DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

24/03/2019

Desenho




Passava dias traçando linhas noites percorrendo corpos com as mãos ía até os pés - caminhava pela cabeça contornava o rosto arqueava as sobrancelhas parava nos olhos. Difíceis de penetrá-los.
Torneava a cintura parava nos mamilos e escorregava no sexo
sem conseguir entrar na misteriosa caverna. Deu forma a figuras
que se tornaram imaginárias...
E, de tanto insistir nesse exercício suas mãos deformaram-se adoeceram de dor de cansaço. Tentando dar vida a criaturas inanimadas perdeu seu principal instrumento de trabalho: parte de
seu corpo foi incorporada àquelas linhas...
Dizem que existem abismos que nos fazem criar, outros nos paralisam.

16/03/2019

Guerra

Mariana(MG), 2015



Tanto é o sangue
que os rios desistem de seu ritmo,
e o oceano delira
e rejeita as espumas vermelhas.

Tanto é o sangue
que até a lua se levanta horrível,
e erra nos lugares serenos,
sonâmbula de auréolas rubras,
com o fogo do inferno em suas madeixas.

Tanta é a morte
que nem os rostos se conhecem, lado a lado,
e os pedaços de corpo estão por ali como tábuas sem uso.

Oh, os dedos com alianças perdidas na lama...
Os olhos que já não pestanejam com a poeira...
As bocas de recados perdidos...
O coração dado aos vermes, dentro dos densos uniformes...

Tanta é a morte
que só as almas formariam colunas,
as almas desprendidas...
- e alcançariam as estrelas.

E as máquinas de entranhas abertas,
e os cadáveres ainda armados
e a terra com suas flores ardendo,
e os rios espavoridos como tigres, com suas máculas,
e a lua alucinada de seu testemunho,
e nós e vós, imunes,
chorando, apenas, sobre fotografias,
- tudo é um natural armar e desarmar de andaimes
entre tempos vagarosos,
sonhando arquiteturas.

Cecília Meireles (Rio de Janeiro, 1901-1964) em
Mar absoluto



09/03/2019

Hora de voar




O poema depois de pronto
ainda luta com o poeta
e vai crescendo na gaveta,
onde não cabe uma esperança.

Cresce em seguida no meu bolso,
muito menor para contê-lo.
O poema, depois de pronto,
quer-se mostrar, como as crianças.

Fica assustado no casaco
e parece que tem meus olhos.
(Eu lhe acendi o último fósforo
às duas horas da manhã.)

Dentro de mim se move alguém
sempre a julgar-se muito alto,
mas fica na ponta dos pés
quando procura ser notado.

Salva-me na Terra este grande
pudor de mostrar o poema,
como se fosse uma das partes
mais verdadeiras do meu corpo.

*****

Casa vazia

Poema nenhum, nunca mais será um acontecimento:
escrevemos cada vez mais
para um mundo cada vez menos,

para esse público dos ermos
composto apenas de nós mesmos,
uns jõoes batistas a pregar
para as dobras de suas túnicas
seu deserto particular,

ou cães latindo, noite e dia,
dentro de uma casa vazia.

Alberto da Cunha Melo, jornalista, sociólogo e poeta. Jaboatão dos Guararapes(PE)1942-2007.