DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

28/08/2021

Desunindo ideias

 




Nós não dominamos o nosso inconsciente
Sigmund Freud


 
Mudez há em demasia. Quantas línguas em tantas bocas desdentadas, estarão ou foram emudecidas? Estarão mudas as vossas, a minha língua? A babel expandiu-se. A diversidade também, e as desdentadas bocas, com suas línguas de fora, cada vez mais caladas. 
A noite bateu asas, atravessou as janelas do corpo e foi pras calendas gregas.
Todos pó. O vento sopra frio, anunciando "novas" palavras, soltas e desconectadas; sentimentos avulsos são postos à venda no mercado mundial.
O pensamento é mais veloz que a velocidade da luz, e Galileu (1564-1642) provou (a duras penas!), por a+b, que "não somos o centro do Universo". 
Glosa, glossário, verbete, palavrário, palavraria são denominações subjetivas. Transfugir, transfundir? Atresia  é a oclusão da voz, do verbo, da língua? O que existe por trás dos olhos, uma bola de fogo? O mar pode amarrar balsas em bancos de areia; o fogo inflama, clama, chama, reclama da brasa que se espalha sobre a cama dos que vivem deitados sobre a vida em plena luz do dia.

21/08/2021

Sonhando por um sonho

Existem ardis que de tão finos liquidam a si mesmos.

Franz Kafka




E quando a noite cai sobre a floresta do corpo que nos habita uma densa névoa nos envolve cerrando a cortina, nos imobilizando.                         A  imensidão do mar percorre paisagens, descortinando as janelas dos meus olhos para uma viagem sem volta; sonho o sonho daqueles que acordam nus para outros dias. Hoje ardem os pés; amanhã o corpo arderá em chamas, até transformar-se em pó e espalhar-se como poeira pelo Universo. Do outro lado do espelho, sangra a floresta, de dor; do lado transverso, chora uma rabeca evocando outros tempos; tempos de açaizeiros, buritizeiros, baobás, jacarandás e paus-brasis; de sabiás, uirapurus, tico-ticos, asas brancas. O canto da rabeca se desdobra, nos alertando que o espetáculo é finito. Cerraram-se as cortinas e já não há o que aplaudir quando o dia amanhece... Tudo flui e nada permanece, já dizia Heráclito.  

16/08/2021

Cidade prevista

 




Guardei-me para a epopeia

que jamais escreverei.

Poetas de Minas Gerais

e bardos do Alto Araguaia,

vagos cantores tupis,

recolhei meu pobre acervo,

alongai meu sentimento.

O que eu escrevi não conta.

O que desejei é tudo.

Retomai minhas palavras,

meus bens, minha inquietação,

fazei o canto ardoroso,

cheio de antigo mistério

mas límpido e resplendente.

Cantai esse verso puro,

que se ouvirá no Amazonas, 

na choça do sertanejo

e no subúrbio carioca,

no mato, na vila X,

no colégio, na oficina,

território de homens livres

que será nosso país

e será pátria de todos.

Irmãos, cantai esse mundo

que não verei, mas virá

um dia, dentro de mil anos,

talvez mais...não tenho pressa.

Um mundo enfim ordenado,

uma pátria sem fronteiras, 

sem leis e regulamento,

uma terra sem bandeiras, 

sem igrejas nem quartéis,

sem dor, sem febre, sem ouro,

um jeito só de viver,

mas nesse jeito a variedade, 

a multiplicidade toda

que há dentro de cada um.

Uma cidade sem portas,

de casas sem armadilha,

um país de riso e glória

como nunca houve nenhum.

Este país não é meu

nem vosso ainda, poetas.

Mas ele será um dia

o país de todo homem.


Carlos Drummond de Andrade , 31.10.1902 - 17.08.1987

09/08/2021

Entrevista com Machado de Assis







Entre as mais nobres presenças que já tivemos a honra de receber na redação deste nosso vibrante matutino, a de hoje foi ainda mais especial. Com efeito, foi com alegria e júbilo que recebemos nesta madrugada ninguém menos do que o imortal Machado de Assis.


Na entrevista exclusiva que nos concedeu, o Bruxo do Cosme Velho não se esquivou de temas polêmicos como atual política e as agressões do presidente da República. Com sua inerente ironia, respondeu as perguntas com seu estilo enigmático. 


Veja abaixo como foi nossa conversa. 


Migalhas - Escritor, obrigado por vir ao portentoso edifício sede deste nosso poderoso rotativo. Seja bem-vindo.


Machado de Assis - "A imprensa é uma grande invenção."


Migalhas - Você deve estar acompanhando esse imbróglio entre o presidente da República e o ministro Barroso. Que situação difícil, não acha?


Machado de Assis - "Quem pode impedir que o povo queira ser mal governado? É um direito anterior e superior a todas as leis."


Migalhas - Esse jeito do presidente, é muito estranho.


Machado de Assis - "Ninguém ignora que os doidos gesticulam muito."


Migalhas - Você está querendo dizer que ele...


Machado de Assis - "Não se explica o que é de sua natureza evidente."


Migalhas - Mas e a família participando desse jeito do governo?


Machado de Assis - "A loucura entra em todas as casas."


Migalhas - Como você acha que o Judiciário deve reagir?


Machado de Assis - "Ninguém discute com homem doido."


