DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

31/05/2017

Uma crônica de Machado de Assis ( ! )

Em nosso país a vulgaridade é um título, a mediocridade um brasão; para os que têm a fortuna de não se alarem de uma esfera comum é que nos fornos do Estado se cose e tosta o apetitoso pão-de-ló, que é depois repartido por eles, para a glória de Deus e da pátria. Vai nisto um sentimento de caridade, ou, direi mesmo, um princípio de equidade e de justiça. Por toda a parte cabem regalias às inteligências que se aferem por um padrão superior: é bem que os que não se acham neste caso tenham o seu quinhão em qualquer ponto da terra.  E
dão-lhe grosso e suculento, a bem de se lhes pagar as injúrias recebidas da
civilização.
 
 
Publicada  no  Diário do Rio de Janeiro, 01.11.1861
 
Joaquim Maria Machado de Assis, nasceu no Rio de Janeiro em 1839 e faleceu em 1908. Tinha apenas 22 anos quando escreveu essa crônica! 

23/05/2017

Discurso da servidão voluntária


 
Muito se engana quem pensa que os guardas e a disposição das sentinelas
protegem o tirano. Creio que esse recurso é utilizado mais por uma questão de formalidade do que de confiança. Os arqueiros proíbem a entrada no palácio
aos mal vestidos que não têm recursos, não aos bem armados que podem praticar algum mal. Não são os bandos de gente a cavalo, as pessoas a pé ou as armas que defendem o tirano. São sempre quatro ou cinco que mantém o tirano - quatro ou cinco que o ajudam a conservar o país inteiro servil. Sempre
foi assim: cinco ou seis são ouvidos pelo tirano e dele aproximam-se ou são por ele chamados para serem cúmplices de suas crueldades, os parceiros dos seus
prazeres, os proxenetas de suas volúpias e sócios dos bens provenientes de suas pilhagens. (...). Esses seis têm seiscentos que crescem abaixo deles e fazem de seus seiscentos o que os seis fazem ao tirano. Esses seiscentos conservam debaixo deles seis mil, cuja posição elevaram, aos quais fazem dar ao governo das províncias o manejo do dinheiro para que tenham na mão sua
avareza e sua crueldade, exercendo-as no momento oportuno.(...) Grande é
o séquito que vem depois, e quem quiser divertir-se desmanchando essa rede
não verá os seis mil, mas os cem mil, os milhões que através dessa corda agarram-se ao tirano. (...) Em suma: que se chegue lá através de favores ou sub-favores, os ganhos que se tem com o tirano; ocorre que ao final há tanta gente para quem a tirania é proveitosa quanto para aqueles para quem a liberdade seria fundamental.
 
Etienne de La Boétie, (1530-1563) poeta e filósofo francês que faleceu aos trinta e dois anos de idade, deixando sua obra para Michel de Montaigne, ((1533-1592) seu grande amigo, autor de "Os ensaios". 


19/05/2017

Papagaios!




Macacos se mordam se as línguas afiadas dessas aves de bico curvado não continuarem a tagarelar estórias repetitivas sem entenderem bulhufas do que ouvem ou veem do alto dos seus estrados performáticos - curupaco papaco a
mulher do macaco ela dança ela grita no rio Ipiranga quando vê um cisne negro
saído inesperadamente da noite escura para o clarão do dia...
Entre mortos e feridos ouvirão o balbucio do mandatário da educação dizer haverão melhorias na educassão, e nada dirão; verão invasores adentrarem na casa do povo dilapidarem todo o seu patrimônio (do povo), e continuarão cegos
surdos e mudos sob pena de perderem o privilégio de usufruir e destruir toda a fauna e flora nacionais !!
A língua dos papagaios é um pouco maior do que a de outras aves, eles possuem uma membrana localizada entre a traqueia e os brônquios, a siringe, que lhes permite produzir sons simultaneamente; por terem uma língua longa conseguem através de pequenos movimentos dar forma ao ar e diferenciar sons de maneira semelhante aos humanos. O papagaiês é a sua língua, e é através dela que os papagaios se comunicam entre as suas diferentes espécies(cerca de 350); cada espécie possui o seu dialeto, um determinado conjunto de sons compartilhado entre os indivíduos do mesmo grupo. Como existe uma grande quantidade dessas aves fora de seu habitat, convivendo com o ser humano, adquiriram uma maneira de reproduzir algumas palavras do seu vocabulário. Já
o homem, acabou "aprendendo" a papagaiar não apenas palavras, mas também
comportamentos e atitudes desprovidas de sentido e de dignidade. Talvez esses comportamentos sejam provocados pela ausência de neurônios essenciais para o bom funcionamento do cérebro.

17/05/2017

Um poeminha de amor concreto




da mesma forma que você o pão à mesa
a mão um abraço da mesma forma que
você um aviso um acorde um choque
um chute um salto da mesma forma que
você uma carona um passo uma for-
ça um recado da mesma forma que você
uma bronca um tapa um duro uma gra-
vata da mesma forma que você à luz uma
ideia um gole uma festa da mesma for-
ma que você uma rosa um beijo uma
bala uma moeda da mesma forma que você
boa-tarde boa-noite boas-vindas uma
desculpa um tempo da mesma forma que
você de cara de frente de ombros
de bandinha da mesma forma que você não
o melhor de si eu dou o (...)*meu amor e daí
 
 
Marcelino Freire nasceu em Sertânia(PE) em 1967, e vive em São Paulo desde 1991. É autor dos livros de contos Angu de sangue, BaléRalé, Amar é crime; em
2004 idealizou e organizou a antologia Os Cem menores contos Brasileiros do Século.
 
