DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

30/05/2019

Face a face

Anita Malfatti





Olho para ela. Ela me olha. Olhamos uma para a outra sem nos vermos. Tento falar com ela, ela tenta falar comigo, e ficamos as duas durante anos nessas tentativas. - Quero falar de qualquer forma - converso horas contigo olhos nos olhos e imagino que estás me ouvindo. Tu me olhas me ouves, mas não vês a hora em que eu acabe de falar porque não escutas o que estou falando. E passamos anos a fio nesse diálogo de mão única, de rua sem saída, entrando em becos dobrando esquinas atravessando pontes entrando em túneis mal iluminados; entre nós há sempre um sinal fechado. Penso ter medo dela. Ela não, é autônoma, independe de mim; se eu não conseguir um acordo com ela não tem problema: milhares de outras mãos sabem muito bem como tratá-la, como dar-lhe uma expressão. Ela é fugidia, talvez escorregadia, sei lá. Chega de repente, e se vai da mesma forma, escapa-me. Talvez ela seja como os sonhos: parecem reais, mas quando acordamos já se foram, vestem-se diferente;
aliás, eles sempre se apresentam despidos, nós é que tentamos vesti-los, mas aí já é tarde, foram-se!
Enquanto fechamos os olhos tudo flui às  maravilhas, mas fugiu não está mais aqui - ela - ao abanar leque, num átimo de segundo mudou completamente. Eu nem tinha imaginado...

Dia claro noite escura; sol e chuva pedra e água. É areia e barro e pó!

20/05/2019

Sonambulismo III




quando me viste
eras como a lua
toda nua
noite escura brilhando
no espelho refletindo
o meu retrato

e eras sol
eras vida

extraíste soluços
da dor
neles me navegaste
hoje teu sonho é
quimera
simulacro da alegria...

12/05/2019

" Ensaio "

David Sale


Já não sabia se seu corpo fora uma casa ou um quarto de despejos. Saíra dali há tão pouco tempo. Tudo agora transformara-se em imagens encobertas por uma névoa, tudo desaparecendo para dar lugar a faces deformadas, sem vida. Tentou virar a página para ter uma ideia melhor  - tão bom se pudesse fazer o mesmo com a vida. Fez uma pausa. 
Todos os dias seus olhos choviam, não sabia o porquê; do movimento das nuvens sobre sua cabeça? Caminhava até à porta sem se decidir. Finalmente percebeu que não se vira uma página impunemente; cada uma delas está guardada no livro da memória, mesmo que não seja lida. Existirá algo ou alguém que possa lavar o horizonte?
de onde, quem sabe do movimento das nuvens sobre
nossas cabeças? Formavam pequenos lagos que se transformavam em arquipélagos, ilhas que evaporavam ao sabor dos ventos ou com o calor do sol. E então caminhava até o umbral da porta, oscilando entre avançar ou recuar.
- Vem! Acenavam alguns vultos; outros sugeriam que
permanecesse imóvel.
Finalmente percebeu que não se vira uma página impunemente. Cada uma delas está guardada no  livro da memória, mesmo que não seja lida.
Existirá algo ou alguém com o poder de lavar o horizonte?

08/05/2019

Dois poemas de Júlia Cortines *




Esfinge


Olha!
Levanta agora a pálpebra descida
E o segredo desvenda enfim do teu olhar!
Fala!
Descerra a boca há tanto tempo emudecida
Deixa o segredo enfim da palavra escapar!

***

Antes de mergulhar no silêncio da morte,
Ou da idade sentir a fraqueza e o torpor,
Eu quisera lançar, num supremo transporte,
Meu grito de horror.

Mas sei que por mais forte e por mais estridente
Que ela corra através do infinito, até vós,
Ó céus, que além brilhais numa paz, inclemente,
Nem qual brando rumor chegará minha voz!

Mas sei que não há dor que a natureza vença,
E que nunca a fará de leve estremecer,
Na sua eternidade e sua indiferença
O lamento que vem de um transitório ser.

Mas sei que sobre a face execrável da terra,
Onde cada alma sente, em torno a solidão,
Esse grito, que a dor de uma existência encerra,
Não irá ressoar em nenhum coração

Contudo, num clamor de suprema energia,
Eu quisera lançar minha voz! Mas a quem
Enviar esse brado imenso de agonia,
Se para o compreender não existe ninguém?
(Vibrações)

Júlia Cortines nasceu em Rio Bonito(RJ)em 1868 e faleceu em 1948. Publicado em Escritoras Brasileiras
do Século XIX - Vol. II - Organização de Zahidé Lupinacci Muzart - Ed. Mulheres


01/05/2019

A Mulher *




A mulher que toma a pena
Para em lira a transformar,
É, para os falsos sectários,
Um crime que os faz pasmar!
Transgride as leis da virtude;
A mulher deve ser rude,
Ignara por condição!
Não deve aspirar à glória!...
Nem um dia na história
Fulgurar com distinção!

Mas eu que sinto no peito,
Dilatar-me o coração,
Bebendo as auras da vida,
Na sublime inspiração:
Eu que tenho uma alma grande,
Uma alma audaz que s'expande
No espaço a voejar,
Não posso curvar a fronte,
Nesse estreito horizonte
E na inércia ficar!

Não posso! Gritem sofistas,
Digam tudo o que quiser!
Chamem tênue, duvidosa
A virtude da mulher
De fantasia arrojada;
Que minh'alma extasiada
Nas harmonias do Céu,
Ficará indiferente,
Ao que a malícia invente
P'ra manchar o brilho seu!

* Luísa Amélia de Queirós Nunes Brandão, considerada a primeira poetisa piauiense, nasceu em
Piracuruca em 26.11.1838 e faleceu em Parnaíba, cidade do mesmo estado, em 12.11.1898. Publicou vários poemas em jornais e revistas. Publicou dois livros em pleno século XIX - Flores incultas e Georgina ou os efeitos do amor - época em que a mulher era bastante cerceada, principalmente no interior do nordeste brasileiro. Luísa Amélia de Queiroz é patrona de uma das cadeiras da Academia Piauiense de Letras, da Academia Parnaibana de Letras e da Academia de Letras da Região de Sete Cidades.
Poema extraído do livro Escritoras brasileiras do século XIX - Vol.II - Coordenação Zahidé Lupinacci Muzzart - Editora Mulheres