DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

31/03/2011

Sem palavras!!

E ainda há muitos que pensam, idealisticamente, que os pássaros apenas voam e cantam livremente...!?


















Finalmente!!!

29/03/2011

Moras com o belo e o eterno


Espero a neblina

Brancos cavalos já passam

e o peito

(amolado na dor)

ensandece

sob o amor das éguas

E as constelações

dos sonhos pavorosos

fazem crescer

o ritmo do tempo-fogo

nas cordilheiras cordiais

E quando o sangue

do vermelho trágico

rasgar a sombra

as panteras já terão chegado

Acompanho a humanidade

além das muitas miragens


O clarão da existência

Como enramar-me de felicidade

se o campo, a flor, o riso...

e o descontentamento

e a sombra do tempo

e as estrelas se assomam

sob o canto e o silêncio

sobre a vida

e a renúncia

sobre uma pluma

em relâmpagos

a luz

existir em tua ausência

na morada de minh'alma

exânime

Ai bárbaro destino

como mondar a tristeza

que me perece e me amarga

tanto...

como?


Diego Mendes Sousa, Parnaíba(PI) - 1989-

28/03/2011

Eu me contradigo?

Eu me contradigo?

Pois muito bem, eu me contradigo,

sou amplo, contenho multidões.


*****


Eu sou o poeta do corpo

e sou o poeta da alma,

as delícias do céu

estão em mim

e os horrores do inferno

estão em mim

- o primeiro eu enxerto

e amplio ao meu redor,

o segundo eu traduzo

em nova língua.


Eu sou o poeta da mulher

tanto quanto do homem

e digo que tanta grandeza existe

no ser mulher

quanto no ser homem,

e digo que não há nada maior

do que uma mãe de homens.


*****


Eu sou aquele que vai com a noite

tenra e crescente,

e invoco a terra e o mar

que a noite leva pela metade.

Aperte mais, noite de peito nu!

Aperte mais, noite nutriz magnética!

Noite dos ventos do sul,

noite das poucas estrelas grandes!

Noite silenciosa que me acena

- alucinada noite nua de verão!


Walt Whitman, Long Island(EUA) - 1819-1892

Tradução: Geir Campos

27/03/2011

O Albatroz


Às vezes no alto mar, distrai-se a marinhagem

com a caça do albatroz, ave enorme e voraz,

que segue pelo azul a embarcação em viagem,

num voo triunfal, numa carreira audaz.


Mas quando o albatroz se vê preso, estendido

nas tábuas do convés, - pobre rei destronado!

Que pena ele faz, humilde e constrangido,

as asas imperiais caídas para o lado!


Dominador do espaço, eis perdido o seu nimbo!

Era grande e gentil, ei-lo grotesco verme!

Chega-lhe um ao bico o fogo do cachimbo,

mutila um outro a pata ao voador inerme.


O poeta é semelhante a essa águia marinha

que desdenha da seta, e afronta os vendavais;

exilado na terra, entre a plebe escarninha,

não o deixam andar as asas colossais!


Charles Baudelaire, em As flores do mal.

Tradução de Delfim Guimarães

25/03/2011

Fala também tu...

Khakiv, rua Nikolai Gogol


Fala também tu,
fala em último lugar,
diz a tua sentença.

Fala -
Mas não separes o Não do Sim.
Dá à tua sentença igualmente o sentido:
dá-lhe a sombra.


Dá-lhe sombra bastante,
dá-lhe tanta
quanta exista à tua volta repartida entre
a meia noite e o meio dia e a meia noite.


Olha em redor:
como tudo revive à tua volta! -
Pela morte! Revive!
Fala verdade quem diz sombra.


Mas agora reduz o lugar onde te encontras:
Para onde agora, oh despido de sombra,
para onde?
Sobe. Tateia o ar.
Tornas-te cada vez mais delgado, irreconhecível, sutil!

Mais sutil: um fio,
por onde a estrela quer descer:
para embaixo nadar, embaixo,
onde pode ver-se o cintilar:
na ondulação das palavras errantes.


em "De Limiar em Limiar", de Paul Celan, nascido em Czernowitz, Ucrânia. Poeta que conheceu os horrores do nazismo, tendo perdido os pais que foram assassinados nos campos de concentração, cometendo o suicídio anos mais tarde. (1920-1970)

22/03/2011

Noite e neblina

"Roches noires", Claude Monet
Não estamos próximos do cume da montanha de onde iremos dar as boas-vindas ao sol nascente. Não estamos no momento onde vão se realizar as promessas das Luzes, como acreditávamos em 1789, antes que a história se embrenhe novamente em turbulências com guilhotinas, sobressaltos, Napoleão, Restauração, re-revolução.

