DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

30/04/2016

Kafkianas

Lábios libres, Wilfredo Lan
 
Não sabes nada. De repente tudo vem abaixo, tua cabeça faz um giro de 360º como se desmoronasses sobre si mesmo mas continuas no mesmo lugar. Tudo
e todos te são estranhos, e familiares, ao mesmo tempo. Teu corpo tua estrutura óssea os órgãos internos o sangue que pulsa em tuas veias segue circulando, te abastecendo de oxigênio embora aqui e ali acelere mais que o comum, apressando os batimentos cardíacos afogueando o teu rosto. O que está acontecendo? Por acaso és como as cobras que trocam de pele para renovar-se? Ou será o ovo da serpente que está para ressurgir?
Quem é?
["Alguém me disse - não posso mais me lembrar quem foi - que é maravilhoso
o fato de que, quando se acorda de manhã cedo, ao menos em geral, encontra-se tudo no mesmo lugar que na noite anterior. No sono e no sonho, pelo menos na aparência, a pessoa se acha num estado essencialmente diferente da vigília,
(...)é necessária uma infinita presença de espírito, ou melhor, presteza para,
abrir os olhos, apreender tudo o que ali está, de certo modo, no mesmo lugar
em que foi deixado ao anoitecer. Por isso, o instante do despertar é também o
instante mais arriscado do dia". ] *
Já não sei se estou sonambulando, deambulando, ou se me encontro em vigília
permanente. O sol já caminha a passos largos soltando fogo pelas ventas porque mais uma vez não conseguiu (e nem conseguirá) encontrar-se com a lua
seu amor impossível. As pessoas transitam apressadas pelas ruas à procura,
quem sabe, de si mesmas; esbarram umas nas outras, sem rumo, ignorando
quem está a seu lado. Será que é apenas uma alucinação? Ou será um pesadelo? Sei que esses acontecimentos já ocorreram outras vezes, em carnavais de triste memória. Há um cheiro de podridão no ar - as moscas são
outras, mas o gás metano é o mesmo. E há corvos, e há urubus também, disputando o território como se estivéssemos numa "terra de ninguém", sem povo e sem História. Todos eles querem um naco de poder!


* Franz Kafka, em O Processo

26/04/2016

Cântico Negro


"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!
 
José Régio nasceu em Vila do Conde(Portugal) em 1901 e faleceu em 1969.
Romancista, dramaturgo, ensaísta e poeta.



23/04/2016

Dos venenosos e do sonho

 O filósofo Sócrates(469-399 a.C.) tomando o veneno da cicuta


"La première loi de tout être c'est de se conserver, c'est de vivre.
Vous semez de la cigüe, et prétendez voir mûrir des épis!"
Maquiavel - Florença(Itália) 1469-1527
 
A primeira lei de todo ser é a de se preservar, de viver. Os senhores plantam cicuta e querem ver brotar espigas!






Sonhar mais um sonho impossível,
lutar quando é fácil ceder; vencer,
o inimigo invencível, negar, quando
a regra é vender.
Sofrer a tortura implacável,
romper a incabível prisão.
Voar num limite improvável,
tocar o inacessível chão
é minha lei, é minha questão.
Virar esse mundo, cravar esse chão;
não me importa saber se é terrível demais
Quantas guerras terei que vencer
por um pouco de paz
E amanhã, se esse chão que eu beijei
for meu leito e perdão, vou saber
que valeu delirar e morrer de paixão
E assim, seja lá como for,
vai ter fim a infinita aflição
E o mundo vai ver uma flor
brotar do impossível chão.

(versão de Chico Buarque e Ruy Guerra) 


21/04/2016

O teu retrato

Gerard Richter
 
 
Em uma tela sem tamanho
vi o teu retrato.
Olhos parados, perdidos no espaço,
ansiando o infinito; olhos grandes
e tristes escondendo da face
as lágrimas que sentiam
e não deixavam rolar.
 
Olhos tristes que indiferentes às
rugas do rosto fingiam um sorriso
para enganar a máscara do tempo.
 
Senti a ânsia do teu olhar,
em sais correndo pelas ruas
e abraços ao primeiro que
encontrasses no desejo incontido
de fugir da angústia.
Senti o teu medo, teu pavor
de se perder no espaço e
como planeta vagante
nunca mais encontrar-se com o fim.
 
Senti no teu olhar o cofre
dos teus segredos a querer
vomitar o teu tempo.
 
Ouvi o grito cortado dos
teus lamentos; ouvi
os teus gemidos, senti a tua
angústia, sofri a tua dor.
 
Espero um novo teu retrato.

18/04/2016

Circo de horror e de vergonha!



