DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

31/05/2021

Machado de Assis e as vacinas




Crônica, 9 de dezembro de 1894

“Tudo tende à vacina. Depois da varíola, a raiva; depois da raiva, a difteria; não tarda a vez do cólera-morbo.

O bacilo-vírgula, que nos está dando que fazer, passará em breve do terrível mal que é, a uma simples cultura científica, logo de amadores, até roçar pela banalidade. (…)

Todas as moléstias irão assim cedendo ao homem, não ficando à natureza outro recurso mais que reformar a patologia.

Não bastarão guerras e desastres para abrir caminho às gerações futuras; e demais a guerra pode acabar também, e os próprios desastres, quem sabe? obedecerão a uma lei, que se descobrirá e se emendará algum dia.


Sem desastres nem guerras, com as doenças reduzidas, sem conventos, prolongada a
velhice até às idades bíblicas, onde irá parar este mundo? Só um grande carregamento, ó doce mãe e amiga Natureza; só um carregamento infinito de moléstias novas.


Mas a vacina não se deve limitar ao corpo; é preciso aplicá-la à alma e aos costumes, começando na palavra e acabando no governo dos homens.

Já a temos na palavra, ao menos, na palavra política. Graças às culturas sucessivas, podemos hoje chamar bandido a um adversário, e, às vezes, a um velho amigo, com quem tenhamos alguma pequena desinteligência. Está assentado que bandido é um divergente. Corja de bandidos é um grupo de pessoas que entende diversamente de outra um artigo da Constituição.

Quando os bandidos são também infames, é que venceram as eleições, ou legalmente, ou aproximativamente. (…)

Conhecido o princípio, sabido que tudo deriva de um micróbio, inclusive o vício e a virtude, obtém-se pelo mesmo processo a eliminação de tantos males.

O boato tem sido descomposto de língua e de pena, é um monstro, um inimigo público, é o diabo, sem advertirem os autores de nomes tão feios, que o boato é a cultura atenuada do acontecimento. Daqui em diante a história se fará com auxílio da bacteriologia.


As eleições, – uma das mais terríveis enfermidades que podem atacar o organismo social, – perderam a violência, e dentro em pouco perderão a própria existência nesta cidade, graças à cultura do respectivo bacilo.

Aposto que o leitor não sabe que tem de eleger no último domingo deste mês os seus representantes municipais? Não sabe. Se soubesse, já andaria no trabalho da escolha do candidato, em reuniões públicas, ouvindo pacientemente a todos que viessem dizer-lhe o que pensam e o que podem fazer. (…)”

26/05/2021

Fragmentos provisórios

 




Cíclope ciclópico utópico bucólico...síndrome de lamentos jazzísticos pendurados nas árvores pelo pescoço....Aranha, aranha, caranguejeira, a bicha é feia mas é faceira, foi no doutor se receitar, o doutor disse: - é melhor morrer! Telêmaco Thelonius Andrômaco Andrômeda Stanislau Rabelais - não seja cruel, seu Manuel, abra a boca e feche os olhos...Ô mundo cão da gota serena, tá parecendo com os tempos idos de Gilgamesh, e olha que já lá se vão milênios... Mas é isso mesmo o tempo é como a roda da desfortuna: de tempos em tempos roda ao contrário, empaca e descompassa - passa passando sem passar, mas não para, cheio de contratempos...                                                                                  Eh vida velha besta, a gente pensa que se renova e cresce pra baixo, feito cabelo que se estica quando puxamos mas quando solto encolhe de novo! Mergulha submerge afunda e emerge entre algas protozoários hydras e cobras e lagartos verdes e amarelos e roedores implacáveis...    Conversas fiadas tecidas por dias e noites nos palácios, nas casernas e masmorras - castelos que desmoronam, fortalezas reconstruídas, ascensão e queda de supostos impérios invencíveis. Apesar dos cães, o sol há de avermelhar este céu escuro que ainda paira sobre nós. 

19/05/2021

Teus olhos




Teus olhos refletem a cor do musgo

das pedras que se banham no vaivém

dos dias;

a água que escorre sobre teu corpo

molda as pedras que o tempo redesenhou;

fragmentos de sal e suor formaram

placas até então desconhecidas.

Teus olhos veem imagens de fantasmas

sob a fímbria de teus pensamentos

velozes e permanentes:

franjas esgarçadas

em carne viva.


16/05/2021

Dois poema de Jacinta Passos *

 




O rio


Tantos rios como eu abriram leitos de pedras

e pranto. Um dia perguntávamos:

Dizei-me, curva, onde vou? casa trono rocha sois

aqueles que ficam, minha lei é não parar. Sigo

fio de água, água humilde sou, para onde? Ó curva, falai.

Água de revolta, espuma espuma de ódio nos poros

na garganta no útero, pranto de mulher, água

de fel antigo, quem é meu semelhante? Dizei, onde vou?


Leito de pedras

e pranto. Súbito, próximo.

