a passos de tartaruga.Uma tartaruga pode viver muito mais do que os humanos: até 300 anos!, devagar e sempre, enquanto nós estamos tão mecanicamente cada dia mais acelerados que esbarramos logo ali: isso foi ontem? Quem foi que viu? Como disse o poeta e filósofo italiano Giacomo Leopardi, Vai-me apertando amargo o coração se penso em como tudo passa e passa quase sem deixar rastro.

 

19/06/2025

Sem resposta









A pergunta que a boca não responde:
 - O que posso sonhar? 
Na curva da estrada que bifurcou-se, muitas palavras se dispersaram; alonguei-me por caminhos já conhecidos. Perdi o voo do pássaro que me levaria para além de mim...Pedaços de estórias, retalhos e tijolos empilhados nas prateleiras da memória apenas testemunham o quanto  viver é provisório...



02/06/2025

Desmonte

 




Um faz de conta onde o hoje já é o amanhã, onde o que era um conto da carochinha é a mais dura realidade. Você vai sem querer, e não volta jamais porque a travessia é longa, cheia de idas e vindas pela estrada, mas sem retorno. Você sai pra ganhar a vida e ela te consome sem que te apercebas que ela é cheia de veredas, de encruzilhadas e labirintos e, de perdas irrecuperáveis. E como você pensa, ou melhor, imagina que viverá sempre protegido como se ainda estivesse na placenta da mamãe, como se pudesse viver eternamente em berço esplêndido, a bolha era de borracha! Ou era de vidro? Não sei. Dizem as más línguas que era de sabão...!

21/05/2025

"Alcóolicas"

 




É crua a vida, alça de tripa e metal.

Nela despenco: pedra mórula ferida.

É crua e dura a vida

Como um naco de víbora,

Como-a no livor da língua

Tinta, lavo-te os antebraços, Vida,

Lavo-me no estreito-pouco do meu corpo,

Lavo as vigas dos ossos, minha vida

Tua unha plúmbea, meu casaco rosso.

E perambulamos de coturno pela rua

Rubras, góticas, altas de corpo e copos.

A vida é crua.

Como o bico dos corvos,

E podia ser tão generosa e, mítica: arroio, lágrima

Olho d'água, bebida.

A vida é líquida


Hilda Hilst - Jaú(SP) 1930-2004

28/04/2025

" Recuerdos "




Ainda era uma criança quando o sol pôs-se a cair. Carregava-o entre os dedos ignorando os perigos do fogo, sem conhecer as dores e as cicatrizes que seus raios deixariam; ouvia o galo cantar e cantarolava sua própria canção. Entre o sol e a lua confundia a noite com o dia. Acabou perdendo a linha quando a agulha escorregou de sua mão: sua boca foi ficando larga como uma saia desfranzida cujos pontos se soltaram da barra e começaram a deslizar sobre o amplo e interminável salão da linguagem...

19/04/2025

(Des)conversa

 

René Magritte



- Olá, como vai?, comeu muitos sonhos? Quero dizer, de valsa...Se foram sonhos, continue dormindo, mas amanhã acorde! Se de valsa, então dance, isto é, o tempo da valsa já passou, não há mais castelos encantados, nem príncipes! Se pelos menos ainda existissem sapos...Mas até os sapos estão em extinção...!?

- Foi, não foi?

10/04/2025

Entardesquecer

 


Todas as tardes entro no sol e ardo em chamas. Minhas cinzas o vento leva rumo ao zênite, e à noite as transforma em estrelas...  

06/04/2025

Dois poemas de Paulo Henriques Britto

 




Dentro da noite por fim construída

há tempo para tudo, e muito espaço.

Longas janelas. 

Cortinas corridas.

Nos armários vazios,

grandes chumaços de algodão

a preencher cada centímetro e gaveta.

Na parede, um termômetro no qual

ninguêm dá corda há muito tempo.

Nas prateleiras, livros entulhados

de palavras que escorrem devagar,

formando umas poças ralas no chão.

É uma espécie de véspera. Calados,

os cômodos esperam o raiar de

alguma coisa como um dia. Ou não.

( de Nenhum mistério, 2018)


Toda vida é provisória,

todo poema é fragmento.

Cada dia, cada hora, cada verso

é só um momento de alguma totalidade

que você sequer concebe.

Viva e escreva e não se abale.

Você não é o que você escreve.

( de Fim de verão, 2022)


Paulo Henriques Britto, nasceu no Rio de Janeiro em 1951. É poeta, contista e tradutor.

29/03/2025

De outra saudade...

 




Saudade de mim..., da chuva que caía em pedaços, de estrelas brilhantes rimbombando em meus ouvidos feito o canto dos passarinhos; saudade da chuva que regava meu verde bosque perfumado de fragrâncias primaveris e cheio de abismos inexplorados.                                  Saudade de um não-ser querendo ser e não sendo o desejado, germinando entre as nuvens pensamentos mergulhados em águas desconhecidas. Uma saudade misturada com o vivido, e mais com o que viveria impregnada de silêncios, de dúvidas, mas mais do que tudo isso: uma saudade da não-saudade, do nada, do antes de existir, sem ter morrido sem ter nascido; uma saudade metafísica. Alguns poderiam até dar-lhe um nome, mas se não cheguei sequer a nascer? Uma saudade de quando se é um nada, um grãozinho de areia, uma poeira a flutuar levemente vagando pelo espaço...