Não sairemos da história.

Devemos nos re-situar na pré-história do espírito humano. Estamos num jogo incerto/aleatório do regressivo/progressivo, simultaneamente dentro de revoluções selvagens e regressões bárbaras. Estamos na noite e na neblina, placenta informe, útero onde o sangue que nos nutre se mistura com a imundície.
Não sabemos se a agonia em que entramos é aquela do nascimento ou da morte da humanidade.
Assim, ao prepararmos plenamente uma nova Renscença, ao continuarmos plenamente na pré-história do espírito, não é uma verdadeira Idade Média que experimentamos, não é uma verdadeira Renascença que preparamos, não é a pré-história que levamos a bom termo. Estamos na idade de ferro planetária.
Mas, uma idade de ferro é por ela mesma casa de ferreiro. É a humanidade que forja a idade de ferro planetária. A diferença entre a antiga idade de ferro, na qual se forjava a civilização técnica, é que esta não carregava nela a ameaça de aniquilação da humanidade, exceto em seus estágios atuais em que o extremo desenvolvimento técnico permite, ao mesmo tempo, a gênese da humanidade planetária, isto é, esta nova idade de ferro e sua destruição apocalíptica.

*****

Muitos acreditam que perdemos tudo ao perder nossas ilusões. Ao contrário, fizemos uma prodigiosa aquisição ao perdermos nossos erros: a tomada de consciência necessária e, talvez, no jogo da verdade e do erro, salutar. Perdemos a promessa de progresso, mas é um enorme progresso, enfim, descobrir que o progresso era um mito. (........)
Estamos num planeta que vive, titubeia, sem provisões certas para o amanhã. Talvez, como já o afirmei, as cartas já tenham sido dadas, mas só o saberemos muito tempo depois, mas, talvez, tudo continue em jogo e sendo jogado novamente em mil bifurcações, hesitações, aqui e acolá, no mundo, e que a cada instante a decisão depende da coragem ou da covardia, da lucidez ou do desvario. Talvez seremos testemunhas ou atores do acontecimento desconhecido fazendo deflagrar a grande avalanche, cujo estrondo repercutirá até o final dos tempos humanos.


"Para onde vai o mundo?" - de Edgar Morin, (1921- ) sociólogo e filósofo francês, nascido em Paris, diretor emérito do Centro Nacional de Pesquisa Científica.

20/03/2011

O rio (fragmento)


A metade do poema sobressalta-me sempre um grande desamparo, tudo me abandona,
não há nada a meu lado, nem sequer esses olhos que por detrás
contemplam o que escrevo,
não há atrás nem adiante, a pena se rebela, não há começo nem
fim, tampouco muro que saltar,
é uma esplanada deserta o poema, o dito não está dito, o
não dito é indizível,
torres, terraços devastados, babilônias, e um mar de sal
negro um
reino cego,
Não,
deter-me, calar, fechar os olhos até que brote de minhas pálpebras
uma espiga, um repuxo de sóis,
e o alfabeto ondule longamente sob o vento do sonho e a
maré suba
em onda e a onda rompa o dique,
esperar até que o papel se cubra de astros e seja o
poema um
bosque de palavras enlaçadas,
Não, não tenho nada a dizer, ninguém tem nada a dizer,
nada nem
ninguém exceto o sangue,
nada senão este ir e vir do sangue, este escrever sobre o
já escrito
e repetir a mesma palavra na metade do poema,
sílabas de tempo, letras rotas, gotas de tinta, sangue que
vai e vem
e não diz nada e me lava consigo.


