DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

30/03/2024

Quando o escritor dá um "puxão de orelhas" no leitor *

 Ana Hatherly



Como a senhora pôde ser tão desatenta ao ler o último capítulo, madame? Nele eu já dissera que minha mãe não era papista - Papista! Perdoe-me, mas o senhor não afirmou nada disso. Madame, com sua licença, repito mais uma vez que o afirmei de modo claro, ao menos tão claro quanto as palavras, por inferência direta, são capazes de comunicar. - Senhor, neste caso devo haver pulado uma página. - Não, madame, a senhor não pulou sequer uma palavra. - Então eu cochilei, senhor. - Madame, meu orgulho não lhe faculta esse refúgio. - Pois bem, declaro, então, que nada sei a esse respeito. - Madame, eis a falta que lhe imputo; e, à guisa de castigo, insisto que a senhora volte imediatamente, ou melhor, assim que chegar ao próximo ponto final, releia todo o capítulo.

          Impus essa penitência à senhora não por capricho nem por crueldade, mas com a melhor das intenções; de modo que não pedirei desculpas quando ela retornar: - foi para censurar um hábito mui prejudicial que aflige milhares de outras pessoas - o de ler sempre em frente, mais em busca das aventuras do que da profunda erudição e conhecimento que um livro desta casta, se lido da forma adequada, haveria sem dúvida de propiciar.


*Laurence Sterne (Clonmem, Irlanda-  1713-1768) em A vida e as opiniões do cavaleiro Tritram Shandy

13/03/2024

Sobre o Tempo *

 



Soneto 123


De me fazer mudar, não te gabes, ó Tempo.

As pirâmides que de novo construíste

para mim nada têm de novo nem de estranho;

são elas do já visto a imagem disfarçada.

Os dias breves são: deixamo-nos arrebatar

por coisas bem senis, mas dadas como novas, [...]

Desafio a um tempo, a ti e a teus anais:

não me espanta ou me encanta o presente ou o passado;

falsa a tua lembrança e falso o que se vê,

que se aumenta ou reduz por tua presa incessante.

Faço este voto ao qual sempre me apegarei:

Fiel sempre, apesar de ti, de tua foice.


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Soneto 77


Ao espelho verás declinar-te a beleza

e a volúvel montra ir-se teu rico tempo;

[...]

As rugas que um sincero espelho mostrará

far-te-ão relembrar a tumba escancarada;

na montra, a hora que foge a ti ensinará

que para a eternidade o tempo a furto avança.


* William Shakespeare - 1564-1616

26/02/2024

Degraus em grãos






Tentar desatar os nós de todos nós; os dedos das mãos como crisálidas,

 movimentam-se em espirais, até se tornar circular, num movimento

 côncavo convexo. 

Na ponta dos dedos da noite, moldar a argila dos sonhos do dia. 

Somos como cascas de árvores que no outono submergem em seu pró-

pio suor para tornar-se o sumo de novas sementes.

18/02/2024

A Brevidade *

 




Por que és tão breve?

Não amas mais, como outrora, o canto?

Quando jovem, não chegavas, nos dias de esperança,

nunca ao fim, quando cantavas!


Tal qual minha sorte é meu canto -

Queres ao arrebol banhar-te alegremente?

Foi-se! E a terra está fria.

E o pássaro da noite esvoaça 

incomodamente aos olhos teus.


* Friedrich Hölderlin - Laufen (Alemanha) 1770-1843

Tradução: Antonio Cícero



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Vai-me apertando amargo, o coração, se penso em como tudo passa e 

passa, quase sem deixar rastro.


Giacomo Leopardi - Recanati(Itália) 1798-1837

11/01/2024

A Noite dissolve os homens *






Dias. Noites sem fim.

 Medo paralisante e uma coragem desenfreada mas esmorecida.

 Vida e morte bem juntinhas para não perder o costume...

Dias asfixiados e asfixiantes para noites escuras.

 Solidão branca, tão solar que cega o entorno; o óbvio beirando o banal, 

 lugar comum de dois, de milhares, de milhões de ilhas, de arquipélagos

 humanos... !


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A noite dissolve os homens


A noite desceu. Que noite!

Já não enxergo meus irmãos.

E nem tampouco os rumores

que outrora me perturbavam.

A noite desceu. Nas casas,

nas ruas onde se combate,

nos campos desfalecidos,

a noite espalhou o medo

e a total incompreensão.

A noite caiu. Tremenda,

sem esperança...Os suspiros

acusam a presença negra

que paralisa os guerreiros.

E o amor não abre caminho

na noite. A noite é mortal,

completa, sem reticências,

a noite dissolve os homens,

diz que é inútil sofrer,

a noite dissolve as pátrias,

apagou os almirantes

cintilantes! nas suas fardas.

A noite anoiteceu tudo...

O mundo não tem remédio...

Os suicidas tinham razão.


Aurora,

entretanto eu te diviso, ainda tímida,

inexperiente das luzes que vais acender

e dos bens que repartirás com todos os homens.

Sob o úmido véu de raivas, queixas e humilhações,

adivinho-te que sobes, vapor róseo, expulsando a treva noturna.

O triste mundo fascista se decompõe ao contato de teus dedos,

teus dedos frios, que ainda se não modelaram

mas que avançam na escuridão como um sinal verde e peremptório.


Minha fadiga encontrará em ti o e termo,

minha carne estremece na certeza de tua vinda.

O suor é um óleo suave, as mãos dos sobreviventes se enlaçam

os corpos hirtos adquirem uma fluidez,

uma inocência, um perdão simples e macio...

Havemos de amanhecer. O mundo

se tinge com as tintas da antemanhã

e o sangue que escorre é doce, de tão necessário

para colorir tuas pálidas faces, aurora.


* Carlos Drummond de Andrade, em Sentimento do Mundo