 
Puxo os cabelos pelas pontas, custo a crer no que vi, ao vivo e em cores na televisão; como seria um aviário guardado por raposas? e um rebanho guiado por lobos?  O espetáculo representado ontem, dia 17 de abril de 2016, na Câmara dos Deputados, pelos supostos representantes do povo brasileiro, deu-me ânsia de vômito, um profundo sentimento de indignação! Jamais pensei que viveria o suficiente para assistir um verdadeiro show de horror! Como é possível que um indivíduo considerado réu, acusado de inúmeros crimes comprovados internacionalmente, possa presidir um processo de impedimento de alguém que não possui em seu currículo nenhum crime comprovado? Como é possível que os supostos representantes do povo tenham, em sua maioria, processos criminais para responder e possam julgar quem quer que seja? A esmagadora maioria desses supostos cidadãos, eleitos e muito bem pagos pelo povo brasileiro, que votaram a favor da abertura do processo de impedimento da presidenta da República, são investigados pela polícia federal sob a acusação de corrupção. E, durante essa fraude que foi montada para que houvesse uma votação, nenhum deles, em nenhum momento, mencionou o motivo real do que estava sendo votado, nem sequer referiram-se ao povo que os elegeu. Todos eles fizeram questão de agradecer e/ou homenagear suas famílias: o pai, a mãe, a esposa, a filhinha que vai nascer, os netos, enfim, só faltaram o gato,
o cachorro, o papagaio, et caterva...!
Ontem, vimos de uma forma nua e crua quem são os oportunistas, hipócritas
e falsos moralistas, que têm a cara de pau de dizer que são nossos representantes e defendem nossos interesses. Usam a palavra "povo" apenas
para seu próprio benefício. Lastimavelmente o povo ainda não percebeu o quanto tem sido manipulado pelos políticos mau caráter, e pela grande mídia,
que defende os interesses deles, das grandes indústrias e do capital financeiro
nacional e internacional. Confesso que sinto vergonha desse "Congresso" que aí está. Não me sinto absolutamente representada por ele, e nem lhe dou esse direito. Até o sindicato de ladrões tem um código de ética, de respeito entre eles...! 

Prefiro ficar careca!!!!   

16/04/2016

Súbita Elegia



 
Marinheiro nunca fui.
Nasci para as viagens.
Nasci para habitar os portos e os mares.
Em vão sonhei navios.
Meu olhar reflete embarcações.
Nunca tive uma ilha para amar.
E me perdi em vãs infantarias.
 
Marinheiro não fui.
Minha âncora és tu, poema.
(No sono nascem gaivotas impossíveis)
 
 
Artur Eduardo Benevides, Pacatuba(CE) - 1923-2014

10/04/2016

José Saramago: um convite à reflexão



 
Somos a memória que temos e a responsabilidade que assumimos.
Sem memória não existimos, sem responsabilidade talvez não mereçamos existir.
 
***
 
Acho que na sociedade atual nos falta filosofia. Falta-nos reflexão, pensar, precisamos do trabalho de pensar, e parece-me que sem ideias, não vamos
a parte nenhuma. Falamos muito ao longo destes últimos anos, dos direitos humanos; simplesmente deixamos de falar de uma coisa muito simples, que
são os deveres humanos, que são sempre deveres em relação aos outros, sobretudo. E é essa indiferença em relação ao outro, essa espécie de desprezo
pelo outro, que me pergunto se tem algum sentido numa situação ou no
quadro de existência de uma espécie que se diz racional.
O egoísmo pessoal, o comodismo, a falta de generosidade, as pequenas cobardias do quotidiano, tudo isto contribui para essa perniciosa forma de
cegueira mental, que consiste em estar no mundo e não ver o mundo ou só ver
dele o que em cada momento, for susceptível de servir os nossos interesses.
Temos que acreditar nalguma coisa e, sobretudo, temos de ter um sentimento
de responsabilidade colectiva, segundo o qual cada um de nós será responsável
por todos os outros. A prioridade absoluta tem de ser o ser humano. Acima
disso não reconheço nenhuma outra prioridade.
Estou convencido de que é preciso continuar a dizer não, mesmo que se trate
de uma voz no deserto.
A vida é breve, mas cabe nela muito mais do que somos capazes de viver.


08/04/2016

João Guimarães Rosa - Documentário

" O senhor não duvide, tem gente que mata nesse mundo só pra ver alguém fazer careta".
 


04/04/2016

Da arte de ser poeta




[...] Atingimos o ponto máximo do egoísmo, o estado atômico do ser. E seremos despedaçados. Preparamo-nos agora para a morte do pequeno ego a fim de que possa surgir o ego verdadeiro. Inconscientemente e sem querer unificamos o mundo, mas também o nulificamos. Se for verdade, como disse Lautréamont, que "a poesia deve ser feita por todos", então temos que achar uma nova linguagem em que um coração fale com outro sem intermediários. (...) Ser poeta era antigamente a vocação mais sublime; hoje é a mais fútil. E isso não porque o mundo seja imune às súplicas do poeta, mas porque ele mesmo não acredita mais no caráter divino de sua missão. Já vem cantando fora de tom há mais de um século; por fim não conseguimos mais sintonizar. [...] O culto da arte não preenche sua finalidade quando só existe para meia dúzia de homens e mulheres privilegiados. Então não é mais arte, mas a linguagem cifrada de uma sociedade secreta para a propagação de uma individualidade descabida. A arte é algo que incita as paixões humanas, que dá visão, lucidez, coragem e fé. Que artista da palavra, nestes últimos anos, incitou o mundo como Hitler? (...)
Que armas tem o poeta, em comparação? Ou que sonhos? Aonde foi parar a
sua decantada imaginação? A realidade está aí, diante de nossos próprios olhos, completamente nua, mas onde está o cântico para anuncia-la? Existe algum poeta visível, de quinta magnitude ao menos? Não vejo nenhum. Não chamo de poeta quem apenas faz versos, com ou sem rima. Para mim, poeta é aquele homem capaz de alterar profundamente o mundo. Se houver um poeta desses vivendo entre nós, que se proclame. Que levante a voz!
 
 
Henry Miller (1891-1980), em A hora dos assassinos

01/04/2016

Desmemória


 
 
Esquecemos há muito tempo, o ritual segundo o qual foi edificada a casa de nossa vida. Mas quando é preciso tomá-la de assalto e começam a cair as bombas inimigas, quantas lembranças descarnadas e estranhas descobrimos
entre as fundações!
 
 
Walter Benjamin, filósofo alemão, (1892-1940), em Rua de mão única.