DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

27/04/2020

A mesma praça




A praça está vazia de pessoas. Debaixo dos bancos há ninhos de pombos misturados com carcaças de ratos e de pardais. O coreto, que outrora era usado para apresentações de uma banda que ali tocava em dias de festas, hoje está ocupado por uma matilha de cães que brigam entre si pelo o que resta dos ossos do poder. A maior parte da população da cidade assiste assustada, pelas frestas de suas janelas, a esse grotesco espetáculo. Uma pandemia de vírus se abateu sobre o lugar. Não se sabe qual deles é o mais devastador: um deles é invisível, é letal, mas se observadas, rigorosamente, medidas preventivas, muitas mortes poderão ser evitadas. Houve uma aparente mudança no comportamento das pessoas: aquelas que hoje ocupam o coreto, usavam máscaras  antes da pandemia, enquanto a população expunha sua cara de desvalida, de abandonada. As máscaras dos cachorros foram ao chão. Hoje a população recorre ao uso de máscaras para proteger-se de tantos vírus! E os ossos, ah!, os ossos? Quem é que sabe o que poderá acontecer após essa cachorrada?

24/04/2020

De Antonio Cândido *




"Todos sabemos que a nossa época é profundamente bárbara, embora se trate de uma barbárie ligada ao máximo de civilização." - O direito à Literatura

*Antonio Cândido, sociólogo, crítico literário, escritor, nasceu no Rio de Janeiro em 1918 e faleceu
em São Paulo em 2017. 

17/04/2020

Diário de bordo III





O mar continua revolto, muitas turbulências;tubarões de presas afiadíssimas e famintos de ganância e poder, são cada dia mais numerosos. Estou cansada de remar, de cantar, de dançar no vaivém dessas ondas...Até quando persistirá essa tempestade?

O barco!
Meu coração não aguenta
tanta tormenta, alegria
Meu coração não contenta
O dia, o marco, meu coração
O porto, não...!

Navegar é preciso
Viver não é preciso

O Barco!
Noite no teu tão bonito
sorriso solto perdido
Horizonte, madrugada
O riso, o arco da madrugada
O porto, nada...!

O Barco!
O automóvel brilhante
O trilho solto, o barulho
do meu dente em tua veia
O sangue, o charco, barulho lento
O porto, silêncio...!

Navegar é preciso
Viver não é preciso

"Os argonautas", de Chico Buarque de Holanda

06/04/2020

Diário de bordo - II




Meu barco é de papel, tão frágil quanto o momento que atravessamos; tão frágil quanto somos todos, sem exceção. Muitos naufragam antes de concluir a travessia que lhes cabe, outros tentam remar contra
a maré, ignorando sua pequenez, estrebuchando para todos os lados. Em vão.
Vou tentando atravessar essa tormenta que se abateu sobre a humanidade. Dias melhores advirão, quem sabe? Enquanto isso, recorro a música, a poesia, a arte, recorro a ferramentas que podem me  tornar uma pessoa melhor enquanto estou por aqui.

O acorde inicial

Que a palavra se perca num rumor de queda
por indistintos círculo quebrados
e com o ser se dilate no silêncio e no olvido.
Que os instrumentos se apaguem e rasguem as imagens entre a adolescência do mundo e o perfume
do abismo.
Que a cor e a música recrudesçam e se extingam
como se um pincel pulverizado e um violino em cinzas, produzissem o acorde inicial e a junção com
o invisível.
Abandonando o teclado das certezas,
que a palavra roce as espécies desaparecidas
encontrando as fugitivas simetrias
e os frescos tornozelos da nascente.
Que não seja mais que o brilho de uma chave perdida, uma escada de traços que nunca hão de chegar.
Que respirem os elos, que os detritos falem
ao conjunto que se forma nos flancos do vazio.
Que sejam um sopro cego, um oblíquo trajeto na
distância, reunindo o inaceitável e a conivência inaugural, sem que nada perdure, sem que nada pereça, no alvéolo onde repousa a substância salva

Antônio Ramos Rosa, Faro(Portugal)
1924-2013

01/04/2020

Diário de bordo



A chuva cai lenta e suave sobre as ruas da cidade deserta e silenciosa; todos estão isolados em suas ilhas domésticas.
Continuo trabalhando na construção do meu barco de papel, e me perguntando para onde foram os que moravam nas ruas, ao relento; como estarão os que vivem amontoados em cubículos, em barracos, em favelas, sem ter o que comer? Sem ter como proteger-se desse coronavírus?
O choque entre as nuvens anuncia que vem barulho por aí; temporariamente não poderemos consumir; a montanha de consumos supérfluos que inventamos está desabando, o dinheiro acumulado não tem sido suficiente para comprar a vida. Vale a pena tanto desperdício? Somente o medo da morte é capaz de deter essa corrida desenfreada para o "progresso".
Silenciosa, sutil e imprevisível, "a indesejada" está sempre ao nosso lado, desde o dia em que nascemos. Mas a ignoramos, por medo. E quando o medo nos domina somos capazes de tudo, até de nos autodestruir, de agredir os que nos cercam, de destruir o meio ambiente, pensando que agindo desta maneira seremos poderosos, invencíveis. E no entanto, um minúsculo e invisível vírus pode nos destruir a todos em pouquíssimo tempo...