DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

30/04/2018

Preciosidades do Iluminismo *




"Nada é mais útil aos povos do que a mentira, que nada lhes é mais nocivo do que a verdade". 
"Ainda que a mentira possa ser útil por um momento, ela é necessariamente prejudicial a longo prazo; e que, ao contrário, a verdade é necessariamente útil a longo prazo, ainda que possa ser prejudicial por um momento."

"...há dois tipos de leis: aquelas para as quais a equidade e a generalidade são absolutas, e outras estranhas, cujas sanções se devem apenas à falta de discernimento e à necessidade das circunstâncias. As últimas fazem recair sobre o culpado que as infringe
apenas uma ignomínia passageira, que o tempo faz
com que se volte contra os juízes e as nações para
sempre. Entre Sócrates e o magistrado que o fez beber a cicuta, qual deles é hoje o desonrado?"

Denis Diderot (França, 1713-1784) em O sobrinho de Rameau.

* O Iluminismo foi um movimento intelectual e filosófico que ocorreu na Europa, entre 1752-1789, dando início a Revolução Francesa; as ideias do Iluminismo contribuíram para a queda da monarquia e para a perda de autoridade da Igreja Católica, abrindo o caminho para as revoluções dos séculos XVIII e XIX.


24/04/2018

ELUCUBRAÇÕES




Como se de papel fosse a pele
o vento a levaria para um livro.
Como se de pano fosse o corpo
a chuva o encharcaria, no solo
brotariam ideias, sementes.

Chover no molhado: redundâncias
elucubrações inquietações dúvidas.

O ser inteiro - um quarto escuro
com janelas e portas
abertas, ou não.
Um labirinto imprevisível
impenetrável.

Como o quarto o corpo a mente:
trancado=embrutecido
aberta=transformação.

Por que não brilham mais
as estrelas?
Estariam a espiar-nos?

Soltar a imaginação é como tentar abrir a porteira
de uma jaula cheia de feras, umas mansas, outras
enraivecidas por estarem presas. Para abrí-la é
necessário coragem, correr riscos. Há o medo, mas
há também o desejo de ver o que aconteceria!
As feras existem independente da jaula; se estão
livres no campo, no pasto, não estouram, não atacam; se presas, quem abri-la poderá ser esmagado. 
Quanto mais tempo mantidas na jaula, maior será a
possibilidade de irromperem abruptamente.
Como as feras, a imaginação existe para ser livre!
 

22/04/2018

Saudades de HILDA HILST !!!





A vida é crua.
Faminta como
o bico dos corvos.
E pode ser tão
generosa e mítica:
arroio, lágrima.
Olho d'água,
bebida: A vida
é líquida.

*****

Tempo não é, senhora, de inocências
Nem de ternuras vãs, nem de cantigas.
Antes de desamor, de impermanência.

Tempo não é, senhora, de alvoradas.
Nem de coisas afins, toques, clarins.
Antes, da baioneta nas muradas.

Tempo não é, senhora, de pastores.
Nem de roseiras, madrigais, violas.
Nem é tempo, vos digo, de ter pássaros
Azuis em vossas douradas gaiolas.

*****
Sendo quem sou, em nada me pareço.
Desloco-me no mundo, ando a passos
E tenho gestos e olhos convenientes.
Sendo quem sou
Não seria melhor ser diferente
E ter olhos a mais, visíveis, úmidos
Ser um pouco de anjo e de duende?
Cansam-me essas coisas que vos digo.
As paisagens em ti se multiplicam
E o sonho nasce e tece ardis tamanhos.
Cansam-me as esperanças renovadas.
E o verso no meu peito repetido.
Cansa-me ser assim quem sou agora:
Planície, monte, treva, transparência.
Cansa-me o amor porque é centelha
E exige posse e pranto, sal e adeus.

Queres o verso ainda? Assim seja.
Mas viverás tua vida nesses breus.

Hilda Hilst nasceu em Jaú(SP)no dia 21 de abril
de 1930 e faleceu no dia o4 de fevereiro de 2004.

20/04/2018

Os imbecis e a imprensa responsável



Diverti-me intensamente com a história dos imbecis da web.
Para quem não acompanhou foi publicado em alguns jornais
e também on-line que no curso de uma lectio magistralis em Turim, eu teria dito que a web está cheia de imbecis. É falso. A lectio era sobre um tema completamente diferente, mas isso mostra como as notícias circulam e se deformam entre os jornais e a web.
A história dos imbecis surgiu numa conferência de imprensa durante a qual, respondendo a uma pergunta que não lembro mais, fiz uma observação de puro bom senso. Admitindo que em 7 bilhões de habitantes exista uma taxa inevitável de imbecis, muitíssimos deles costumavam comunicar seus delírios aos íntimos ou aos amigos de bar - e assim suas opiniões permaneciam limitadas a um círculo restrito. Hoje, uma parte consistente destas pessoas tem a possibilidade de expressar as próprias opiniões nas redes sociais e portanto, tais opiniões alcançam audiências altíssimas e se misturam com tantas outras ideias expressas por pessoas razoáveis.
É importante observar que na minha noção de imbecil não havia nenhuma conotação racista. Ninguém é imbecil por profissão (salvo exceções), mas alguém que é um ótimo farmacêutico, um ótimo cirurgião, um ótimo bancário pode dizer, sobre assuntos que não são de sua competência ou sobre os quais não refletiu o suficiente, enormes besteiras. Mesmo porque as reações na web ocorrem no calor dos fatos, sem que se tenha tempo para refletir.
É justo que a rede permita que mesmo quem não diz coisas sensatas se expresse, mas o excesso de besteira congestiona as linhas. E algumas reações descompensadas que vi na internet confirmam minha razoabilíssima tese. Alguém chegou a dizer que, para mim as opiniões de um tolo e aquelas de um ganhador do prêmio Nobel têm na rede a mesma evidência e não demorou para que se difundisse viralmente uma inútil discussão sobre o fato de eu ter ou não recebido um prêmio Nobel - sem que ninguém consultasse sequer a Wikipédia. Digo isso para mostrar a tendência evidente para falar a esmo. Em todo caso, já podemos quantificar o número dos imbecis: são 300 milhões, no mínimo!

