DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

25/02/2017

De Paulo Mendes Campos - Para Maria da Graça



 
Agora, que chegaste à idade avançada de 15 anos, Maria da Graça, eu te dou este livro: Alice no País das Maravilhas.
Este livro é doido, Maria. Isto é: o sentido dele está em ti.
Escuta: se não descobrires um sentido na loucura acabarás louca. Aprende, pois logo de saída para a grande vida, a ler este livro como um simples manual do sentido evidente de todas as coisas, inclusive as loucas. Aprende isso a teu modo, pois te dou apenas umas poucas chaves entre milhares que abrem as portas da realidade. A realidade, Maria, é louca.
Nem o Papa, ninguém no mundo, pode responder sem pestanejar à pergunta que Alice faz à gatinha:" Fala a verdade Dinah, já comeste um morcego?"
Não te espantes quando o mundo amanhecer irreconhecível. Para melhor ou pior, isso acontece muitas vezes por ano. "Quem sou eu no mundo?" Essa indagação perplexa é lugar-comum de cada história da gente. Quantas vezes mais decifrares essa charada, tão entranhada em ti mesma como os teus ossos, mais forte ficarás. Não importa qual seja a tua resposta: o importante é dar ou inventar uma resposta. Ainda que seja mentira. A sozinhez (esquece essa palavra que inventei agora sem queres) é inevitável. Foi o que Alice falou no fundo do poço: "Estou tão cansada de estar aqui sozinha!" O importante é que ela conseguiu sair de lá, abrindo a porta. A porta do poço! Só as criaturas humanas (nem mesmo os grandes macacos e os cães amestrados) conseguem abrir uma porta fechada ou vice-versa, isto é, fechar uma porta bem aberta.
Somos todos tão bobos, Maria. Praticamos uma ação trivial, e temos a presunção petulante de esperar dela grandes consequências. Quando Alice comeu o bolo e não cresceu de tamanho, ficou no maior dos espantos. Apesar de ser isso o que acontece, geralmente, às pessoas que comem o bolo.
Maria, há uma sabedoria social ou de bolso; nem toda sabedoria tem de ser grave.
A gente vive errando em relação ao próximo e o jeito é pedir desculpas sete vezes por dia: Oh, I beg your pardon". Pois viver é falar de corda em casa de enforcado. Por isso te digo, para tua sabedoria de bolso: se gostas de gato, experimenta o ponto de vista do rato. Foi o que o rato perguntou á Alice: Gostarias de gato se fosses eu?"
Os homens vivem apostando corrida, Maria. Nos escritórios, na política, nacional e internacional, nos clubes, nos bares, nas artes, na literatura, até amigos, até irmãos, até marido e mulher, até namorados, todos vivem apostando corrida. São competições tão confusas, tão cheias de truques, tão desnecessárias, tão fingindo que não é, tão ridículas muitas vezes, por caminhos tão escondidos, que, quando os atletas chegam exaustos a um ponto, costumam perguntar: "A corrida terminou! mas quem ganhou?" É bobice, Maria da Graça, disputar uma corrida se a gente não irá saber quem venceu. Se tiveres de ir a algum lugar, não te preocupe a vaidade fatigante de ser a primeira a chegar. Se chegares sempre onde quiseres, ganhaste.  