Atravessou, olhaí, ele!

ali na frente, vivo, tão vivo,

ele sim! o rio das águas inúmeras. Correi

doçuras e dores, punhos. Partido, esperança nossa...


Canção do amor livre


Se me quiseres amar

não despe somente a roupa.


Eu digo: também a crosta

feita de escamas de pedra

e limo dentro de ti

pelo sangue recebida

tecida

de medo e ganância má.

Ar de pântano diário

nos pulmões.

Raiz de gestos legais

e limbo do homem só

numa ilha.


Eu digo: também a crosta

essa que a classe gerou

vil, tirânica, escamenta.


Se me quiseres amar.

Agora teu corpo é fruto.

Peixe e pássaro, cabelos

de fogo e cobre.

Madeira

e água deslizante fuga

aí rija

cintura de potro bravo.

Teu corpo.


Relâmpago depois repouso

sem memória, noturno.


Jacinta Passos nasceu em Cruz das Almas(BA), no dia 30 de novembro de 1914 e faleceu em 28 de fevereiro de 1973. Livros publicados: Momentos de poesia (1941), Canção da partida (1945), Poemas políticos (1951) e A Coluna (1958)

08/05/2021

Letras em pílulas

 



Sem saída


Era tão raivoso que acabou recebendo uma antirrábica.


*****


No restaurante


Opções de cardápio: mastigado ou triturado?


*****


Autorretratos


Cara de palhaço ou cara de paisagem


*****


Quem quer saber


Quem de nós vai viver, qual de vós vai chorar, quantos restarão?

04/05/2021

Dois contos de Robert Walser

 A arvorezinha



Eu a vejo mesmo quando passo por ela sem prestar atenção. Ela não foge, fica parada, quietinha; não é capaz de pensar nem de querer coisa nenhuma; não, ela só consegue crescer, estar no espaço e ter folhas que ninguém toca, que as pessoas apenas contemplam. A sombra que elas dão, os ocupados passam correndo.                                                      Nunca te dei nada? Mas ela não precisa de felicidade. Talvez se alegre quando a acham bonita. Vocês acreditam nisso? Que sagradas inocências expressa. Não sabe de nada, só está ali para me dar prazer.                   Se digo ao bom algo que não lhe é dado ouvir, por que não teria sentido esse meu amor? Ela nunca me vê sorrir em resposta ao cumprimento que me dirige sem o saber. Morrer aos pés desse ser, como aquela figura que Courbet pintou, despedindo-se para sempre!                                  Decerto seguirei vivendo, mas, e de você, o que será?                      



***


A Coruja



No muro em ruínas, a coruja disse a si mesma: Ó existência terrível! Qualquer um se horrorizaria, mas eu tenho paciência, baixo os olhos e fico assim, de cócoras. Tudo em mim ou próximo a mim descai em véus cinzentos, mas também sobre minha cabeça brilham as estrelas, e saber disso me fortalece. Espessa plumagem me reveste. Durante o dia, durmo; à noite, fico acordada. Não preciso de espelho para descobrir que aspecto tenho; meu sentimento me diz. É-me fácil imaginar meu rosto estranho.                                                                              Chamam-me de feia. Se soubessem como minha alma irradia risonhas sensações, não se assustariam comigo. Mas não veem dentro de mim, param no corpo, detêm-se nas vestes. Um dia, fui jovem e bonita, eu poderia dizer, mas isso soa como se tivesse saudade de alguma coisa, e não tenho. Aquela que praticava ser grande suporta com tranquilidade o curso e a mudança do tempo, encontra-se em todo e qualquer presente. Dizem-me: "Filosofia". Mas a morte precoce anula a posterior. A morte não é novidade nenhuma para a coruja; ela já a conhece. Parece que sou uma erudita, que uso óculos e que alguém se interessa tanto por mim que vez por outra vem me visitar. Acha-me harmoniosa. Diz que sou alguém que não o decepciona. É certo que também nunca o enfeiticei. Estuda-me em profundidade, acaricia-me as asas, de vez em quando me traz alguma coisa da confeitaria, com o que acredita proporcionar uma alegria à mais séria das mulheres, e tem razão. Estou lendo um poeta que, por sua delicadeza, se presta a ser digerido por uma coruja. Há algo de doce no seu modo de ser, algo de velado, de indefinido; em suma, é-me apropriado. No passado fui graciosa, ria, gracejava pelo azul do dia afora, virei a cabeça de vários jovens cavalheiros. Agora é diferente, calço sapatos furados, estou velha e fico aqui sentada, quieta.


Robert Walser nasceu em Biel (Suíça), em 1878 e faleceu em 1956 durante uma caminhada na neve. Foi achado por crianças. Publicou três romances, vários textos de prosas curtas, além de publicações em jornais e revistas. São de sua autoria Os irmãos Tanner, O ajudante, e Jakob von Gunten, considerado sua obra-prima.