Octávio Paz, México (1914- )
Tradução de Haroldo de Campos

19/03/2011

Tragédias & espetacularizações


TRAGÉDIAS NATURAIS EXPÕEM PERDA DA NOÇÃO DE LIMITE



No dia 1º de novembro de 1755, Lisboa foi devastada por um terremoto seguido de um
tsunami. A partir de estudos geológicos e arqueológicos, estima-se hoje que o sismo atingiu 9 graus na escala Richter e as ondas do tsunami chegaram a 20 metros de altura. De uma população de 275 mil habitantes, calcula-se que cerca de 20 mil morreram (há estimativas que falam em até 50 mil mortos). Além de atingir grande parte do litoral do Algarve, o terremoto e o tsunami também atingiram o norte da África. Apesar da precariedade dos meios de comunicação de então, a tragédia teve um grande impacto na Europa e foi objeto de reflexão por pensadores como Kant, Rousseau, Goethe e Voltaire. A sociedade europeia vivia então o florescimento do Iluminismo, da Revolução Industrial e do Capitalismo. Havia uma atmosfera de grande confiança nas possibilidades da razão e do progresso científico.

No Poème sur le desastre de Lisbonne, (“Poema sobre o desastre de Lisboa”), Voltaire satiriza a ideia de Leibniz, segundo a qual este seria “o melhor dos mundos possíveis”. “O terremoto de Lisboa foi suficiente para Voltaire refutar a teodiceia de Leibniz”, ironizou Theodor Adorno. “Filósofos iludidos que gritam, ‘Tudo está bem’, apressados, contemplam estas ruínas tremendas” – escreveu Voltaire, acrescentando: “Que crimes cometeram estas crianças, esmagadas e ensanguentadas no colo de suas mães?”

Rousseau não gostou da leitura de Voltaire e responsabilizou a ação do homem que estaria “corrompendo a harmonia da criação”. "Há que convir... que a natureza não reuniu em Lisboa 20.000 casas de seis ou sete andares, e que se os habitantes dessa grande cidade se tivessem dispersado mais uniformemente e construído de modo mais ligeiro, os estragos teriam sido muito menores, talvez nulos", escreveu.

Já Kant procurou entender o fenômeno e suas causas no domínio da ordem natural. O terremoto de Lisboa, entre outras coisas, acabará inspirando seus estudos sobre a ideia do sublime. Para Kant, “o Homem ao tentar compreender a enormidade das grandes catástrofes, confronta-se com a Natureza numa escala de dimensão e força transumanas que embora tome mais evidente a sua fragilidade física, fortifica a consciência da superioridade do seu espírito face à Natureza, mesmo quando esta o ameaça”.

A tragédia que se abateu sobre Lisboa, portanto, para além das perdas humanas, materiais e econômicas, impactou a imaginação do seu tempo e inspirou reflexões sobre a relação do homem com a natureza e sobre o estado do mundo na época. Uma época, cabe lembrar, onde os meios de comunicação resumiam-se basicamente a algumas poucas, e caras, publicações impressas, e à transmissão oral de informações, versões e opiniões sobre os acontecimentos. Nas catástrofes atuais, parece que vivemos um paradoxo: se, por um lado, temos um desenvolvimento vertiginoso dos meios de comunicação, por outro, a qualidade da reflexão sobre tais acontecimentos parece ter empobrecido, se comparamos com o tipo de debate gerado pelo terremoto de Lisboa.

A espetacularização das tragédias e a perda da noção de limite

Em maio de 2010, em uma entrevista à revista Adverso (da Associação dos Docentes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul), o geólogo Rualdo Menegat, professor do Departamento de Paleontologia e Estratigrafia do Instituo de Geociências da UFRGS, criticou o modo como a mídia cobre, de modo geral, esse tipo de fenômeno.

“Ela espetaculariza essas tragédias de uma maneira que não ajuda as pessoas entenderem que há uma manifestação das forças naturais aí e que nós precisamos saber nos precaver. A maneira como a grande imprensa trata estes acontecimentos (como vulcões, terremotos e enchentes), ao invés de provocar uma reflexão sobre o nosso lugar na natureza, traz apenas as imagens de algo que veio interromper o que não poderia ser interrompido, a saber, a nossa rotina urbana. Essa percepção de que nosso dia a dia não pode ser interrompido pelas manifestação das forças naturais está ligada à ideia de que somos sobrenaturais, de que estamos para além da natureza”.