 Disse o ratinho: "A minha história é longa e triste!" Ouvirás isso milhares de vezes. Como ouvirás a terrível variante: "Minha vida daria um romance". Ora, como todas as vidas vividas até o fim são longas e tristes, e como todas as vidas dariam romances, pois o romance só é o jeito de contar uma vida, foge, polida mas energicamente, dos homens e das mulheres que suspiram e dizem: "Minha vida daria um romance!" Sobretudo dos homens. Uns chatos irremediáveis, Maria.
Os milagres sempre acontecem na vida de cada um e na vida de todos. Mas ao contrário do que se pensa, os melhores e mais fundos milagres não acontecem de repente, mas devagar, muito devagar. Quero dizer o seguinte: a palavra depressão cairá de moda mais cedo ou mais tarde. Como talvez seja mais tarde, prepara-te para a visita do monstro, e não te desesperes ao triste pensamento de Alice: "Devo estar diminuindo de novo" Em algum lugar há cogumelos que nos fazem crescer novamente.
E escuta a parábola perfeita: Alice tinha diminuído tanto de tamanho que tomou um camundongo por um hipopótamo. Isso acontece muito, Mariazinha. Mas não sejamos ingênuos, pois o contrário também acontece. E é um outro escritor inglês que nos fala mais ou menos assim: o camundongo que expulsamos ontem passou a ser hoje um terrível rinoceronte. É isso mesmo. A alma da gente é uma máquina complicada que produz durante a vida uma quantidade imensa de camundongos que parecem hipopótamos e rinocerontes que parecem camundongos. O jeito é rir no caso da primeira confusão e ficar bem disposto para enfrentar o rinoceronte que entrou em nossos domínios disfarçado de camundongo. E como tomar o pequeno por grande e o grande por pequeno é sempre meio cômico, nunca devemos perder o bom-humor. Toda a pessoa deve ter três caixas para guardar o humor: uma caixa grande par o humor mais ou menos barato que a gente gasta na rua com os outros; uma caixa média para o humor que a gente precisa ter quando está sozinho, para perdoares a ti mesma, para rires de ti mesma; por fim, uma caixinha preciosa, muito escondida, para grandes ocasiões. Chamo de grandes ocasiões os momentos perigosos em que estamos cheios de dor ou de vaidade, em  que sofremos a tentação de achar que fracassamos ou triunfamos, em que nos sentimos umas drogas ou muito bacanas. Cuidado, Maria, com as grandes ocasiões.
Por fim, mais uma palavra de bolso: às vezes uma pessoa se abandona de tal forma ao sofrimento, com uma tal complacência, que tem medo de não poder sair de lá. A dor também tem o seu feitiço, e este se vira contra o enfeitiçado. Por isso Alice, depois de ter chorado um lago, pensava: "Agora serei castigada, afogando-me em minhas próprias lágrimas".
Conclusão: a própria dor deve ter a sua medida: É feio, é imodesto, é vão, é perigoso ultrapassar a fronteira de nossa dor, Maria da Graça.

