DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

31/05/2014

Vestida de Noite


 
 

às vezes penso: é inútil escrever a palavra está vestida de noite sem estrelas
envolta numa capa tosca de forma tão rasa que desmancha-se mergulha no ar nos poros azuis do infinito nua desprovida de significados
 
já não existem dicionários as regras gramaticais caíram (por obsolescência)
da árvore do saber sobre o solo do abandono diante da banalidade da vida
 
corpos folhas frutos
apodrecem nos beirais
das ruas entulhadas
de carros, de lixos humanos
sob olhares indiferentes 
passos apressados para
chegar ao nada
 
o saber transformou-se numa caixa preta mergulhada em mares profundos
de acesso impenetrável imune a sofisticações tecnológicas
 
"cabeças pensantes" julgam ter descoberto a roda outra vez
apregoando falsos ensinamentos aos desavisados
na expectativa que a história se repita e tudo continue
como sempre
 
 as palavras são como
um rio perene seguindo
seguindo seu curso
se renovando sempre
 
 quando não renovadas secam e não adianta invocar passarinhos, desenhar  aroma de flores colorir de nuvens o chão onde uns pisam sobre os outros de forma benevolentemente dissimulada
 
 

30/05/2014

Amor alheio




tu foste embora e agora o meu coração
é um coração cortado ao meio
cada metade dele é uma emoção
numa eu te adoro, noutra eu te odeio

tu foste embora e agora em mim, que aflição!
custo a conter o meu anseio
até pensei que ía ter o teu perdão...
quis tanto ter o teu perdão e ele não veio

tu foste embora, meu bem
e eu vivo com receio
é tanto amor que a gente tem
que é triste ver que o amor de alguém
não foi amor, foi devaneio

tu foste embora de mim
e eu quase ainda não creio
por isso é que eu fiquei assim
pois só se crer que o amor tem fim
quando é o fim do amor alheio

Ivor Lancellotti/ Paulo César Pinheiro

29/05/2014

A união livre

Max Ernst


Minha mulher com a cabeleira de fogo de lenha
Com pensamentos de relâmpagos de calor
Com a cintura de ampulheta
Minha mulher com a cintura de lontra entre os dentes de tigre
Minha mulher com a boca de emblema e de buquê de estrelas de primeira grandeza
Com dentes de rastros de rato branco sobre a terra branca
 Com a língua de âmbar e vidro friccionado
Minha mulher com a língua de hóstia apunhalada
Com a língua de boneca que abre e fecha os olhos
 Com a língua de pedra inacreditável
 Minha mulher com cílios de lápis de cor para crianças
Com sobrancelhas de borda de ninho de andorinha
Minha mulher com têmporas de ardósia de teto de estufa
E de vapor nos vidros
Minha mulher com ombros de champanhe
E de fonte com cabeças de golfinhos sob o gelo
Minha mulher com pulsos de palitos de fósforo
Minha mulher com dedos de acaso e ás de copas
Com dedos de feno ceifado
Minha mulher com as axilas de marta e faia
 De noite de São João
De ligustro e de ninho de carás
 Com braços de espuma de mar e de eclusa
 E mistura do trigo e do moinho
Minha mulher com pernas de foguete
Com movimentos de relojoaria e desespero
Minha mulher com panturrilhas de polpa de sabugueiro
Minha mulher com pés de iniciais
Com pés de molhos de chaves com pés de calafates que bebem
Minha mulher com pescoço de cevada perolada
Minha mulher com a garganta do Vale do Ouro
De encontro no próprio leito da correnteza
Com os seios de noite
Minha mulher com os seios de toupeira marinha
Minha mulher com os seios de crisol de rubis
Com os seios de espectro da rosa sob o orvalho
 Minha mulher com o ventre a desdobrar-se no leque dos dias
Com ventre de garra gigante
Minha mulher com o dorso de pássaro que voa vertical
Com dorso de mercúrio
Com dorso de luz
Com a nuca de pedra rolada e giz molhado
E queda de um copo do qual se acaba de beber
 Minha mulher com os quadris de escaler
Com os quadris de lustre e penas de flecha
E de caule de plumas de pavão branco
De balança insensível
 Minha mulher com nádegas de arenito e amianto
Minha mulher com nádegas de dorso de cisne
 Minha mulher com nádegas de primavera
Com sexo de lírio roxo
Minha mulher com o sexo de jazida de ouro e de ornitorrinco
Minha mulher com o sexo de algas e bombons antigos
Minha mulher com o sexo de espelho
Minha mulher com olhos cheios de lágrimas
Com olhos de panóplia violeta e agulha imantada
Minha mulher com olhos de savana
 Minha mulher com olhos d’água para beber na prisão
Minha mulher com olhos de lenha sempre sob o machado
Com olhos de nível d’água de nível do ar de terra e de fogo.
 
