DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

31/10/2017

Para não esquecer Drummond



 
Mãos dadas
 
 Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
 
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por
 serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os
homens presentes, a vida presente.
 
 
Os ombros suportam o mundo
 
Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.
 
Em vão as mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.
 
Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.
 
Os mortos de sobrecasaca
 
Havia a um canto da sala um álbum de fotografias intoleráveis,
alto de muitos metros e velho de infinitos minutos,
em que todos se debruçavam
na alegria de zombar dos mortos de sobrecasaca.
 
Um verme principiou a roer as sobrecasacas indiferentes
e roeu as páginas, as dedicatórias e mesmo a poeira dos retratos.
Só não roeu o imortal soluço de vida que rebentava
daquelas páginas.
 
Carlos Drummond de Andrade nasceu em Itabira(MG),
no dia 31.10.1902, e faleceu no Rio de Janeiro no dia 17 de agosto de 1987
 


25/10/2017

PARA DES-MORALIZAR

Sabemos que arte não é verdade.
A arte é uma mentira que nos faz descobrir
a verdade.  Pablo Picasso
 
 

Pablo Picasso (1881-1973)
 
 
A moral dos políticos é como elevador: sobe e desce. Mas em geral enguiça por falta de energia, ou então não funciona definitivamente, deixando desesperados os infelizes que confiam nele. Barão de Itararé
 
Jacques-Louis David (1748-1825)
 
 É preciso ser-se imoral para por a moral em ação. Os meios dos moralistas são os mais asquerosos que já foram usados. Quem não tiver coragem de ser imoral, pode servir para tudo, exceto para ser moralista. Nietzche

Cornelis van Haarlem (1562-1638)
 
 
Carlo Saraceni (1579-1620)
 

 
Há moralistas imoralíssimos! Guerra Junqueiro
 
 
William Blake (1757-1824)
 


Moralistas são pessoas que renunciam às alegrias corriqueiras para poder, sem culpa e recriminação, estragar a alegria dos outros. Bertrand Russell
 
Arthemisia Gentileschi (1593-1654)

 
 
Ah, esses moralistas...não há nada que empeste mais do que um desinfetante. Mário Quintana
 

Aníbal Carracci (1560-1609)



23/10/2017

Ausência

Por muito tempo achei
que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante,
a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
Ausência é um estar em mim.
E sinto-a tão pegada,
aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento
exclamações alegres.
Porque a ausência, esta ausência
assimilada, ninguém a rouba mais
de mim.
 
 
Carlos Drummond de Andrade

15/10/2017

Sob as asas do tempo



 
Um pardal atravessou o raio de sol numa linha enviesada, pousou no parapeito da janela e inclinou a cabeça para mim. O olho era redondo e reluzente. Primeiro ele me olhava com um olho, e zás! virava o outro, a garganta latejando
mais rápido que qualquer pulso. Começou a dar a hora cheia. O pardal parou de
trocar de olhos e ficou me observando fixamente com um olho só, até que o
carrilhão parou de bater, como se também estivesse prestando atenção  nas
batidas. Então bateu asas e desapareceu.
Demorou algum tempo até a última batida parar de vibrar. Ela permaneceu no
ar, mais sentida que ouvida, por um bom tempo.
 
 
William Faulkner (Mississipi(EUA)1897-1962) em O som e a fúria

12/10/2017

Sem título

 
 É melhor se laico do que comportar-se mal
dentro da ordem.
 
Sebastian Brant Alsácia, 1457-1521
 
 

Michelangelo Buonarroti, A criação de Adão

 


 
Michelangelo Buonarroti - Capela Sisitina(detalhe)


 


 
Michelangelo Buonarroti (1475-1564) Leda e o cisne

 

 
Hyeronimus Bosch (1450-1516) O jardim das delícias(detalhe)

 
 
Cornelis Bos (1508-1555)
 

 
Carlo Saraceni (1579-1620)
 
 
Nicolas Poussin  (1594-1665)

 
 

Lucas Cranach (1472-1553), A fonte da juventude
 
 
A fonte da juventude(detalhe), de Lucas Cranach
 



Hyeronimus Bosch (1450-1516)


08/10/2017

A carta do capiroto - Gustavo Gollo*



Não sei dizer que tipo de coisa é essa, tão estranha para mim quanto para o leitor. Tendo, no entanto, e sem saber como, me caído nas mãos essa carta do Capiroto, vejo-me na incumbência de repassá-la imediatamente, livrando-me assim de enorme peso.



