DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

21/02/2022

Dos olhos que "arquipelagam-se"

 





Os olhos mergulham em águas lacrimosas como serpentes que deslizam num leito de rio à procura de alimento: saem das órbitas, arregalam-se. A boca cerra os dentes, e quase engole a língua - emudece. A mão caminha sobre a página em busca de palavras, mas os pés se metem entre elas para atrapalhar o caminho da linguagem. Lá do alto, o cérebro, que tudo comanda, vai liberando a mente e os pensamentos, transformando os olhos em pequenas ilhas de pedras que se metamorfoseiam em caminhos: arquipelagam-se!

19/02/2022

O Espelho: três autores sobre o mesmo tema (trechos)




Charles Baudelaire - Paris, 1821-1867


Um homem pavoroso entre e mira-se no espelho:

"Por que você se olha no espelho, já que não se pode ver senão com desespero?"

O homem pavoroso respondeu: "Meu senhor, segundo os imortais princípios de 89, todos os homens são iguais em seus direitos; portanto possuo o direito de me contemplar, com prazer ou desgosto, isso não diz respeito senão à minha consciência."

Em nome do bom senso, eu tinha, sem dúvida, razão; mas do ponto de vista da lei, ele não estava errado.


*****


Machado de Assis, Rio de Janeiro, 1839-1908


[...] 

- Lembrou-me vestir a farda de alferes. Vesti-a, aprontei-me de todo; e, como estava defronte do espelho, levantei os olhos, e...não lhes digo nada; o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior. Essa alma ausente com a dona do sítio, dispersa e fugida com os escravos, ei-la recolhida no espelho. Imaginai um homem que, pouco a pouco, emerge de um letargo, abre os olhos sem ver, depois começa a ver, distingue as pessoas dos objetos, mas não conhece individualmente uns nem outros.(...) Olhava para o espelho, ia de um lado a outro, recuava, gesticulava, sorria, e o vidro exprimia tudo. Não era mais um autômato, era um ente animado. Daí em diante, fui outro. Cada dia, a uma certa hora, vestia-me de alferes, e sentava-me diante do espelho, lendo, olhando, meditando; no fim de duas, três horas, despia-me outra vez. Com este regime pude atravessar mais seis dias de solidão, sem os sentir...



*****



João Guimarães Rosa, Cordisburgo(MG)1908-1967


(...) Um dia...Desculpe-me, não viso a efeitos de ficcionista, inflectindo de propósito, em agudo, as situações. Simplesmente lhe digo que me olhei num espelho e não me vi. Não vi nada. Só o campo, liso, às vácuas, aberto como o sol, água limpíssima, à dispersão da luz, tapadamente tudo. Eu não tinha formas, rosto? Apalpei-me, em muito. Mas o invisto. O ficto. O sem evidência física. Eu era - o transparente contemplador?...Tirei-me. Aturdi-me, a ponto de me deixar cair numa poltrona.

Com que, então, durante aqueles meses de repouso, a faculdade, antes buscada, por si em mim se exercitara! Para sempre? Voltei a querer encarar-me. Nada. E, o que tomadamente me estarreceu: eu não via os meus olhos. No brilhante e polido nada, não se me espelhavam nem eles! 

12/02/2022

Aporia



Fosse fosso, fosse foz, fossem nozes que caíssem sobre as cabeças de um bom bocado de gente, talvez a casa não demorasse tanto tempo para cair. Talvez seja por isso que as raposas escorregam cada vez mais nos rios temporários, abundantes em porcos-espinhos!

04/02/2022

Desloucura, ou aporeticamente falando

 



Liberdade é ter asas de origami disfarçada de pássaro; é poder soltar gritos aprisionados nas catacumbas, nos porões das catedrais medievais cujos sinos emudeceram. São as garras da quimera enterradas no horizonte; é uma chita estampada em muitas cores entrelaçadas com fios pretos, dourados, prateados, forrada com estopa. Liberdade é pau, é preto, é pedra, é branco, amarelo, é pardo, é o verde das matas; é correr, é dançar, cantar, chorar e sorrir, espernear, é protestar. É ter a cabeça cheia de sonhos revelados, lembranças esquecidas; é ter pesadelos que se tornam realidade. É violência, espancamentos, perversão, racismo e xenofobia. Liberdade é o escancaro da porta da caixa de Pandora, é o salve-se quem puder! É o fardo ancestral que supõe-se amar, mas que em nome dela matamos. É fartura para uma minoria, e fome para a maioria.