Umberto Eco, em Pape Satan Aleppe, Crônicas de uma sociedade líquida


16/04/2018

Quando tudo é pequeno



Quando tudo é pequeno o que pensamos ver é superdimensionado. Quando criança pensamos que não chegaremos a ser adultos; quando estamos no alto vemos os que estão lá embaixo em tamanho reduzido. Na realidade, tudo se torna uma questão de localização, de ponto de vista, do momento em que estamos vivendo, e por aí vai.
Quando nosso mundo é pequeno, isto é, quando não
temos experiência de vida, quando temos pouco conhecimento da História através dos tempos, corremos o risco de emitirmos opiniões equivocadas ou até distorcidas, principalmente nos dias de hoje, quando existe um grande avanço da tecnologia. Há um enorme descompasso entre esta e a ignorância das pessoas, de um modo geral. E se formos comparar quem são os donos dessa parafernália tecnológica e os que pensam que a utilizam em seu benefício, o abismo é quase intransponível!
Vivemos uma época de subutilização de nossa capacidade para raciocinar, para criar e, principalmente, para desenvolver nosso espírito crítico sobre o que nos rodeia

08/04/2018

"Avançam contra nós os estandartes do rei do inferno

Gustave Doré, O Inferno

 
1. "Vexilla regis prodeunt inferni em nossa direção, à frente, poderás ver por fim, se o teu olhar o puder discernir" - disse-me o Guia. E assim como desce a neblina mais espessa, ou como quando, lá em nosso hemisfério, a noite fecha e um moinho, tendo as pás agitadas pelo vento, chama a nossa atenção - ali e então pareceu-me divisar vulto igual.
 
8. O vento que soprava amparo me fez buscar junto do Mestre, que outro abrigo por ali não existia. Havíamos por fim chegado - tremo ao descrevê-lo em versos - àquele ponto onde os condenados, pelo gelo cobertos, nele transpareciam como trincas no bom vidro. Alguns vi deitados; outros eretos; grande número, com pernas para o
alto, vários deles, vergados a ponto de com os pés e as faces fazerem arco.
 
16. Quando, no entender do Mestre avançáramos o bastante, decidiu-se a indicar-me a criatura que outrora exibira formoso semblante. Tocou-me e me deteve, dizendo: "Eis aí Lúcifer! Este é o local onde de extrema fortaleza convém que armes o espírito". O quanto, então, eu me senti gelado e oco, não me perguntes, leitor, que não
o saberia dizer. Afirmo sim, que todas as palavras para descrevê-lo são poucas. Digo apenas que não morri e não segui avante; se acaso és dotado do suficiente engenho, imagina o quanto estive privado, tanto da vida quanto da
morte.
 
61. Indicou-me o Mestre: "Aquela alma que sofre maior padecimento é Judas Iscariotes. Dentro da bocarra infernal, tem a cabeça, enquanto cá fora as pernas, em desespero, não cessa de agitar. Os dois outros que vês das demais bocas pendentes são Bruto, preso à boca de cor mais negra
(repara como se contorce e silencioso se mantém), e Cássio
o de membros especialmente robustos. Porém, eis que a noite se anuncia. É tempo de partirmos. Tudo já vimos do que devia ser visto.
 
88. Ergui o olhar, acreditando ver Lúcifer tal como atrás o
havia deixado e eis que o vejo de pernas para cima. O quanto me senti embaraçado nesse instante, pense-o a  gente sem instrução e todos quantos ignoram qual era o fulcro pelo qual eu havia passado.
 
127. Lá naquelas fundas paragens há um ponto que dista tanto de Belzebu quão largo é deste o sepulcro, o qual ponto não há de ser abrangido pela vista, mas pelos ouvidos. Anuncia-o o murmúrio de um arroio que o seu curso escavou na rocha, serpenteante, e que pouco pende. Ao longo de seu manso curso, pelos ouvidos seguindo ínvio trilho, meu Guia e eu buscamos regressar ao claro mundo superior. Sem jamais considerar, nem ele nem eu pelo caminho tomar descanso, fomos subindo, o Mestre à frente e eu em segundo, até que por abertura circular pude enfim
perceber, do escuro céu as grandes maravilhas. E saindo, tornamos a ver as estrelas.
 
Trechos de A divina Comédia, de Dante Alighieri (1265-1321) - O inferno, Canto XXXIV