DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

29/10/2012

Do não sonhar








De resto eu não sonho, eu não vivo, sonho a vida real. Todas as naus são naus de sonho logo que esteja em nós o poder de as sonhar. O que mata o sonhador é não viver quando sonha, o que fere o agente é não sonhar quando vive. Eu fundí numa cor uma de felicidade a beleza do sonho e a realidade da vida. Por mais que possuamos um sonho nunca se possui um sonho tanto como se possui o lenço que se tem na algibeira, ou, se quisermos, como se possui a nossa própria carne. Por mais que se viva a vida em plena, desmesurada e triunfante acção, nunca desaparecem o do contacto com os outros, o tropeçar em obstáculos, ainda que mínimos, o sentir o tempo decorrer.
Matar o sonho é matarmo-nos. É mutilar a nossa alma. O sonho é o que temos de realmente nosso, de impenetravelmente e inexpugnavelmente nosso.
O Universo, a Vida - seja isso real ou ilusão - é de todos, todos podem ver o que eu vejo, e possuir o que eu possuo - ou, pelo menos, pode conceder-se vendo-o e possuindo-o e isso é []
Mas o que eu sonho ninguém pode ver senão eu, ninguém a não ser eu possuir. E se do mundo exterior o meu vê-lo difere de como outros o veem, isso vem de que do sonho meu eu ponho em vê-lo, sem querer, do que do sonho meu se cola a meus olhos e ouvidos.


Fernando Pessoa,  em  Livro do Desassossego


26/10/2012

Olhos nus







João Rosa não chegou a bater à porta. Irreconhecível, Clarice saiu de casa, irrompeu para o mundo, adolescente e dona de si mesma, como se a rua fosse o seu natural território.
- Ah, João...agora eu ía sair.
- Vinha buscar os meus livros.
- Pode vir amanhã, agora não me dá jeito.
O que quer que ele fosse dizer não tinha importância: Clarice tinha pressa, como só pode ter quem se esqueceu de viver. Por mais breve que seja esse esquecimento ele dura sempre demasiado.
- Bom, eu  precisava realmente dos meus livros...
Clarice parou. Deu uns passos na direção do ex-companheiro, estacou bem próximo dele. E contemplou-o, inquisitiva, antes de falar:
- É mesmo os livros que quer?
Então, olhos nos olhos, se deu o impensável. João Rosa, encartado caçador de mulheres, não foi capaz de enfrentar Clarice. Rosto baixo, pálpebras tremeluzentes, em véspera de lágrima.
- Onde vai, Clarice?
- Quem pergunta? É você?
- Por favor, Clarice: vai ter com alguém?
Ela não respondeu. Flutuava em seus lábios um hastear de feliz confiança. Pousou o braço no ombro dele, consoladora.
- Quem sabe?
E virou as costas, cruzando a rua e afastando-se no outro lado do passeio. Escutou-se então, o grito rouco de Rosa:
- Clarice, volte...eu não estou a ver.
O tom era de desespero. Ela parou, deu meia volta e atravessou, de volta, a estrada.
- Eu estou cego, Clarice!
- Você apenas está chorando, meu querido.
- Chorando, eu?
- Eu sei. Porque esses, no seu rosto, são os meus olhos.
E lágrimas que não eram suas desceram como gotas de chuva em vidro de janela.


 
Mia Couto em Dez contos para canções de Chico Buarque


24/10/2012

Flor nacional


 
 


Toda a gente diante da vitória-régia fica atraído, como Saint-Hilaire ou Martius, ante o Brasil. Mas vão pegar a flor pra ver o que sucede! O caule e as sépalas, escondidos na água, espinham dolorosamente. A mão da gente se fere e escorre sangue. O perfume suavíssimo que encantava de longe, de perto dá náusea, é enjoativo como o que. E a flor, envelhecendo depressa, na tarde abre as pétalas centrais e deixa ver no fundo um bandinho nojento de besouros, cor de rio do Brasil, pardavascos, besuntados de pólen. Mistura de mistérios, dualidade interrogativa de coisas sublimes e coisas medonhas, grandeza aparente, dificuldade enorme, o melhor e o pior ao mesmo tempo, calma tristonha, ofensiva, é impossível a gente ignorar que a nação representa essa flor...


Mário de Andrade - (1893-1945) - Crônica publicada no "Diário Nacional", de 07/01/1930- São Paulo, Duas Cidades - 1976

23/10/2012



 
 
 
Canção,  não digas  mais;  e  se  teus  versos
 
À pena  vêm  pequenos,
 
Não queiram de ti mais,  que  dirás  menos.
 
 
Luís de Camões

20/10/2012

Dos objetos





"Portrait", de Mozart-Armand
 
 
Em vão é que as coisas padecem.
Os quadros, as cadeiras, os lustres, os relógios,
os espelhos da casa em que moramos,
os ínfimos objetos que nos cercam, todos
permanecem enfermos
se nada deles é fruído ou tocado
por um par de asas.
 
Nos brancos desvãos do lar,
os utensílios de que nos servimos
são sombras palpáveis: a forma, o espanto.
 
Os pés reprimem um piso de tacos,
a mão remove a faca, o pente, a pinça
que a gaveta guarda,  difícil: nada
do que façamos infunde à matéria a dança
 de que necessita.
 
 
Valder C. Magalhães Jr.


16/10/2012

O azul



 
 
De um infinito azul a serena ironia
Bela indolentemente abala como as flores
O poeta incapaz que maldiz a poesia
No estéril areal de um deserto de Dores.
 