Sr Presidente,
Como certamente já percebeu, tendo barganhado quase todo o patrimônio do estado, as poucas artimanhas do gênero que ainda lhe restam serão insuficientes para continuar financiando a compra daqueles que o mantêm no poder, situação embaraçosa que logo o deixará sem apoio para continuar a governar. 
Tendo em vista tal constrangimento, e a situação do país, é com satisfação que envio sugestão que lhe terá enorme valia, propiciando a continuidade do financiamento que o tem mantido no poder.
A proposta consiste em executar literalmente aquilo que já vem sendo feito de maneira simbólica: arrancar o couro do brasileiro. Trata-se de um último capital a ser espremido de tal criatura.
Suas sábias medidas econômicas têm garantido presídios abarrotados, e ruas cada vez mais infestadas de mendigos, celeiros inexauríveis desse imenso capital: o couro humano, verdadeiro tesouro.
Modelado sob medida, bastará retirar o couro dos brasileiros, obtendo-se assim vestimentas impecáveis, justas, precisas, e sem nenhuma costura! Que calçados maravilhosos serão obtidos com o couro dos pés, justos em cada detalhe, perfeitos, e que maciez! A perfeição de blusas, calças e luvas de couro humano, além dos calçados, e até tocas ninja confeccionadas sem nenhuma costura, será atrativo irresistível aos ávidos consumidores. A perfeição do caimento de peças tão magníficas advirá naturalmente, sem a necessidade de habilidades especiais dos artesãos que as confeccionarem, já tendo sido produzidas originalmente, sob medida.
A renda obtida com os lucros da venda desse último capital nacional disponível propiciará a compra dos parlamentares que garantirão o cumprimento de seu mandato até o fim.

 Calorosamente,


Capiroto

Extraído de  jornalggn.com.br

04/10/2017

Lima Barreto




Se me fosse dado ter o dom completo de escritor,
eu havia de ser assim um Rousseau, ao meu jeito,
pregando à massa um ideal de vigor, de violência,
de força, de coragem calculada, que lhes corrigisse
a bondade e a doçura deprimente. Havia de saturá-las
de um individualismo feroz, de um ideal de ser como aquelas
trepadeiras de Java, amorosas de sol, que coleiam
pelas grossas árvores da floresta e vão por ela acima
mais alto que os mais altos ramos para dar afinal
a sua glória em espetáculo.
Lima Barreto
 
 
Foi me dado querer ser escritor
E eu só quero ser assim um Lima Barreto
Ao seu jeito ao meu tempo
Despejando meus sentimentos íntimos
Pregando diretamente o cotidiano suburbano
O vigor a violência a força a coragem calculada
Que agride a bondade inócua
Que extirpa a doçura deprimente
Que extermina a cordialidade bestial
Foi e dado querer ter o vigor de Lima Barreto
Meu texto quer mesmo ser o fardamento de meu eito
A gramática de minha Ira
A poética da cor e do afastamento
 
Estaca afiada fincada no peito fidalgo do mal
Mancha de piche no assoalho do mármore de carrara infernal
Madeira enegrecida do ébano nos jardins das rosas funestas
Foi me dado querer inspirar-me só no vigor de Lima Barreto
 
Grafar o calor do sol de séculos de transplantes e desenraizamentos
 
Ele, mais alto a cada dia
Ele, superando as raízes podres desta selva vadia
Ele, acima dos ramos rasteiros
Ele, o galho mais frondoso
O tronco mais robusto
Dando afinal a sua glória em espetáculo
 
Nelson Maca (Telêmaco Borba(PR), 1965), em Gramática da Ira - Blackitude, 2015.