Para Menegat, uma das principais lacunas nestas coberturas é a ausência de uma reflexão sobre a ideia de limite. É bem conhecida a imagem medieval de uma Terra plana, cujos mares acabariam em um abismo. Como ficou provado mais tarde, a imagem estava errada, mas ela trazia uma noção de limite que acabou se perdendo. “Embora a imagem estivesse errada na sua forma, ela estava correta no seu conteúdo. Nós temos limites evidentes de ocupação no planeta Terra. Não podemos ocupar o fundo dos mares, não podemos ocupar arcos vulcânicos, não podemos ocupar de forma intensiva bordas de placas tectônicas ativas, como o Japão, o Chile, a borda andina, a borda do oeste americano, como Anatólia, na Turquia”, observa o geólogo.

Não podemos, mas ocupamos, de maneira cada vez mais destemida. O que está acontecendo agora com as usinas nucleares japonesas atingidas pelo grande terremoto do dia 11 de março é mais um alarmante indicativo do tipo de tragédia que pode atingir o mundo globalmente. O que esses eventos nos mostram, enfatiza Menegat, é a progressiva cegueira da civilização humana contemporânea em relação à natureza. A humanidade está bordejando todos os limites perigosos do planeta Terra e se aproxima cada vez mais de áreas de riscos, como bordas de vulcões e regiões altamente sísmicas. “Estamos ocupando locais que, há 50 anos atrás, não ocupávamos. Como as nossas cidades estão ficando gigantes e cegas, elas não enxergam o tamanho do precipício, a proporção do perigo desses locais que elas ocupam”, diz ainda o geólogo, que resume assim a natureza do problema:

"Estamos falando de 6 bilhões e 700 milhões de habitantes, dos quais mais da metade, cerca de 3,7 bilhões, vive em cidades. Isso aumenta a percepção da tragédia como algo assustador. Como as nossas cidades estão ficando muito gigantes e as pessoas estão cegas, elas não se dão conta do tamanho do precipício e do tamanho do perigo desses locais onde estão instaladas. Isso faz também com que tenhamos uma visão dessas catástrofes como algo surpreendente".

A fúria da lógica contra a irracionalidade

Como disse Rousseau, no século XVIII, não foi a natureza que reuniu, em Lisboa, 20.000 casas de seis ou sete andares. Diante de tragédias como a que vemos agora no Japão, não faltam aqueles que falam em “fúria da natureza” ou, pior, “vingança da natureza”. Se há alguma vingança se manifestando neste tipo de evento catastrófico, é a da lógica contra a irracionalidade. Como diz Menegat, a Terra e a natureza não são prioridades para a sociedade contemporânea. Propagandas de bancos, operadoras de cartões de crédito e empresas telefônicas fazem a apologia do mundo sem limites e sem fronteiras, do consumidor que pode tudo.

As reflexões de Kant sobre o terremoto de Lisboa não são, é claro, o carro-chefe de sua obra. A maior contribuição do filósofo alemão ao pensamento humano foi impor uma espécie de regra de finitude ao conhecimento humano: somos seres corporais, cuja possibilidade de conhecimento se dá em limites espaço-temporais. Esses limites estabelecidos por Kant na Crítica da Razão Pura não diminuem em nada a razão humana. Pelo contrário, a engrandecem ao livrá-la de tentações megalomaníacas que sonham em levar o pensamento humano a alturas irrespiráveis. Assim como a razão, o mundo tem limites. Pensar o contrário e conceber um mundo ilimitado, onde podemos tudo, é alimentar uma espécie de metafísica da destruição que parece estar bem assentada no planeta. Feliz ou infelizmente, a natureza está aí sempre pronta a nos despertar deste sono dogmático.

Artigo do jornalista Marco Aurélio Weissheimer, publicado em http://agenciacartamaior.com.br