 
Em fuga, olhos fechados, sinto-o que espreita,
Com toda a intensidade de um remorso aceso,
A minha alma vazia. Onde fugir? Que estreita
Noite, andrajos, opor a seu feroz desprezo?
 
 
Vinde, névoas! Lançai a cerração de sono
Sobre o límpido céu, num farrapo noturno,
Que afogarão os lodos lívidos do outono,
E edificai um grande teto taciturno.
 
 
E tu, ó Tédio, sai dos pântanos profundos
Da desmemória, unindo o limo aos juncos suaves,
Para tapar com dedos ágeis esses fundos
Furos de azul que vão fazendo no ar as aves.
 
 
Que sem descanso, enfim, as tristes chaminés
Façam subir de fumo uma turva corrente
E apaguem no pavor de seus turvos anéis
O sol que vai morrendo amareladamente!
 
 
- O Céu é morto. - Vem e concede, ó matéria,
O olvido do ideal cruel e do Pecado
A um mártir que adotou o leito de miséria
Ao rebanho feliz dos homens reservado,
 
 
Pois quero, desde que meu cérebro vazio,
Como um pote de creme inerme ao pé de um muro,
Já não sabe adornar a ideia-desafio,
Lúgubre bocejar até o final obscuro...
 
Em vão. O Azul triunfa e canta em glória
Dentro dos sinos. Sim, faz-se voz para sus-
Pender-nos  no terror de sua vil vitória,
Rompendo o metal vivo em angelus de luz!
 
 
Ele rola na bruma, antigo, lentamente
Galga tua agonia e como um gládio a sul-
Ca. Onde fugir? Revolta pérfida e impotente,
O Azul! O Azul! O Azul! O Azul! O Azul! O Azul!
 
 
Stephane Mallarmé, Paris (1842-1898)


12/10/2012

Ode



 
 
 
ó
 
os doces velhinhos
que governam o mundo(e eu e
você se a gente não abrir o
olho)
 
 
ó
 
os queridos benévolos tolos
Ele-e Ela-
peças de museudecera cheias
de ideias mortas(os oh
 
 
quintilhões de incríveis
tremebundos pios desdentados
sempre-tão-interessados-
nos-negócios-alheios
 
 
bípedes) OH
os chatos
caros supérfluos velhos b
o
 
des
 
 
 
e. e. cummings,  EUA, 1894-1962 -  poem(a)s
Tradução de Augusto de Campos

10/10/2012

76 anos da extradição ilegal de Olga Benário Prestes para a Alemanha nazista pelo governo de Getúlio Vargas


No dia 23 de setembro de 1936, grávida de sete meses, Olga Benario Prestes era extraditada para a Alemanha nazista pelo governo de Getúlio Vargas. Junto com Elise Ewert, outra comunista e internacionalista alemã que participara da luta antifascista no Brasil, foi embarcada à força, na calada da noite, no navio cargueiro alemão La Coruña, viajando ilegalmente, sem culpa formada, sem julgamento nem defesa. O comandante do navio recebeu ordens expressas do cônsul alemão no Brasil para dirigir-se direto a Hamburgo, sem parar em nenhum outro porto estrangeiro, pois havia precedentes de portuários espanhóis e franceses resgatarem prisioneiros deportados para a Alemanha, quando tais navios aportavam à Espanha republicana ou à França. Após longa e pesada travessia, as duas prisioneiras foram conduzidas incomunicáveis para a prisão de mulheres de Barnimstrasse, em Berlim, onde Olga deu à luz sua filha Anita Leocadia, em 27 de novembro de 1936. Numa exígua cela dessa prisão, submetida a regime de rigoroso isolamento, conseguiu criar a filha até os 14 meses, graças à ajuda, em alimentos, roupas e dinheiro, que recebeu da mãe e da irmã de Luiz Carlos Prestes. Após campanha internacional, que atingiu vários continentes, pela libertação da esposa de Prestes e de sua filha, o governo de Hitler, pressionado com a força que a campanha ganhara, entregou a criança à avó paterna (Leocadia Felizardo Prestes). A campanha não conseguiu, contudo, a libertação de Olga. Depois da prisão de Berlim, ela passaria pelos campos de concentração de Lichtenburg e Ravensbrück, onde, juntamente com milhares de outras prisioneiras, seria submetida a trabalhos forçados para a indústria de guerra da Alemanha nazista. A situação de Olga seria particularmente penosa, pois carregava consigo duas marcas consideradas fatais: a de comunista e a de judia. Em abril de 1942, Olga Benario Prestes foi assassinada numa câmara de gás do campo de concentração de Bernburg. As cartas que Olga conseguiu escrever para a família e o testemunho de suas companheiras de infortúnio, tanto no Brasil como na Alemanha, revelam sua firmeza inabalável de caráter - a convicção profunda na justeza dos ideais revolucionários que abraçara e, em particular, seu espírito de solidariedade e justiça. Olga jamais se entregou ao desespero nem ao conformismo, lutou até o último momento de sua curta vida, infundindo coragem e confiança no futuro em todos que a rodeavam.
"Lutei pelo justo, pelo bom e pelo melhor do mundo. Prometo-te agora, ao despedir-me, que até o último instante não terão por que se envergonhar de mim. Quero que entendam bem: preparar-me para a morte não significa que me renda, mas sim saber fazer-lhe frente quando ela chegue. Mas, no entanto, podem ainda acontecer tantas coisas... Até o último momento manter-me-ei firme e com vontade de viver."


(Trecho da última carta de Olga ao marido Luiz Carlos Prestes e à filha Anita Leocadia Prestes)