André Breton França (1896-1966)

Tradução de Claudio Willer

24/05/2014

poeira de estrelas


 
 
e da espiral de fumaça
ouço (ainda) o crepitar
do fogo sobre os escombros
do que um dia foi
madeira de lei
 
o som se espalha impregnando
de queimado todo o corpo
em carne trêmula (e ainda)
viva
 
sob as cinzas o pó
das horas...
o silêncio segue os
passos do vento
 
volto a ser o que
sempre fui
poeira de estrelas
somos todos

Questão de gosto

Man Ray


Gosto das pessoas que dizem o que pensam.
Gosto principalmente das pessoas que fazem o que dizem!

22/05/2014

prosa pseudomelódica



do coração rebentaram cordas em sustenidos e bemóis; mãos dedilharam um al di là de la vie em rose que finit par toujours!

19/05/2014

Poemas verticais

Um som novo
trai a minha língua
Não se parece com a palavra
É como uma árvore
que se fizesse o canto do pássaro
ou a pedra, o murmúrio da água
 
E o som que sonha a solidão dentro de um deserto
 
 
***
 
A vida é uma precaução necessária,
como a sombra para a árvore.
Mas existe algo que sobra,
como se a vida devesse esquivar-se
de seu próprio salto
ou a sombra deitar-se atrás e não adiante.
 
A nudez é anterior ao corpo.
E o corpo algumas vezes não se recorda disso.
 
 
Roberto Juarroz, Argentina (1925-1995)

17/05/2014

A propósito de Carlos Paredes *




 quando ouço teus
dedos caminhando sobre
cordas tuas mãos em
passos firmes a dedilhar
sentimentos...
de suas janelas
meu corpo fala
as portas se abrem e
meu coração é dor
e é alegria
vejo pesadas nuvens
prenunciando chuva
forte: um manancial
de gotas escorrem
e desaguam no leito
profundo do meu
rio...tocando em
raízes de antanho
atravesso pontes caminhos
sobre pedras repletas de
segredos de subsolo
Ah, guitarra caminhante
incansável em
teu braço tanta
história se revela!

* Carlos Paredes - Coimbra (1925-2004)
 


16/05/2014

Crisálida

  

 
das mãos os nós dos dedos
desato uma crisálida caminha
em círculos ascende
em espiral...

na ponta dos dedos
da noite moldo a argila
dos sonhos
para o dia amanhecer

14/05/2014

O crepitar da música





vagueio entre notas musicais busco
 o som de palavras que expressem esse
 sentimento molhado que desliza
 e paralisa-me
 
  caminho a esmo inebriada
de melancolia entre harpas e flautas
 e cravos
 
ouço o crepitar da música em
 minhas veias
e todas as palavras queimam
tornam-se pó
 
e dos meus olhos cai
uma fina camada de chuva

13/05/2014

dizem

que a paixão o conheceu
mas hoje vive escondido nuns óculos escuros
senta-se no estremecer da noite enumera
o que lhe sobejou do adolescente
turvo pela ligeira náusea da velhice
 
conhece a solidão de quem permanece acordado
quase sempre estendido ao lado do sono
presente o suave esvoaçar da idade
ergue-se para o espelho
que lhe devolve um sorriso tamanho do medo
 
dizem que vive na transparência do sonho
à beira-mar envelheceu vagarosamente
sem que nenhuma ternura nenhuma alegria
nenhum ofício cantante
o tenha convencido a permanecer
entre os vivos
 
