DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

29/08/2014

Desejos

Manabu Mabe
 
 
 
flutuar no tempo eu
queria no lençol do vento
despertar dos sonhos requentados
 em panos quentes
um jardim de flores não inventadas
amores não dissimulados
 
lençol torcido batido na pedra
até desmanchar-se ao sol
retorcido tornado poeira
sobre o deserto
 
 
língua virada em versos
 eu quero revirar o tempo
retirar o medo dos ossos
atravessar os rios sinistros
que carregam em seus leitos
rosários de mortes previsíveis.

26/08/2014

No meio da noite...

Abri a janela aberta para a sebe
E me debrucei sobre a forma do luar
Sobre a forma da noite sem limites
E eis que um não-sei-quê roçou o meu
 espírito
E eu não pude apanhar essa alma de
minha alma
Talvez uma lembrança
Morta antes mesmo de não ser mais
nada
Além destas palavras
 
 
***
 
Tu não percebes, mas o teu corpo permanece
Tu nada sentes, mas o teu corpo se transforma
Tu falas e o teu corpo faz
Tu vês, ele não vê
Tu caminhas e ele marca passo
Tu saboreias e ele só digere
Tu te ris enquanto ele sorri
Tu adormeces e ele cai no sono
Ele não descobre a mudança
funda de suas forças
 
 
Paul Valéry, 1871-1945

23/08/2014

Selfie-self


 
 

Abro minhas janelas na tentativa de ver o que acontece lá fora; para desmofar o ambiente, mas esqueço de fazê-lo porque vejo apenas o da vizinhança.

Entre espelhos quebrados minha imagem se multiplica em avenidas que se bifurcam em metalinguagens.

Olho pra ti para não olhar pra mim, e, através dos teus defeitos perpetuo os meus carregando-os inflexível e arrogantemente como fazem os tolos: ego e self engalfinham-se esquizofrenicamente.

Eu sou tu, ele é ela. Frutos da mesma árvore com propriedades semelhantes, sabores diferentes.

 Cada qual se defende dos inimigos íntimos que esconde entre os espelhos do seu quarto. 
 

21/08/2014

Pirilimpando palavras


 
 
 
rasgar as entranhas do silêncio
desmanchar os nós costurados
no corpo; fazer do grito um campanário
de palavras a ecoar no espaço
 
do sangue jorrado das feridas
pincelar as paredes da alma
natureza morta empalhada
em moldura
 
das cavernas que sou
não consigo decifrar as palavras
que ecoam saltam como pirilampos
meus pensamentos  se dispersam
em círculos, desconexos...
 
nos interstícios do corpo
dor e prazer se entrelaçam
nas bordas da vida sol e lua
luz e sombra
vida e morte demarcando os dias...


18/08/2014

Barro



 
 

 

  O barro é a palavra
  que te devolve a inocência perdida
  o teu passaporte para a criatura.
  O teu modo de dizer
 o que as pessoas não te disseram nunca.
  O barro é a matéria do teu canto
  o ouro de tua botija
  o amálgama de tua cárie
o salário do teu anonimato
  teu sortilégio e tua perdição.
  O barro é teu sangue coagulado
 que teima em protestar
  o teu mistério se consumindo
  o teu sapato estraçalhado na diáspora
  o teu chapéu de luto
a tua solidão de olhos fitos na vida.
 
 
  FRANCISCO CARVALHO , em Quadrante solar, 1982
Poeta cearense, nascido em Russas, em 1927. Faleceu em março de 2013. 

16/08/2014

[...] Sou pessimista desde o coração à cabeça. Não creio na ressurreição dos corpos e das almas. Nem creio sequer que as pessoas não analfabetas saibam ler, e menos ainda creio que saibam ler poesia. E quando parecem saber, vai-se ver e é um equívoco. Lêem errado. Verifico mais do que suporto verificar que se pega em tudo pelos lados de fora, e se não vê aquilo que esperava ser pegado e visto pelos lados de dentro.
 