 
Paulo Mendes Campos nasceu em Belo Horizonte(MG) em 1922 e faleceu no Rio de Janeiro em 1991. Cronista, poeta, tradutor e jornalista; é autor de A palavra escrita, Cisne de feltro, Brasil brasileiro.



21/02/2017

S.O.S. Brasil !



 
Patos perus galinhas galináceos em geral, todos os bípedes de penas, avoantes (ou não) e Poetas, protejam-se, porque raposas, gaviões, urubus e abutres, animais peçonhentos de todas as espécies sub-humanas  foram soltos para devorá-los  vivos, e em cores!

07/02/2017

Da singualridade da palavra "ovo"



 
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Virou-se, então, para o quadro e traçou, com uma caligrafia extremamente segura para quem estivera trêmulo havia até bem pouco, em maiúsculas, a palavra ovo.
[...] Voltando a encarar a turma, com a simpatia de quem profetizava um bom
relacionamento com ela durante o curso, disse:
"Na palavra ovo, em nossa língua, mais do que em qualquer outra língua ou palavra, encontra-se em sua plenitude concreta a imagem do seu referente, a entidade que ela expressa, ou seja, o próprio ovo, de forma a mais ampla possível. Não só por conter, por duas vezes, no vão da letra O, principalmente quando em maiúscula, a figura do ovo, como pelo fato de que, circularmente, a palavra pode ser lida de frente para trás ou de trás para diante sem qualquer perda de forma e substância, num acabamento fechado e perfeito, correspondendo ao do próprio ovo. Podemos chamar a atenção, também, para este vértice e vórtice da letra V, como uma abertura e ligação, um cordão umbilical, penetrando no interior deste receptáculo da própria vida."
Os alunos cochichavam entre si e ele pediu gentilmente silêncio, pois ainda havia algo mais:
"A coisa, porém, não permanece aí. Porque ao pronunciarmos a mesma palavra ovo", e ele a pronunciou por três vezes: ovo, ovo, ovo, "deparamos com a surpresa ainda maior de que ela contém, também oralmente, o desenho acústico do ovo, não igual a simples onomatopeia, mas a um verdadeiro ideograma sonoro, como se os criadores da língua latina, ao elegerem o vocábulo ovu para tal substância e sua forma, se encontrassem acometidos do gênio da onomatbesia grega, ou a capacidade de dar nome às coisas de acordo com a sua natureza. Só que no caso da escrita, faltou-lhes esse arredondamento final do segundo O, como se deixassem escapar, no último momento, algo desta forma e substância. Sua verdadeira gema.
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Já em português, a palavra é revestida de uma acústica de ecos infinitos e circulares, um sonar nas profundezas, e, se a entoarmos incessantemente, será como uma invocação, um mantra, como o Om, Om, Om dos indianos, religando-nos através do verbo ao verbo primeiro e ao todo de onde se originou e do qual se afastou, restabelecendo o elo com o indiferenciado, o caos, negro ou branco,
o útero, a origem, o átomo primeiro, o ovo cósmico, enfim!

Extraído do conto A aula, de Sérgio Sant'Anna (Rio de Janeiro, 1941), autor de O sobrevivente, O voo da madrugada, O homem-mulher, O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro; recebeu quatro vezes o prêmio Jabuti. 

01/02/2017

Sobre árvore e vírgulas



 
 
Não escrevo como penso, e nem sempre escrevo o que falo. Muitas palavras  que em mim habitam se atropelam ou são atropeladas por si mesmas porque são mais velozes que a minha mão. Antes de pensar, sinto-as. O espelho não fala, apenas mostra-me a imagem; cada vez que a miro percebo uma nova faceta da primeira imagem misturada com outras anteriores formando um palimpsesto cuja escrita original vai se tornando cada vez mais tênue.
Quem sou, quem somos nós, senão essa tentativa de fazer-se e refazer-se imaginariamente? Uma árvore com vírgulas colocadas no meio das palavras; a sombra formada por seus galhos e folhas desse símbolo que representa a Vida.
Crio sombras que me acompanham sem que elas necessariamente me protejam do sol que muitas vezes torna-se caosticante.
Sinto penso escrevo leio releio-me; nem sempre vejo o que está escrito nas entrelinhas - posso sentir que algo me escapou - uma ausência repentina, um esquecimento ou mesmo algo que transbordou. Não sei. Apago. Recomeço, virgulo, parafraseio tentando encontrar algum fruto. Retiro do solo as ervas daninhas, os frutos apodrecidos. E são muitas e muitos. Estou sempre pensando, matutando no mato sem cachorro... Aliás, repensando o que escrevi ontem, me pergunto agora: - qual o porquê de toda essa prosopopeia? Essa conversa não é infinita, mas poderá tornar-se interminável; como tudo hoje em dia está se transformando em mercadoria resolvi colocá-la na vitrine mesmo não estando à venda, como diria o caboclo: não dou não vendo e não troco, e,
como nos finais de semana costuma-se renovar as vitrines e tudo é mesmo um palimpsesto, vou apagar algumas coisas que postei até aqui. Ponto. Ou seria um ponto e vírgula? Ou reticências? A ver, como diria João Guimarães Rosa, outro grandioso escritor! Sim, porque havia falado anteriormente em Machado de Assim, Lima Barreto, Mário de Andrade e Macedonio Fernandez. Mas, como teria dito Galileu "e pur si muove"... Se disse ou não, o fato é que tudo se move, queiramos ou não; e o que aqui escrevo vai tudo pra "nuvem", não aquela que é formada pela condensação de vapores, tampouco a dos poetas, que sonham por um mundo melhor.