 
 
Al Berto, Coimbra (1948-1997)

11/05/2014

"Viver é experimentar"




"Porque nós não somos preconceituosos. Porque nós somos um país secular. Sempre tivemos algum grau de aventura, e talvez de um bom liberalismo no seu sentido mais profundo: não econômico, mas de experimentar diferentes caminhos. Foi assim com o divórcio, com a abordagem sobre o álcool, em 1915, o reconhecimento da prostituição e assim por diante. É uma característica do Uruguai."

"Mas a vida é um experimento. Somente os dogmáticos, os sectários, os que se negam a qualquer mudança, podem ficar contra a honradez da palavra experimento. Viver é experimentar, buscar soluções que às vezes funcionam e às vezes não. Por que agora reconhecemos o casamento homossexual e antes não? Por que mudamos? E a escravidão, como foi que acabou? Toda a vida foi assim. Agora, os retrógrados que não querem mudanças certamente vão se assustar. Eu reivindico a palavra experimento."


Jose Mujica, presidente do Uruguai, em entrevista para a BBC Mundo fala sobre a legalização da maconha.

09/05/2014

Sonambulando

  
 
esse mar que vaza dos
olhos sobre o solo esgarçando
as ilhas luminosas do
teu rosto...
 
o escutar desse mar
seus esgares a
natureza em convulsão
os movimentos ondulares
do teu coração separam
as grandes marés que
se alternam e te
conduzem ao centro
da noite para a
reconstituição do dia
 
o infinito espacial
noturno navega nesse
grande mar inconsciente
retirando a poeira das
águas das noites
em vigília


07/05/2014

Das aparências

Aquele que quer pôr o lado frio para fora,
Põe o lado quente, o lado forrado de peles,
para dentro.
Aquele que quer pôr o lado quente para dentro,
Põe o lado frio, o lado de couro,
para fora...
 
 
Henry Wadsworth Longfellow. Maine(EUA) - 1807-1882

06/05/2014

João Tala


 

 
ALÉM DA FORMA DAS SEMENTES
 
 
Todas as palavras de um ngoma são
lamentos da civilização
.Tudo o que
pronuncio é um continente sobre
a memória dos gnomas
 
mas cada língua é uma nação de conversas
fortalece a raça do espírito o poema da
plebe
 
e este povo irmão dissemina na minha
memória o continente erguido da semente 



OBITUÁRIO
 
 
Onde ouvidos repetem pequenas ruínas
sobre o revólver sobre dias túmidos
para decretar morte é como ninguém
para aumentar áfricas laboratoriais e
o latifúndio:

depois dá um tiro na cabeça da história
tal como tropeça no meu palavrão
sem nada para acrescentar à morte
sem nada para acrescentar à vida
sem ser nunca o nome da multidão


João Tala é poeta e ficcionista, natural de Malange (Angola)



 

05/05/2014

Móbile II

diga algo belo
sublime
fale feio o outro
lado da realidade
diga algo original
seja verdadeiro
 
cale a boca
grite!
 
sem começo nem
fim são
palavras soltas para
um dia se alguém as
quiser as palavras que...
 
quando me lembrei
o trem havia partido
café-com-pão-manteiga-não
 
a língua é de todos
a língua não é de ninguém:
não tem pedra
nem tem final
teria um começo?

02/05/2014

Móbile

paredes rochosas
palmeiras angulares
e quinze assaltantes
nada sociáveis
no alto de uma cobertura
de qualquer edifício
 
3 dormitórios todos
com vista para
o mar, e
a água vazando
pela tubulação
encanada
 
vamos nadar
no nada?
 
do alto o mar é cinza
as ondas vão
e vêm como
lençóis ao vento
ou como
uma grande bacia
cheia de espuma
de sabão
 
onde vivo não
é o Brasil real