DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

30/12/2021

O fluxo do tempo



[rico não é o homem que coleciona e se pesa no amontoado de moedas, e nem aquele, devasso, que se estende, mãos e braços, em terras largas; rico só é o homem que aprendeu, piedosamente e humilde, a conviver com o tempo, aproximando-se dele com ternura, não contrariando suas disposições, não se rebelando contra o seu curso, não irritando sua corrente, estando atento para o seu fluxo, brindando-o antes com sabedoria para receber dele os favores e não a sua ira; o equilíbrio da vida depende essencialmente deste bem supremo, e quem souber com acerto a quantidade de vagar, ou a de espera que se deve pôr nas coisas, não corre nunca o risco, ao buscar por elas, de defrontar-se com o que não é].


Raduan Nassar, em Lavoura Arcaica

25/12/2021

(Re)Nascimento





O saco do velho está cheio de privilégios. Já passou a hora de abri-lo e distribuir essa acumulação para os que não têm nada. É imprescindível dar lugar para o que é novo, para a mudança. O saco dos necessitados está vazio, cheio de fome e de miséria. Cansados e extenuados os que têm fome já não aceitam as cascas de bananas que lhes são oferecidas. Cada macaco no seu galho, mas existem macacos que pulam de galho em galho para jogar suas cascas nos que estão embaixo. Chega de escorregões e falsas promessas. Que sejam rasgados todo os sacos do egoísmo, da ganância e da intolerância. Chegou a hora de RENASCER!

16/12/2021

Das pedras

 



Envolvi-me com pedras; sentei, deitei e rolei com elas. Apalpei-as, senti o seu cheiro, sua transpiração, e sua indiferença à minha presença. Ouvi o ruído do vento, seu farfalhar sobre as folhas, sobre os telhados. O vendaval, feito um torpedo, não se deteve diante dos destroços por ele provocados. Brinquei com pedras, joguei-as para cima e para baixo. De tanto misturar-me transformei-me numa delas. Hoje sou manipulada: jogam-me contra os pássaros, contra os animais, contras as pessoas. Sou pedra fria feita da poeira acumulada através dos tempos. Entretanto, posso tornar-me um rochedo, que enfrenta a brutalidade e a insensatez das marés humanas.

10/12/2021

Quando

 


Quando o poder que emana do povo deixa de ser exercido, ou contra o povo se exerce, alegando servi-lo; quando a autoridade carece de autoridade, e o legítimo se declara ilegítimo; quando a lei é uma palavra batida e pisada, que se refugia nas catacumbas do direito; quando os ferros da paz se convertem em ferros de insegurança; quando a intimidação faz ouvir suas árias enervantes, e até o silêncio palpita de ameaças; quando faltam a confiança e o arroz, a prudência e o feijão, o leite e a tranquilidade das vacas; quando a fome é industrializada em slogans e mais fome se acumula quanto mais se promete ou se finge combater a fome; quando o cruzeiro desaparece no sonho de uma noite de papel, por trás de um cortejo de alegrias especuladoras e de lágrimas assalariadas; quando o mar de pronunciamentos frenéticos não deixa fluir uma gota sequer de verdade; quando a gorda impostura das terras dadas enche a boca dos terratenentes; quando a altos brados se exigem reformas, para evitar que elas se implantem, e assim continuem a ser reclamadas como dividendos políticos; quando os reformadores devem ser reformados; quando a incompetência acusa o espelho que a revela dizendo que a culpa é do espelho; quando o direito constitucional é uma subdisciplina militar e substitui a disciplina pura e simples; quando o plebiscito é palavra mágica para resolver aquilo que a imaginação e a vontade dos que a pronunciam não souberam resolver até hoje; quando se dá ao proletariado a ilusão de decidir o que já foi decidido à sua revelia, e a ilusão maior de que é um benefício; quando os piores homens reservam para si o pregão das melhores ideias, falsificando-as; quando é preciso ter mais medo do governo do que os males que ao governo compete conjurar; quando o homem sem culpa, à hora de dormir, indaga a si mesmo se amanhã acordará de sentinela à porta; quando os generais falam grosso em nome de seus exércitos, que não podem falar para desmenti-los; quando tudo anda ruim e a candeia da esperança se apaga e o If* de Kipling na parede não resolve; então é hora de recomeçar tudo outra vez, sem ilusão, e sem pressa, mas com a teimosia do inseto que busca um caminho no terremoto.


Crônica de Carlos Drummond de Andrade publicada no Correio da Manhã, em 14.09.1962.

* If, que em português significa Se, é um poema de Rudyard Kipling, escrito em 1895 e publicado pela primeira vez em 1910.

03/12/2021

Coceira de ouvido

 


No começo era apenas um leve zumbido, como se fosse um enxame de abelhas se dispersando da colmeia; não dava para saber de onde vinha. Era um atordoamento seguido de desequilíbrio espacial. As estrelas surgiam à noite, mas o sol, que também é uma estrela, só aparecia durante o dia. As abelhas estão desaparecendo, e as pessoas estão cada dia mais amargas; as algas parasitárias têm se reproduzido exponencialmente, competindo com os plásticos e isopores nos rios e mares. O planeta Terra está se tornando um grande pântano. Estaremos nós nos transformando em caranguejos, querendo voltar às cavernas? Seremos pedras ou estátuas? Estas, vieram daquelas que hoje são lançadas contra certos vultos que nada representam os seres humanos. Muitos ouvidos dispõem apenas de orelhas, que servem somente para dar ressonância a boatos trazidos pelo vento, para desequilibrar os pensamentos.