* palavra censurada(?)

13/05/2017

Antonio Cândido - Direitos humanos e Literatura (excertos)


 
 

A literatura tem sido um instrumento poderoso de instrução e educação, entrando nos currículos, sendo proposta a cada um como equipamento intelectual e afetivo. Os valores que a sociedade preconiza, ou os que considera prejudiciais, estão presentes nas diversas manifestações da ficção, da poesia e
da ação dramática. A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e
combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas.
[...] O processo que confirma no homem aqueles traços, que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrarmos
nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos à natureza, à sociedade e ao semelhante. [...] A literatura pode ser um instrumento consciente de desmascaramento, pelo fato de focalizar as situações
de restrição dos direitos, ou de negação deles, como a miséria, a servidão, a mutilação espiritual.
Portanto, a luta pelos direitos humanos abrange a luta por um estado de coisas
em que todos possam ter acesso aos diferentes níveis da cultura. A distinção entre cultura popular e cultura erudita não deve servir para justificar e manter
uma separação iníqua, como se do ponto de vista cultural a sociedade fosse dividida em esferas incomunicáveis, dando lugar a dois tipos incomunicáveis de
fruidores. Uma sociedade justa pressupõe o respeito aos direitos humanos, e a
fruição da arte e da literatura em todas as modalidades, e em todos os níveis é um direito inalienável.
 
 
Antônio Cândido de Mello e Souza nasceu no Rio de Janeiro em 24.07. 1918 e faleceu em 12.05.2017. Formou-se em Sociologia e Filosofia na Universidade
de São Paulo, tornando-se um estudioso da literatura brasileira; é considerado um dos melhores críticos sobre o assunto. Tem publicado Formação da Literatura brasileira, Direitos humanos e Literatura, Um funcionário da monarquia, O romantismo no Brasil, Textos de intervenção, entre outros.

07/05/2017

Se os meus olhos

Gustave Courbet


Se os meus olhos soubessem falar diriam o que se esconde entre as paredes palacianas da casa grande e dos salões verdes e ovais do cerrado.
Se os meus olhos pudessem gritariam páginas despovoadas de vozes pretas amarelas mamelucas mestiças loucas, despossuídas e abandonadas nas ruas e
praças e becos e manicômios dessa terra brasilis!

01/05/2017

Entre aspas




"Muitas vezes me perguntei por que motivo existem tão poucos escritores realmente bons, por que são tão excepcionais, quando há tanta gente que
escreve, quando o chamado da vocação soa com tanta sinceridade e urgência
em tantas consciências juvenis. Uma resposta, parcial e certamente questionável, seria a seguinte: para ser um grande escritor é preciso dispor
de traços de caráter opostos e excludentes entre si. Reduzidos ao básico,
esses traços são a razão e a desrazão, o método e o caos. Para construir uma
obra literária, como para qualquer outra tarefa intelectual, necessita-se prudência, organização e lucidez: é preciso aprender a fazer isso, escolher o
caminho certo, administrar suas forças, entender do que se trata. Não falo de
qualidades etéreas, mas das mais terrenas, já que para existir uma obra é
preciso haver um escritor em condições materiais de escrevê-la, de publicá-la
e, sobretudo, de continuar escrevendo. [...]
Mas, para que valha a pena, a obra tem de provir de um fundo de loucura irredutível a qualquer disciplina. A arte se alimenta do novo, o razoável é tão
velho quanto a civilização, tão repetido e previsível quanto as tábuas de multiplicar. Nada mais triste que uma pretensiosa criação artística que se esgota
no sentido comum, no óbvio e no bem-pensante. [...]
Onde encontrar a quimera completa? Existem esse homens feitos de duas metades contraditórias? Enfim, é assim como comecei: são raríssimos, e dadas
as duas condições tão improváveis, deveríamos nos felicitar por aparecer um a
cada cinquenta ou cem anos.
Não menos raro que um bom escritor é um bom leitor. A quantidade de leitores
realmente bons é mais difícil de medir porque se trata de entes privados, quase
sempre secretos. À diferença da escritura, a leitura não se publica, um crítico é
um escritor, não conta. Mas um amplo contato com leitores de todo tipo me convenceu de que a excelência nessa face oculta da literatura é raríssima. E me
ocorre que a causa dessa escassez obedece a causas que também encerram uma contradição externa. Por um lado, um leitor, para ser um bom leitor, deve
ler muito. A literatura é um sistema com suas próprias leis, e esse sistema se constituiu ao longo da história com a acumulação de uma enorme quantidade de livros. Ninguém poderia ler todos, mas ainda assim a totalidade é latente no projeto de uma leitura bem feita. (...) Justamente, o que diferencia um bom de um mau leitor é que este acredita no que está lendo, enquanto aquele sabe que
todo o sentido está na tradução daquilo que lê no peculiar idioma da literatura,
e para aprender esse idioma é preciso ter lido tudo, ou o bastante para se fazer
um ideia da totalidade".
 
 
César Aira, em Pequeno Manual de Procedimentos. Natural de Cel. Pringles, Argentina, 1949. É autor, entre outros títulos, de O vestido cor-de-rosa, A trombeta de vime, O tudo que sulca o nada, As noites de flores.