17/03/2011

Amor de peixe




Por estranho que pareça, o único carácio dourado que vivia na lagoa perto da dátcha do general Pantalykin enamorou-se perdidamente pela veranista Sônia Mámotchkina. De resto, o que há nisso de estranho? Não se apaixonou o Demônio de Liérmontov por Tamara, e o cisne por Leda, e não acontece que escriturários apaixonam-se pelas filhas dos seus chefes?
Toda manhã, Sônia Mámotchkina vinha com a sua tia banhar-se na lagoa. O carácio apaixonado nadava bem perto da margem e observava. Por causa da vizinhança próxima da fundição Krandel & Filhos, a água da lagoa havia muito que ficara pardacenta, mas apesar disso o carácio via tudo. Ele via como pelo céu azul esvoaçavam nuvens brancas e pássaros, como se despiam as veranistas, como, dentre os arbustos ribeirinhos, espiavam-nas os rapazes, como a rechonchuda titia, antes de entrar na água, ficava uns cinco minutos sentada sobre uma pedra e, afagando-se satisfeita, dizia:
- E com quem foi que eu, uma elefanta dessas, fui sair parecida? Até dá medo de olhar.
Tirando do corpo as roupas leves, Sônia atirava-se na água, guinchando, encolhia-se de frio, e o carácio, sem perda de tempo, nadava para perto dela e começava a beijar-lhe avidamente os pezinhos, os ombros, o pescoço...
Após o banho, as veranistas voltavam à casa, para tomar chá com pães doces, enquanto o carácio nadava solitário na enorme lagoa e pensava:
"Naturalmente, não se pode nem falar em chances de ser correspondido. Como pode ela, tão formosa, vir a olhar-me a mim, um carácio? Não, mil vezes não! Não te iludas pois com tais sonhos, desprezível peixe! Resta-te um só destino - a morte! Mas morrer, como? Revólveres e fósforos não há na lagoa. Para nós outros, os carácios, só uma morte é possível - a bocarra do lúcio. Mas onde encontrar um lúcio? Tempos atrás havia aqui na lagoa um lúcio, mas até ele se finou de tédio. Ó, infeliz que sou!"
E, pensando na morte, o jovem pessimista afundava-se no lodo e lá escrevia um diário...
Certa vez, ao entardecer, Sônia e a sua tia estavam sentadas à beira da lagoa, pescando. O carácio nadava por perto das iscas e não tirava os olhos da jovem amada. Súbito, no seu cérebro, qual um raio, brilhou uma ideia:
"Morrerei nas mãos dela!", pensou ele, e começou a brincar alegremente com as nadadeiras. "Oh, esta será uma morte maravilhosa e doce!"
E, cheio de decisão, apenas empalidecendo um pouco, ele nadou para junto do anzol de Sônia e tomou-o na boca.
- Sônia, mordeu! - guinchou a tia. - Querida, o teu anzol! Mordeu!
- Ah, ah!
Sônia deu um pulo e um safanão com toda força. Algo dourado faiscou no ar e esborrachou-se na água, deixando círculos concêntricos depois de si.
- Arrancou-se! - gritaram ambas as veranistas, empalidecendo.
- Arrancou-se! Ai! Querida!
Olharam para o anzol e viram nele um beiço de peixe.
- Ah, querida, não precisava puxar com tanta força. Agora o pobre peixinho ficou sem beiço...
Soltando-se do anzol, meu herói ficou atordoado e por muito tempo não entendeu o que lhe acontecera, depois, porém, voltando a si, ele gemeu:
- Outra vez, viver! De novo! Ó ironia do destino!
Percebendo, no entanto, que lhe faltava a mandíbula inferior, o carácio empalideceu e prorrompeu em gargalhadas selvagens...Ele enlouquecera.
Mas receio que pareça estranho que eu queira ocupar a atenção de um leitor sério com o destino de uma criatura tão ínfima e desinteressante como um carácio dourado. De resto, o que há nisso de estranho? Não descrevem umas senhoras em grossas revistas uns gobiões e umas lesmas de quem ninguém precisa? Pois eu imito as senhoras. Quem sabe, até eu mesmo sou uma senhora e só me oculto sob um pseudônimo masculino.
E, assim, o carácio enlouqueceu. O infeliz está vivo até agora. Os dourados em geral gostam de ser fritos em creme de leite, mas o meu herói agora ama qualquer tipo de morte. Sônia Mármotchkina casou-se com o dono de uma drogaria, e a tia foi-se embora para Lipetsk, morar com a irmã casada. Nisso não há nada de estranho, pois a irmã casada tem seis filhos e todos os filhos amam a titia.
Mas, adiante. Na fundição Krandel & Filhos trabalha como diretor o engenheiro Kryssin. Ele tem um sobrinho, Ivan, o qual, como é sabido, escreve versos e os imprime avidamente em todos os jornais e revistas. Num certo meio-dia muito quente, passando pela lagoa, o jovem poeta resolveu tomar um banho. Despiu-se e meteu-se na lagoa. O carácio demente tomou-o por Sônia Mármotchkina, nadou para junto dele e depositou-lhe um terno beijo nas costas. Esse beijo teve as mais ruinosas consequências. O carácio contagiou o poeta com o pessimismo. Não suspeitando de nada, o poeta saiu da água e, gargalhando insanamente, dirigiu-se para casa.
Alguns dias depois, ele viajou para Petersburgo; tendo lá visitado as redações, contagiou todos os poetas com o pessimismo, e desde então os nossos poetas começaram a escrever poesias melancólicas e sombrias.