 
 
Herberto Helder, Relance sobre a poesia de Edmundo Bettencourt

15/08/2014

Arthur bispo do Rosário

Arthur Bispo do Rosário nasceu em Conceição do Coité(BA) em 1909 e faleceu no Rio de Janeiro em 1989.
 


13/08/2014

Água de beber

 
 
 
rios desertificados engendram
uma multidão solitária
silenciosa e sedenta
 
cardumes de vozes
presas sangram para
o mar do corpo faminto

12/08/2014

Gravidez de risco...

Arte mochica (Peru)


dias que não amanhecem
horas que respingam no
escuro em contrações

09/08/2014

Jose Juan Tablada, México (1871-1945)


 
 

 
Haicais
 
 
 
Mariposa noturna
 
 
Devolve à ramagem nua,
noturna mariposa
as folhas secas de tuas asas.
 
 
 
Folhas secas
 
 
O jardim está cheio de folhas secas;
nunca vi tantas folhas em suas árvores
verdes, na primavera.
 
 
 
A lua
 
 
A lua é aranha
de prata
que tem sua teia
no rio que a retrata.

07/08/2014

Somos todos poetas

Assisto em mim a um desdobrar de planos:
as mãos vêem, os olhos ouvem,
o cérebro se move, a luz desce das origens
através dos tempos e caminha desde já
na frente dos meus sucessores...
 
Companheiro, eu sou tu, sou membro
do teu corpo e adubo da tua alma.
 
Sou todos e sou um, sou responsável
pelas auroras que não levantam,
e pela angústia que cresce dia a dia...
 
Murilo Mendes, Juiz de Fora(MG) - 1901-1979

04/08/2014

VOZES ABAFADAS

 Xavier Mascaro

 
O ruído vem de longe e quase não se escuta
Passa no ar ou ruge dentro de nossos ouvidos?
Vem do centro da terra ou do terror das consciências?
 
São crianças chorando com medo da vida?
Soluços de mães que ignoram as causas?
Gritos alucinados de homens caídos sob as
rodas do carro terrível?
São os últimos brados das pátrias esfaceladas,
Os uivos do vento nas bandeiras das nações
vencidas,
Ou no ventre do caos os vagidos do
mundo futuro?
 
Cala, poesia,
A dor dos homens não se pode exprimir em
nenhuma língua.
Talvez a exprimisse o ai da cabeça separada do
corpo que rola ensanguentada,
Talvez a escrevesse a mão hirta que no último
gesto de horror largou a espada,
Talvez a dissesse o grito sufocado, o pranto que
salta, o suor frio, o olhar esbugalhado...
Ante o ricto dos mortos compreendo que a dor
não se exprime
Em língua nenhuma e ainda que os homens
falassem todos uma só língua.

  
***
 
 
 
A NOITE O GIRO CEGO
 
 
 


À noite o giro cego das estrelas,
errante arquitetura do vazio,
desperta no meu sonho a dor distante
de um mundo todo negro e todo frio.
 
Em vão levanto a mão, e o pesadelo de um cosmo
conspirando contra a vida me desterra no meio
de um deserto onde trancaram a porta de saída.
 
Em surdina se lançam para o abismo
nuvens inúteis, ondas bailarinas, relâmpagos,
promessas e presságios,
sopro vácuo da voz frente à neblina.
 
E em meio a nós escorre sorrateira
a canção da matéria e da ruína.


Dante Milano,  Rio de Janeiro (RJ) -  1899-1991
 

02/08/2014

Sem estrela

A morte ía comigo e eu, com ela.
E vi o seu ridículo vestido,
o andar desajeitado e sem sentido,
o rosto com penteado de donzela,
 
sendo tão velha, velha no ruído
de suas meias e sapatos de heras.
Então não resisti e me ri dela,
caçoei de seus gestos confundidos.
 
E desta sisudez que nada espera,
mas sabe que na vida um só gemido
pode fazê-la emudecer. Insisto
 
em rir de sua passagem sem estrela
sem grandeza nenhuma. E se resisto,
é porque está em mim quem vai vencê-la
 
 
Carlos Nejar, escritor, poeta, crítico literário, nasceu em Porto Alegre(RGS) em 1939.