DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

29/01/2022

Virá a morte e terá os teus olhos *

 



Virá a morte e terá os teus olhos,

esta morte que nos acompanha

de manhã até à noite, insone,

surda, como um remorso antigo

ou um vício absurdo. Os teus olhos

serão uma palavra inútil,

um grito reprimido, um silêncio.

Assim os vês todas as manhãs

quando sozinho te inclinas

diante do espelho. Ó cara esperança,

nesse dia saberemos também

que és a vida e és o nada.

Virá a morte e terá os teus olhos,

será como abandonar um vício,

como ver no espelho

ressurgir um rosto morto,

como escutar lábios fechados.

Mudos, desceremos ao abismo.

(tradução de Rui Caeiro)


***


E então, nós, covardes


E então, nós, covardes

que amávamos a noite

sussurrando, as casas,

os cursos dos rios,

as luzes  rubras e sujas,

de tais lugares, a dor

adocicada e quieta -

nós rasgamos as mãos

da viva corrente

e calamo-nos, mas nossos corações

estremeceram-nos com sangue,

e não mais houve doçura,

e não mais abandonamo-nos

ao curso dos rios -

não mais servos, soubemos

estar sozinhos e vivos.


*Cesare Pavese, poeta, escritor, tradutor e crítico literário, nasceu em Turim (Itália). 1908-1950

23/01/2022

Preciso dizer

 


Vivemos dias de sol ensanguentado, noites frias com estrelas congeladas, sem brilho. O vento que nos fazia sorrir sopra morno, nos sufoca, e até os pássaros que outrora planavam livremente sobre árvores, rios e montanhas; que anunciavam a chegada de novas manhãs  hoje são de aço ou de papel. As cidades estão cheias de ecos, de algaravias silenciosas, de medo. E nós desvivendo nossas vidas, trancados com fantasmas medievais, nos arrastando pelas paredes como se caminhássemos com as mãos, sem sair do lugar, lutando com nossos pensamentos embaralhados, enclausurados num labirinto do qual para sairmos mister se faz tecer o novelo que nos libertará da ignorância, do medo e da opressão: com paciência, obstinação perseverança e luta, muita luta. 

15/01/2022

Memorando

 René Magritte



Na cabeça uma mala cheia de pássaros

 uma página povoada de lírios brancos;

 na bruma que vem de longe, cinzas de cigarros,

 margaridas desbotadas em natureza morta.

 O esquecimento é amigo inseparável da poeira

 que o vento sopra para o mar,

 este cemitério de vivos e mortos,

 línguas e verbos não conjugados,

que bate e rebate corpos e mentes 

 entre ondas envelopadas, 

num murmúrio de sereias encantatórias.

07/01/2022

Nunca mais

 

Edward Steichen



Vi o céu com estrelas

vi a lua clarear a noite

vi o sol caindo no horizonte

Nunca mais 

ouvi um galo cantar

uma flor ser beijada

o quebrar de uma gargalhada

um sorriso, ainda que amarelo

nem jasmim, dindin, e muito menos querubim.

Só fantasmas, avatares quadrangulares, que vagueiam neste planeta que dizem ser azul, e é redondo. A vida anda de um jeito, que às vezes até parece que "nunca mais" é algo comum, corriqueiro ou banal. Embora existam significados semelhantes, têm interpretações diferentes. Nunca mais ou mais nunca, qual a diferença? Refere-se ao passado ou perdura até hoje?