DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

27/03/2022

Noite/Dia

 Ana Hatherly




Chuva a cântaros

choro a rios

abrolham

cachoeiras deságuam

nas encostas da alma

somente a dor conhece.

Tudo é silêncio

a natureza cerra os olhos

e dorme.

Se somos feitos de sonhos

como disse o poeta maior,

que nos juntemos a Morfeu para

quem sabe dormir uma noite

de verão

e acordar com o dia

trazendo o sol.

A chuva azuleja os dias

esfiapa o sol

sombreia a vida.

Noite e Dia - e os pensamentos

jogados na água escura dos rios.

19/03/2022

Pesquisa *

  "Divindade a água" - Adriana Varejão




Tempo é espaço interior. Espaço é tempo exterior.

Novalis


A gaivota determinada mergulha na água

verde. Há um tempo para o peixe

e um tempo para o pássaro

e dentro e fora do homem

um tempo eterno de solidão.

Muita vezes, fixando o meu olhar no morto,

vi espaços claros, bosques, igapós,

o sumidouro de um tempo subterrâneo

(patético, mesmo às almas menos presentes).

Vi, como se vê de um avião,

cidades conjugadas pelo sopro do homem,

a estrada amarela, o rio barrento e torturado,

tudo tempos de homem, vibrações de tempo, vertigens.

Senti o hálito do tempo doando melancolia

aos que envelhecem no escuro das boates,

vi máscaras tendidas para o copo e para o tempo

com uma tensão de nervos feridos, e corações espedaçados.

Se acordamos e ainda não é madrugada,

sentimos o invisível fender do silêncio,

um tempo que se ergue ríspido na escuridão.

Cascos leves de cavalos cruzam a aurora.

O tempo goteja

como o sangue.

Os cães discursam nos quintais, e o vento,

grande cão infeliz,

investe contra a sombra.

O tempo é audível;

também se pode ouvir a eternidade.


* Paulo Mendes Campos, jornalista, cronista e poeta.

Belo Horizonte(MG), 1922-1991

12/03/2022

Carta Anônima

 



Esta é mais uma das inúmeras cartas, ou chartas, (do Latim) ou, se quiserem, khartes(do grego), que escrevo entre os relógios que o Tempo costuma quebrar, e as bússolas que desorientam. Vai para as nuvens que se deslocam através do vento; como uma folha amarelecida que cai da árvore da vida; que a ampulheta da história, ou os papiros do Egito registraram, já lá vão muitos séculos, até milênios, quem sabe?

Não se trata de uma troca, tampouco de uma comunicação ou esperança de obter uma resposta, pois sei que essas práticas estão cada vez mais em desuso nos dias de hoje. Trata-se, isto sim, de um livro aberto escrito nas estrelas que se desloucam permanentemente para a Terra, constituído de parágrafos caleidoscópicos, e que se espalham no cotidiano dos humanos. Um imenso espelho que nos mostra as múltiplas faces e facetas que usamos para negar a realidade que nos cerca. Como já escrevi em outras oportunidades, são "palavras ao vento, ao léu, como sementes que tentamos plantar, na expectativa de que pelo menos uma germine. Um livro aberto, sem começo e sem fim, ad infinitum. E qual é exatamente o propósito desta missiva? - Ora, direis! Mire-se no espelho, no seu próprio exemplo como criatura humana, e assuma o que é capaz ou incapaz de fazer. Dispa-se da veste moralista, arranque a máscara da hipocrisia, e da indiferença aos seus semelhantes! 

04/03/2022

"Que fizeste das palavras?"

 




Que fizeste das palavras?

Que contas darás tu dessas vogais

de um azul tão apaziguado?

E as consoantes, que lhes dirás,

ardendo entre o fulgor

das laranjas e o sol dos cavalos?

Que lhes dirás, quando

te perguntarem pelas minúsculas

sementes que te confiaram?


Eugênio de Andrade(José Fontinhas Rato)

Póvoa de Atalaia(Portugal) 1923-2005.