DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

28/06/2016

Navegando com Ana Cristina Cesar


 
 

Fisionomia
 
não é mentira
é outra
a dor que dói
em mim
é um projeto
de passeio
em círculo
um malogro
do objeto
em foco
a intensidade
de luz
de tarde
no jardim
é outrart
é outra a dor que dói.
 
 
***
 
houve um poema
que guiava
a própria ambulância
e dizia: não lembro
de nenhum céu que me console
nenhum
e saía
sirenes baixas
recolhendo os restos das conversas,
das senhoras,
"para que nada se perca
ou se esqueça",
proverbial,
mesmo se ferido,
houve um poema
ambulante
cruz vermelha
sonâmbula
que escapou-se
e foi-se
inesquecível,
irremediável,
ralo abaixo
 
***
 
olho muito tempo o corpo de um poema
até perder de vista o que não seja corpo
e sentir separado dentre os dentes
um filete de sangue nas gengivas
 
***
 
Soneto
 
Pergunto aqui se sou louca
Quem quer saberá dizer
Pergunto mais, se sou sã
E ainda mais, se sou eu
 
Que uso o viés pra amar
E finjo fingir que finjo
Adorar o fingimento
Fingindo que sou fingida
 
Pergunto aqui meus senhores
quem é a loura donzela
que se chama Ana Cristina
 
E que se diz ser alguém
É um fenômeno mor
Ou é um lapso sutil?
 
 
Navegação da palavra
 
...as palavras bocas e ouvidos
as palavras hálitos bravios:
velas pandas nas noites
verticais

***
como rasurar a paisagem

a fotografia
é um tempo morto
fictício retorno à simetria

secreto desejo do poema
censura impossível
do poeta.

Ana Cristina Cesar, a poeta que nasceu em 1952 e partiu sem pedir licença ao tempo, em 1983, será homenageada a partir de amanhã, 29.06 a 03.07.2016
na FLIP-Festa Literária Internacional de Parati(RJ).   

 


25/06/2016

Previsibilidade


 
 
nãos são oferecidos em bandejas
de ouro ou de prata
portas são abertas para
o abismo, e qualquer
dúvida pode provocar o desabamento
de pontes tempestuosas para o
passado, o telhado de tua
cabeça cai sobre teu corpo;
sob teus pés a lama
lâmina fina penetra nas
entranhas de tua alma
esvazia tua boca e
dá cabo das palavras
soltas loucamente
 
a saliva da aranha liga
do fio das palavras
é somente um balbucio
pelos cantos da boca
redundância verbal
 
anacronismo?
 
tentar apalpar palavras
insistir no impalpável
quebrar sentimentos
para traduzi-los
 
esfinges não decifram
o pó que o vento dispersa
o tempo é semente
brota no deserto
oásis de memórias
ensandecidas cultivadas
em alfarrábios esquecidos
 


21/06/2016

De Armando Freitas Filho *





Matéria
 
 
Parece que os séculos
cuidam dos castelos
que no alto das montanhas
são o sonho das pedras
ou o desejo das nuvens.
Escrever é uma pedreira.
Se me atirasse daqui
de uma de suas torres de marfim
cairia talvez
inteiro
em corpo reduzido
na página de qualquer jornal.
Escrever é uma pedraria.
 
Armando Freitas Filho, nasceu no Rio de Janeiro em 1940. Estreou como poeta em 1963 com o poema Palavra; fez parte do movimento Práxis, que se preocupava com a estética no início dos anos 1960; a partir da década de 1970
passou a fazer parte da poesia marginal, quando conheceu a poeta Ana Cristina
César(1952-1983)de quem tornou-se amigo íntimo. É autor dos livros: Duplo Cego, Lar, Dual e Sol e Carroceria. É um dos convidados e o coordenador da obra poética de Ana Cristina César que será homenageada na Festa Literária
de Parati, no início de julho de 2016.

17/06/2016

Das "Iniciativas" de Aníbal Machado *

Faça o que lhe digo. Solte primeiro uma borboleta.
Se não amanhecer depressa, solte outras de cores diferentes.
 
