DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

30/04/2013

Escrevia...


 
 
Escrevia
porque estava sozinha
e queria estar
com pessoas
 
 
Depois
estava com pessoas
e queria estar sozinha
para escrever
 
 
Adília Lopes, Lisboa


23/04/2013



 

"Nós, os médicos, com os medicamentos que dispomos e com o que sabemos hoje somos uma fábrica de velhos. A sociedade, então pelos seus métodos, fabrica os velhos e depois não sabe o que fazer com eles que viram abacaxi até para a família".


Pedro Nava, Juiz de Fora (MG) - 1903-1984

18/04/2013

Ontologia sumaríssima

Fayga Ostrower



Umas quatro ou cinco coisas,
no máximo, são reais.
 
A primeira é só um gás
que provoca a sensação
de que existe no mundo
uma profusão de coisas.
 
A segunda é comprida,
aguda, dura e sem cor.
Sua única serventia
é instaurar a dor.
 
A terceira é redondinha,
macia, lisa, translúcida,
 e mais frágil do que espuma.
Não serve para coisa alguma.
 
A quarta é escura e viscosa,
como uma tinta. Ela ocupa
todo e qualquer espaço onde não se encontre a quinta
(se é que existe mesmo a quinta),
 
a qual é uma vaga suspeita
de que as quatro acima arroladas
sejam tudo o que resta
de alguma coisa malfeita
torta e mal-ajambrada
que há muito já apodreceu.
 
  Fora essas quatro ou cinco
não há nada,
nem tu, leitor,
nem eu.
 
 
Paulo Henriques Brito, em Mínima lírica, São Paulo - Duas Cidades.

17/04/2013

máquina como se fosse fazer costura

 

 

  máquina como se fosse fazer costura
nada mais fazer do que signos
)p-preto o-preto e-preto
um-m
um-a
tudo diferente de um coser qualquer
que se fechasse em pontilhado branco
máquina como quem quer desfazer
costura de coisas no papel branco
entre um hífen ponte de meditação
dedos-dados dados em lanço de pontos pretos
um lenço um cachimbo
em preto-branco espaço
remate do poema
branco
[na minha luva de ouro]
  na minha luva de ouro na minha luva de prata
escondi raças e povos escondi minha vergonha

na minha luva de pedra
escondi a minha morte
na minha luva de ferro
escondi o meu silêncio
cavaleiro cavaleiro cavaleiro cavaleiro
joga tua luva ao vento
 joga tua luva ao vento
cavaleiro cavaleiro
joga tua luva ao vento
cavaleiro cavaleiro
guarda tua luva
e
vento


Edgard Braga, Maceió(AL) - 1897-1985

10/04/2013

Livro das ignorãças


 
Ando muito completo de vazios.
Meu órgão de morrer me predomina.
Ando sem eternidades.
Não posso mais saber quando amanheço ontem.
Está rengo de mim o amanhecer.
Ouço o tamanho oblíquo de uma folha.
Atrás do oceano fervem os insetos.
Enfiei o que pude dentro de um grilo o meu destino.
Essas coisas me mudam para cisco.
A minha independência tem algemas.
 
 
Manoel de Barros


08/04/2013

Folhas ao vento

 

3.

Como num jogo
correm nas minhas juntas
os ventos do cansaço .

 
5.
 
Para dizer a verdade
mude seus passos, esteja pronto
para incendiar-se.
 
6.
 
Um pouco de tédio
e cubro a todo instante
poças de esperança.
 
12.
 
Virei meu trono do avesso:
quando brinco ou me alegro
preparo em segredo a mortalha
e caminho quando me canso.
 
18.
 
Brinque, escreva um poema:
amplie ainda mais a terra.
 
 
 
Adonis, Síria, 1930-


06/04/2013

do "Livro das perguntas"

 
foto: Francesca Woodman
 
 
Esqueleto
 
 
XLIV
 
Onde está o menino que eu fui?
Está dentro de mim ou se foi?
Sabe que jamais o quis e que tampouco me queria?
Por que andamos tanto tempo crescendo para nos separarmos?
Por que não morremos os dois quando minha infância morreu?
E se minha alma se foi por que me segue o esqueleto?
 
 
LIX
 
 
Por que não nascí misterioso?
Por que crescí sem companhia?
Quem me mandou escancarar as portas de meu orgulho?
E quem saía a viver por mim quando eu dormia ou adoecia?
Que bandeira se agitou alí onde não me esqueceram?
 
 
Pablo Neruda

04/04/2013

Por onde andarás?


 


Mário Quintana  dizia que “a imaginação é a memória que enlouqueceu”, mas às vezes ficamos tão loucos que perdemos a memória e a visão das coisas: tudo se torna branco ou escuro; o som emudece, aquele vozerio de gentes, as gargalhadas, tudo é silêncio! Quedam-se águas nos olhos. O coração é rio seco por onde passa uma ponte de foles sanfonados e silentes. Caminha-se por veredas à procura de estrelas, e então ouve-se ao longe aquele outro poeta que dizia ser um fingidor. Eu que sou nada, sou ninguém, posso dizer abertamente: as estrelas vivem suspensas, brilham impunemente. Cá embaixo procuro no chão minha memória enlouquecida!

03/04/2013

Livros


Se os meus livros – abrires,
Muito acharás – para rires;
Muito também tem – para chorar;
E muitíssimo – pra lamentar!
Algum tanto há que aprender;
E muito talvez para saber!
 
 
VIDA MORAL
 
 
Estou sempre estudando,
Estou sempre gozando,
Estou sempre nadando
Em mares extensos,
Em mares suspensos,
Em mares imensos




VIDA
 
 
Dizem que – viver é doce;
Dizem que viver é agru! -
 É ilusão,
Em que vivem tantos entes;
Eu digo – impertinentes –
Campos Leão Viver – é doce:
E sempre – doce!
Se assim não fosse,
Tudo se – ia!
Ninguém se ria!
Ninguém vivia!


Qorpo Santo,  pseudônimo de José Joaquim de Campos Leão, dramaturgo, poeta, tipógrafo e gramático, nascido em Triunfo (RS)  - 1829-1883 

01/04/2013

Das sonhadas invenções

D. Quixote, Salvador Dali
 
 
[...]
 
 
(..).tanto naquelas leituras se enfrascou, que passava as noites de claro em claro e os dias de escuro a escuro, e assim, do pouco dormir e do muito ler, se lhe secou o cérebro, de maneira que chegou a perder o juízo. Encheu-se-lhe a fantasia de tudo que achava nos livros, assim de encantamentos, como pendências, batalhas, desafios, feridas, requebros, amores, tormentas, e disparates impossíveis; e assentou-se-lhe de tal modo na imaginação ser verdade toda aquela máquina de sonhadas invenções que lia, que para ele não havia história mais certa no mundo.
 
 
 
Miguel de Cervantes, em  Dom Qixote