Migalhas - Quem diria, quando o povo via os olhos azuis dele não imaginava o que poderia vir.


Machado de Assis - "A cor dos olhos não vale nada, a questão é a expressão deles. Podem ser azuis como o céu e pérfidos como o mar."


Migalhas - De fato, é estranha a idolatria dele a torturadores. Isso era um sinal.


Machado de Assis - "Pode-se avaliar um homem pelas suas simpatias históricas; tu serás mais ou menos da família dos personagens que amares deveras."


Migalhas - Azar o nosso passarmos por uma pandemia com um governo desse jeito.


Machado de Assis - "Há dessas ironias do acaso, que dão vontade de destruir o universo."


Migalhas - Onde será que ele quer chegar com esse confronto entre os poderes?


Machado de Assis - "A causa secreta de um ato escapa muita vez a olhos agudos."


Migalhas - O que você acha de o presidente ficar citando provérbios bíblicos?


Machado de Assis - "Jesus Cristo não distribui os governos deste mundo. O povo é que os entrega a quem merece, por meio de cédulas fechadas, metidas dentro de uma urna de madeira, contadas, abertas, lidas, somadas e multiplicadas."


Migalhas - Opa! Então você é a favor do voto impresso? É contra as urnas eletrônicas?


Machado de Assis - "Negar o progresso, que heresia!"


Migalhas - Ah, que susto. E esse semipresidencialismo que voltou à pauta, e que seria uma espécie de parlamentarismo?


Machado de Assis - "Sistema parlamentar, composto às pressas, pode ficar um sistema para lamentar."


Migalhas - Você é contra?


Machado de Assis - "Há coisas que se não dizem."


Migalhas - Mas muita gente está pensando nisso.


Machado de Assis - "Um ódio comum é o que mais liga duas pessoas."


Migalhas - E o que você acha da política?


Machado de Assis - "Contados os males e os bens da política, os bens ainda são superiores."


Migalhas - Mas voltando às investidas presidenciais contra o TSE, o que devemos fazer?


Machado de Assis - "Nem todos os problemas valem cinco minutos de atenção."


Migalhas - Quem vai presidir as próximas eleições será o ministro Alexandre de Moraes. O que acha?


Machado de Assis - "Não se fazem Alexandres na conquista de praças desarmadas."


Migalhas - Não entendemos o exemplo.


Machado de Assis - "Os exemplos não se fizeram senão para ser citados."


Migalhas - Deixa ver se entendemos, você acha que pode haver algum confronto?


Machado de Assis - "Não é em terra que se fazem os marinheiros, mas no oceano, encarando a tempestade."


Migalhas - Mas o presidente ainda tem seguidores.


Machado de Assis - "Ninguém, por ato próprio, se amarra a um cadáver."


Migalhas - Você fala figurativamente, é claro. Mas quem sabe o presidente perceba que está caminhando para sua morte política e mude o rumo.


Machado de Assis - "É duro dizer a um homem que todas as suas esperanças são vãs."


Migalhas - E ainda temos a questão da covid-19, que assusta muito.


Machado de Assis - "Felizes os que podem respirar! bem-aventurados os que não tossem!"


Migalhas - Pois é. Pelo menos estes dias estamos nos divertindo com os jogos olímpicos.


Machado de Assis - "Os dias passam, e os meses, e os anos, e as situações políticas, e as gerações e os sentimentos, e as ideias. Cada olimpíada traz nas mãos uma nova andaina do tempo."


Migalhas - Vamos terminando, agradecidos pela presença. Por fim, qual é nosso futuro?


Machado de Assis - "Quando uma Constituição livre pôs nas mãos de um povo o seu destino, força é que este povo caminhe para o futuro com as bandeiras do progresso desfraldadas."


Migalhas - Uma palavra final aos migalheiros.


Machado de Assis - "Sempre há de triunfar a vida inteligente. Basta que se trabalhe sem trégua."


Obs. Todas as "respostas" machadianas acima são aforismos de autoria do próprio escritor, retirados de sua obra, ipsis litteris. Eles poderão ser encontrados, juntamente com outras duas milhares de frases do imortal, na nova versão (revista e atualizada) das Migalhas de Machado de Assis, agora em dois volumes, as quais serão em breve lançadas. 


Por: Redação do Migalhas

Extraído de: https://www.migalhas.com.br/quentes/349653/entrevista-exclusiva-machado-de-assis-fala-da-atual-situacao-do-pais


03/08/2021

Num piscar de olhos



Esfrego as mãos para com elas caminhar pelas paredes da imaginação; estava fora dos eixos, mas dava para ouvir os murmúrios que delas saíam. É um lugar cheio de ecos aprisionados sob pedras e tijolos, e querem falar. As ruas estão desertas de gente, só ouço o latir dos cães e o ranger do vento tiritando entre as portas da noite. Caminhando com as mãos, vou galgando, pouco a pouco, os degraus das palavras, antes que se tornem brasas e queimem minha língua, travem meus dentes, e mergulhe no silêncio. Abro e fecho meus olhos num movimento pendular entre o sonho e a realidade. Num piscar de olhos acordei!                      Dizem que a língua é como uma cobra d'água, ora mergulha nas águas profundas dos rios que vão desaguar no mar das palavras múltiplas e diversificadas, ora emergem para buscar oxigênio...