 
 
 
De vez em quando, faça partir um barco. Veja aonde vai. Se for difícil, suprima o mar e lance uma planície.
Mande um esboço de rochedo, o resto de uma floresta.
Jogue as iniciais do lenço. Faça descer algumas ilhas.
Mande a fotografia do lugar com as curvas capitais e a cópia dos seios.
Atire um planisfério. Um zodíaco. Uma fachada de igreja. E os livros fundamentais.
Sirva-se do vento, se achar difícil.
Eles estão perdidos. Mas nem tudo o que fizeram está perdido.
Separa o que possa ser aproveitado e mande. Sobretudo, as formas em que o sonho de alguns se cristalizou.
Remeta a relação dos encontros, se possível. E o horário dos ventos.
Mande uma manhã de sol, na íntegra.
Faça subir a caixa de música com o barulho dos canaviais e o apito da locomotiva.
Veja se consegue o mapa dos caminhos.
Mande o resumo dos melhores momentos.
As amostras de outra raça.
Com urgência, o projeto de uma nova cidade!
 
A PACIÊNCIA da Esfinge. Que paciência!
 
 
* Aníbal Monteiro Machado nasceu em Sabará(MG) em 1894 e faleceu no Rio de Janeiro em 1964. É autor de Tati, a garota, A morte da porta-estandarte, Vila feliz, Histórias reunidas, poesias, além de ensaios e críticas literárias.


11/06/2016

Testamento



 

O que não tenho e desejo
É que melhor me enriquece.
Tive uns dinheiros - perdi-os...
Tive amores - esqueci-os.
Mas no maior desespero
Rezei: ganhei essa prece.
 
Vi terras da minha terra.
Por outras terras andei.
Mas o que ficou marcado
No meu olhar fatigado,
Foram terras que inventei.
 
Gosto muito de crianças:
Não tive um filho de meu.
Um filho!...Não foi de jeito...
Mas trago dentro do peito
Meu filho que não nasceu.
 
Criou-me desde eu menino,
Para arquiteto meu pai.
Foi-se-me um dia a saúde...
Fiz-me arquiteto? Não pude!
Sou poeta menor, perdoai!
 
Não faço versos de guerra.
Não faço porque não sei.
Mas num torpedo-suicida
Darei de bom grado a vida
Na luta que não lutei!
 
 
Canção das Duas Índias
 
Entre estas Índias de leste
E as Índias ocidentais
Meu Deus que distância enorme
Quantos Oceanos Pacíficos
Quantos bancos de corais
Quantas frias latitudes!
Ilhas que a tormenta arrasa
Que os terremotos subvertem
Desoladas Marambaias
Sirtes sereias Medeias
Púbis a não poder mais
Altos como a estrela d'alva
Longínquos como Oceanias
- Brancas, sobrenaturais -
Oh inacessíveis praias!...
 
 
Os nomes
 
Duas vezes se morre:
Primeiro na carne, depois no nome.
A carne desaparece, o nome persiste, mas
Esvaziando-se de seu casto conteúdo
- Tantos gestos, palavras, silêncios -
Até que um dia sentimos,
Com uma pancada de espanto (ou de remorso?)
Que o nome querido já nos soa como os outros.
 
Santinha nunca foi para mim o diminutivo de Santa.
Nem Santa nunca foi para mim a mulher sem pecado.
Santinha eram dois olhos míopes, quatro incisivos
[claros à flor da boca.
Era a intuição rápida, o medo de tudo, um certo modo
[de dizer "Meu Deus, valei-me".
 
Adelaide não foi para mim Adelaide somente
Mas Cabeleira de Berenice, Inominata, Cassiopeia.
Adelaide hoje apenas substantivo próprio feminino.
Os epitáfios também se apagam, bem sei.
Mais lentamente, porém, do que as reminiscências
Na carne, menos inviolável do que a pedra dos túmulos.
 