Amton Tchékhov (1860-1904)

15/03/2011

O raio


ACONTECEU-ME UMA VEZ, num cruzamento, no meio da multidão, no vaivém.
Parei, pisquei os olhos: não entendia nada. Nada, rigorosamente nada: não entendia as razões das coisas, dos homens, era tudo sem sentido, absurdo. E comecei a rir.
Para mim, o estranho naquele momento foi que eu não tivesse percebido isso antes. E tivesse até então aceitado tudo: semáforos, veículos, cartazes, fardas, monumentos, essas coisas tão afastadas do significado do mundo, como se houvesse uma necessidade, uma coerência que ligasse umas às outras.
Então o riso morreu em minha garganta, corei de vergonha. Gesticulei, para chamar a atenção dos passantes e - Parem um momento! - gritei - Tem algo estranho! Está tudo errado! Fazemos coisas absurdas! Este não pode ser o caminho certo! Onde vamos acabar?
As pessoas pararam ao meu redor, me examinavam, curiosas. Eu continuava alí no meio, gesticulava, ansioso para me explicar, torná-las participantes do raio que me iluminara de repente: e ficava quieto. Quieto, porque, no momento em que levantei os braços e abrí a boca a grande revelação foi como que engolida e as palavras saíram de mim assim, de chofre.
- E daí? - perguntaram as pessoas - O que o senhor quer dizer? Está tudo no lugar. Está tudo andando como deve andar. Cada coisa é consequência de outra. Cada coisa está vinculada às outras. Não vemos nada de absurdo ou de injustificado!
E alí fiquei, perdido, porque diante dos meus olhos tudo voltara ao seu devido lugar e tudo me parecia natural, semáforos, monumentos, fardas, arranha-céus, trilhos de trem, mendigos, passeatas, e no entanto não me sentia tranquilo, mas atormentado.
- Desculpem - respondí. - Talvez eu é que tenha me enganado. Tive a impressão. Mas está tudo no lugar. Desculpem. - E me afastei entre seus olhares severos.
Mas, mesmo agora, toda vez (frequentemente) que me acontece não entender alguma coisa, então, instintivamente, me vem a esperança de que seja de novo a boa ocasião para que eu volte ao estado em que não entendia mais nada, para me apoderar dessa sabedoria diferente, encontrada e perdida no mesmo instante.


Ítalo Calvino (1923-1985)

14/03/2011

Se houvesse degraus na terra...


Se houvesse degraus na terra e tivesse anéis no céu,
eu subiria os degraus e aos anéis me prenderia.
No céu podia tecer uma nuvem toda negra.
E que nevasse, e chovesse, e houvesse luz nas montanhas,
e à porta do meu amor o ouro se acumulasse.

Beijei uma boca vermelha e a minha boca tingiu-se,
levei um lenço à boca e o lenço fez-se vermelho.
Fui lavá-lo na ribeira e a água tornou-se rubra,
e a fímbria do mar, e o meio do mar,
e vermelhas se volveram as asas da águia
que desceu para beber,
e metade do sol e a lua inteira se tornaram vermelhas.

Maldito seja quem atirou uma maçã para o outro mundo.
Uma maçã, uma mantilha de ouro e uma espada de prata.
Correram os rapazes à procura da espada,
e as raparigas correram à procura da mantilha,
e correram, correram as crianças à procura da maçã.

