DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

28/12/2020

O nome dela

 



Ela chega de cara luminosa às seis horas e o seu nome é Manhã. Quando chove sacode os cabelos, retira a poeira das noites perambuladas e mal dormidas. Um mar vaza dos olhos, cai no solo formando ilhas sobre o rosto, e, nessa travessia é prazeroso ouvir seus esgares, a natureza em convulsão; os movimentos ondulares do coração separam as grandes marés que se alternam entre a noite e o dia.


***


Como se o teto fosse no chão

as estrelas se apagassem no firmamento

o coração galopasse pelas pradarias do corpo

em chamas

e tudo fosse silêncio

num alvoroço de línguas estranhas

e universais


Uma densa nuvem precipitou-se

levando consigo os andaimes de

uma catedral de papel

cujos sinos dobram-se em origamis

sob um céu que

não é azul.

24/12/2020

Canto Final ou Agonia de uma Noite Infecunda

 Como a flor cortada rente e desfolhada

ou os olhos vazados da criança

e o seu fio de pranto tênue e impotente

assim a noite caminha com os astros todos em vertigem

até que se atinge o ponto da mudez

a pesada mó triturando a sílaba

a garganta com as cordas dilaceradas

e uma lâmina ácida e pontiaguda enterrada ao nível da carótida


Entenda-se isto como noite e o seu transe derradeiro

tanto assim que a flor desfeita

não embala o coração do poeta

oh não

porque a flor defunta

se voa

não sobe nunca

e só dura

o espaço breve duma nota


Assim o canto se detém imóvel como se a flauta

falhando súbito

na boca do poeta

ficasse o hiato

ou a saliva

de um tempo devassado por insectos cor de cinza


A voz suspensa e negada

cede a vez à letra amorfa

inscrita no silêncio

com seu peso

de chumbo e olvido acaba o poema

e um ponto final selando tudo.


Armênio Vieira, jornalista, e poeta ganhador do Prêmio Camões, nasceu em Cabo Verde, em 1941.

14/12/2020

Aos que não (re)nascem



[...E foi então que, um dia, inopinadamente, sem razão nem porquê(?), esqueceu tudo, perdeu a memória. Teve que começar do zero uma outra vida. Chorou a cântaros! Sentiu uma dor profunda. A fonte havia secado. E a dor teve que buscar outro recurso para sobreviver, porque não há lágrima que lave uma dor, esse instrumento involuntário usado como defesa em situações aflitivas. Teve uma vertigem, tudo girava ao redor - ou seria uma miragem, um delírio? Uma alucinação, quem sabe? Adjetivos e substantivos se alternavam: e se fosse uma inundação, um maremoto? Talvez fosse um terremoto, porque tudo desmoronava; em questão de segundos todas essas imagens passaram por sua cabeça: civilizações inteiras submergidas pelas águas, pelas cinzas de vulcões... Atlântida, Pompeia, e tantas outras muito mais antigas...? Foram destruídas pela força da Natureza. Mas, e Hiroshima e Nagasaki, que foram destruídas deliberadamente por conflitos beligerantes humanos? Como conseguiram reconstruir-se? A Natureza tem suas próprias leis, que a natureza dos homens tenta passar por cima delas numa luta incessante de superação. E la nave va...] 

05/12/2020

Repeticão

 Vladimir Kush



O olho cai e

da janela a morte espreita:

o passado se repete

sob dores e sombras


Tempos difíceis

de sorumbática tecnologia

que amealha cabeças

ameaça vidas

guilhotina ideias multiplicando

a solidão


Cada era tem o seu pensar

todo passado é uma semeadura

que floresce na estreita faixa

da escrita como franjas

de palavras que navegam

através da História