 
Manuel Bandeira, Recife(PE) 1886-1968

06/06/2016

Uma crônica de Raquel de Queiroz *




Bonecas russas
 
 
Não me lembro como se chamam as tais bonecas folclóricas russas: são as que
são ocas e abre-se a boneca maior e dentro dela há uma menor, e dentro dessa
outra menor ainda, e depois outra e mais outra, até chegar à última, que é uma
simples miniatura de boneca. No mesmo gênero, também é aquele conto de fadas: "Lá no mar tem uma ilha, dentro da ilha tem um castelo, dentro do castelo tem uma torre, dentro da torre tem um quarto, dentro do quarto tem
uma arca, dentro da arca tem uma caixa, dentro da caixa tem um cofre, dentro
 do cofre tem um frasco, dentro do frasco tem uma pomba, dentro da
pomba tem um ovo, dentro do ovo tem uma chave e é essa chave que abre  a
porta da prisão onde está a princesa encantada".

Pois a gente também é assim. A princípio eu pensava que, com a passagem das
diferentes idades do homem, o maior ia substituindo o menor, quero dizer, o
menino ficava no lugar do nenê, o adolescente no do menino o moço no do adolescente, o homem feito no do moço, o de meia-idade no do homem feito,
 o velho no lugar do de meia-idade e por fim o defunto no lugar de todos. Mas
depois descobri que os indivíduos passados não desaparecem, se incorporam, ou, antes, o indivíduo novo incorpora os superados como se os devorasse, e uns vão ficando dentro dos outros, tal com as bonecas russas do começo da história.

E assim, dentro de cada um de nós, a gente procurando sempre encontra os perfis superpostos encartados um por dentro do outro, sem se misturarem. É
só saber como esgaravatar e você descobrirá  fácil no sentencioso senhor de cinquenta anos o inseguro pai de família principiante que ele foi aos trinta anos ou o belo atleta descuidado que foi aos dezoito. Ali está cada um, aparentemente esquecido mas incólume. E estanques todos. Porque um não penetra no outro e aparentemente um não tem o mínimo em comum com o outro; nem sequer um influi no outro - as mais das vezes são antípodas e adversários.
 

Faça uma experiência: pegue um livro, uma foto, reveja um filme, encontre alguém, qualquer desses serve, contanto se refira especificamente a determinado tempo de sua vida. E então magicamente se suscita aquele instante perdido do passado, com uma força de momento atual. Espantado, você se indaga: então esse fui eu? Que tem em comum com o você de hoje aquele estranho que subitamente acordou ao apelo do seu nome, debaixo da sua pele? Terá em comum só mesmo o nome e a pele, porque o resto, no corpo e na alma, tudo é outro, deformado ou gasto, mas sempre diferente. Você é outro, outro. E quase não acredita ter sido você também aquele rapaz desvairado, ou sonso, ou bobo e terrivelmente inexperiente que de súbito emergiu de dentro dos seus ossos e das suas velhas lembranças.  
Em sua avó venerável você também pode descobrir a rapariga inconsequente que ela foi um dia, e no seu severo confessor de hoje o seminarista em crise religiosa de trinta anos atrás. È só saber procurar. A gente diz isso "águas passadas". Mas talvez seja melhor dizer águas represadas, águas recalcadas. Porque basta bater na pedra, a fonte emerge, o que não aconteceria se as águas fossem passadas realmente.

* Raquel de Queiroz nasceu em Fortaleza(CE) em 1910 e faleceu em 2003 no Rio de Janeiro.
Era jornalista, cronista, romancista e dramaturga. Foi a primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras. É autora de vários romances, entre os quais estão O Quinze, Memorial de Maria Moura, Dora Doralina.


Publicado em: 23/09/2000, Correio Braziliense – Brasília – DF


02/06/2016

Das singularidades do Não



 
 
É maravilhoso o não porque é um centro vazio, mas sempre frutífero. Para um espírito que diz não com trovões e relâmpagos, o próprio diabo não pode força-lo a dizer sim. Porque todos os homens que dizem sim  mentem; quanto aos homens que dizem não, bem, encontram-se na feliz condição de ajuizados viajantes pela Europa. Cruzam as fronteiras da eternidade sem nada além de uma mala, isto é, o Ego. Enquanto, em compensação, toda essa gentalha que diz sim viaja com pilhas de bagagem e, malditos sejam, nunca passarão pelas portas da alfândega.
 
 
Trecho de uma carta de Herman Melville (N.Y., 1819-1891) para o escritor Nathaniel Hartworne (1804-1864), de quem era amigo.