DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

27/11/2020

Finício

Berna Reale


 


Quase tudo passa através do fio da vida que vai ligando e desligando os pontos que tecem a trajetória da humanidade; passam a primavera, o outono, o inverno e o verão. Pragas, incêndios, devastações, que são arrastadas com a força dos ventos e a inoperância dos poderes constituídos. Volare, cantare pero no mucho. O ar que respiramos está contaminado. Désolée, il faut aller à la recherche du temps perdu. Mas, que nada!, o tempo não para, ele voa e não volta, "é pau, é pedra, é o fim do caminho", cantou Tom Jobim; quando pensamos entrar no navio ele já partiu, e ficamos a ouvir o apito do trem, a última chamada pelo autofalante do aeroporto. Porca miséria! O navio estava cheio de ratos, dizemos, como dizia a raposa sobre as uvas, estavam verdes...Há males que vêm para o bem. Será? Mehr licht, mais luz! Mesmo que seja no fim do túnel. As cavernas são objetos de estudos para os arqueólogos e cientistas. É assim que tem sido o fim e o começo de tudo na história do planeta e da humanidade. Negar a realidade dos fatos é querer apagar a luz do sol. O velho e o novo se amalgamam para dar vida a outro ser, dando continuidade à convivência existencial.

23/11/2020

Prometeu



 Encobre o teu céu, ó Zeus

com nebuloso véu e,

semelhante ao jovem que gosta

de recolher cardos,

retira-te para os altos do carvalho ereto.

Mas deixa que eu desfrute a Terra,

que é minha, tanto quanto esta cabana

que habito e que não é obra tua

e também minha lareira que,

quando arde, sua labareda me doura.

Tu me invejas!


Eu, honrar a ti? Por quê?

Livraste a carga do abatido?

Enxugaste por acaso as lágrimas do triste?

(...)

Por acaso imaginaste, num delírio,

que eu iria odiar a vida e retirar-me para o ermo

por alguns dos meus sonhos se haverem frustrado?


Pois não: aqui me tens

e homens farei segundo minha própria imagem:

homens que logo serão meus iguais

que irão padecer e chorar, gozar e sofrer

e, mesmo que sejam párias,

não se renderão a ti como eu fiz.


Johann Wolfgang von Goethe, Alemanha (1749-1832)             

20/11/2020

Dia Nacional da Consciência Negra


Pierre Verger




Encontrei minhas origens


Encontrei minhas origens em velhos arquivos... livros

encontrei em malditos objetos troncos e grilhetas

encontrei minhas origens no leste, no mar em imundos tumbeiros

encontrei em doces palavras...

cantos em furiosos tambores...ritos

Encontrei minhas origens na cor de minha pele

nos lanhos de minha alma, em minha gente escura

em meus heróis altivos encontrei

Encontrei-as enfim

me encontrei


Oliveira Silveira, (1941-2009) poeta gaúcho, formado em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, dedicou sua vida à luta contra o racismo; foi o fundador da Associação Negra de Cultura em Porto Alegre, e um batalhador junto ao Congresso Nacional para que o dia 20.11. fosse o Dia Nacional da Consciência Negra. Tem vários livros publicados, entre eles, Banzo, Saudade Negra, Pele Escura, Anotações à Margem.


P.S. : Quero deixar registrado o meu repúdio e a minha indignação diante do crime cometido ontem, contra o cidadão negro João Alberto Silveira Freitas nas dependências do supermercado Carrefour, em Porto Alegre. 

12/11/2020

Do sentimento trágico da vida (trechos)

 Ismael Nery



Há, sem dúvida, algo de tragicamente destrutivo no fundo do amor, tal como se nos apresenta na sua forma animal primitiva, nesse instinto irresistível que leva o macho e a fêmea a confundir as suas entranhas, num estreitamento furioso. Aquilo mesmo que une os corpos, separa sob certos aspectos, as almas; ao abraçarem-se, odeiam-se tanto como se amam, e sobretudo lutam, lutam por um terceiro, que ainda não vive. O amor é uma luta, e há espécies animais em que o macho, ao unir-se com a fêmea, maltrata esta; e outras espécies há em que a fêmea devora o macho logo que este a fecundou.                                                 Tem-se dito que o amor é um egoísmo recíproco. E, de fato, cada um dos dois amantes procura possuir o outro; e se ele procura por este outro, sem nisso pensar, nem propor a sua própria perpetuação, procura portanto, o seu prazer. Cada um dos dois amantes é para o outro, diretamente,, um instrumento de prazer, e indiretamente, de perpetuação. E assim, são tiranos e escravos; cada um deles é ao mesmo tempo, tirano e escravo um do outro.


Miguel de Unamuno, Bilbau (Espanha) - 1864-1900 

04/11/2020

Palavras ao léu

 


Vou selecionar umas palavras para lançá-las ao léu, ao vento, aos crédulos e aos incréus. - Para que? - Para nada, nelhures de pitibilhures, afinal de contas, as palavras podem ser apenas nonadas, ninharias que se acumulam nos ninhos que não são de pássaros, mas que precisam criar asas, voar...Nestes tempos de alta tecnologia tornou-se comum a expressão "viralizou nas redes". Quem surgiu primeiro, os vírus ou as redes? Eis aí uma pergunta de difícil resposta; cá com meus botões, faço apenas algumas suposições, partindo da ideia de que a partir da proliferação das bactérias entre os seres vivos, ocorreu o aparecimento dos vírus. As redes, por sua vez, foram se formando quase que automaticamente para estabelecer conexões ou encadeamentos com esses "indivíduos". O desenvolvimento da tecnologia aconteceu pari passu ao da sociedade, criando as possibilidades para a expansão dos vírus. Tecnologia e pandemia passaram a caminhar de mãos dadas. Hoje o que "cai na rede" já não é apenas peixe, mas também um intricado sistema de (in)comunicação, (des)informação, bem como interligações de computadores para compartilhamentos e intercâmbio de dados. Aquela rede criada pelos índios para pescar ou descansar após seu dia de labuta está em vias de extinção. E as palavras, embora num primeiro momento nos pareçam sem sentido, vão adquirindo novos significados, ampliando seu emprego, voando para outros continentes, quiçá para outras galáxias!