Herberto Helder (Luís Bernardo de Oliveira), Funchal (Ilha da Madeira) - 1930

12/03/2011

Galileu, o alfabeto e a pintura

Lavínia Fontana
Tenho um pequeno livro muito menor que o de Aristóteles e de Ovídio, no qual estão contidas todas as ciências, e com pouquíssimos estudos se pode formar uma ideia bem perfeita: e isso é o alfabeto, e não há dúvida de que aquele que souber combinar e ordenar bem esta e aquela vogal com essas e aquelas outras consoantes obterá respostas muito verdadeiras para todas as dúvidas e daí extrairá os ensinamentos de todas as ciências e de todas as artes, justamente daquela maneira que o pintor partindo de simples cores diferentes, separadamente colocadas sobre a tela, vai, com a mistura de um pouco desta com um pouco daquela e de outra mais, figurando homens, plantas, fábricas, pássaros, peixes e, em suma, imitando todos os objetos visíveis, sem que na tela apareçam nem olhos, nem penas nem escamas nem folhas nem seixos; antes é necessário que nenhuma das coisas a serem imitadas ou certas partes delas estejam atualmente entre as cores, querendo que com elas possam ser representadas todas as coisas, e que, se aí estivessem, por exemplo, penas, estas só serviriam para pintar pássaros ou penachos.

***

Mas sobre todas as invenções estupendas, que eminência de mente foi aquela de quem imaginou encontrar modo de comunicar seus próprios pensamentos mais recônditos a qualquer outra pessoa, mesmo que distante por enorme intervalo de lugar e de tempo? falar com aqueles que estão na Índia, falar com aqueles que ainda não nasceram e só nascerão dentro de mil ou dez mil anos? e com que facilidade? Com as várias junções de vinte pequenos caracteres num pedaço de papel. Seja este o segredo de todas as admiráveis invenções humanas


Galileu Galilei, ( 1564-1642) em Diálogo.

10/03/2011

Em meu ofício ou arte taciturna...

foto de Henri Cartier-Bresson


Em meu ofício ou arte taciturna
exercido na noite silenciosa
quando somente a lua se enfurece
e os amantes jazem no leito
com todas as sua mágoas nos braços,
trabalho junto à luz que canta
não por glória ou por pão
nem por pompa ou tráfico de encantos
nos palcos de marfim
mas pelo mínimo salário
de seu mais secreto coração.
Escrevo estas páginas de espuma
não para o homem orgulhoso
que se afasta da lua enfurecida
nem para os mortos de alta estirpe
com seus salmos e rouxinóis,
mas para os amantes, seus braços
que enlaçam as dores dos séculos.
Que não me pagam nem me elogiam
e ignoram meu ofício ou minha arte.


Dylan Thomas, País de Gales, Reino Unido (1914-1953)
Tradução de Ivan Junqueira

Obs: Esse poema foi-me gentilmente enviado pelo poeta Marcantonio(http://diarioextrovertido.blogspot.com/ ) através de um comentário sobre a postagem "Palavras tantas. Quantas?"

08/03/2011

Brincando com a Lua...!

Ainda hoje em alguns rincões desse nosso vasto mundo existem pessoas que não acreditam que o homem já foi à lua. Esse astro lindo e maravilhoso, que tem sido inspiração para poetas e menestréis, também tem levado muito fotógrafos a realizar trabalhos incríveis. Laurent Laveder foi mais além e tornou-se um astrofotógrafo (França), criando situações que colocam a lua ao alcance de nós...
E eu, não sei por quê (?) lembrei-me dessa marchinha de carnaval que diz mais ou menos assim:
lua, ó lua! querem te passar pra trás
lua, ó lua! querem de roubar a paz
lua, ó lua! não deixa ninguém te pegar...
todos eles estão errados,
a lua é dos namorados!!





06/03/2011

Rumo à Maracangalha...!?

Como não poderia deixar de ser nem tudo são flores, nem tudo é sempre paradisíaco. Nossos sonhos às vezes são coloridos, noutras são mesmo em preto e branco; onde existe alegria tem dor também, e temos que ir temperando. As belezas do Brasil são muitas, inumeráveis, contudo, no mesmo lugar, alí ao lado podemos encontrar paisagens nem tão belas assim...onde o Homem ainda passa muita fome, muita carência, e tem que lutar muito pra sobreviver, "fazer das tripas coração"!
E haja "jegue alado" pra voar e sonhar...!??

"Casa de farinha", de Mestre Vitalino - PE
O vaqueiro com sua boiada...
"Jegues", ou jumentos
Sete Quedas do Guaíra-CE
Sertão pernambucano
Vale do Pajeú-PE
Vaqueiro nordestino
Cachoeira de Paulo Afonso-BA
Flor de mandacaru, típico do sertão nordestino Plantação de coqueiros - PE
Quixadá-CE
Sertão baiano
Caruaru-PE
Sertão piauiense