DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

28/03/2013

Tempo de espera


Até quando esse cruzar de braços, impotente, essa espera?
Até quando ó Senhor Tempo o teu domínio?
E tu, Morte, Por que não te apressaste?
Por que não chegaste antes
Que o Inexorável nos aprisionasse?
Bem-vinda terias sido à casa nossa



II


Triste é a espera que mina aos poucos.
Onde nós dois que nos olhávamos
que nos falávamos que nos tínhamos?
Agora somos sombras,
sombras defazendo-se.
E quase nem lembramos
de quem as sombras somos.
 
 
Quando o futuro for passado
 
 
Quando eu for velha, murcha e bem seca,
  quando os seios que amaste não forem mais o que hoje são.
Quando o colorido escurecer
E o escuro embranquecer,
quando o olhar amortecer,
o andar trôpego duvidar e ruga funda me visitar,
Quando formos já dois velhos
(sim, um dia, pouco a pouco, tudo isto há de chegar!)
quando o futuro for presente e o presente passado...
longos diálogos viverão junto a silêncios,
junto a suspiros.
Quando eu for velha,
 bem velha, que canto terei em mim?
 
 
Marialzira Perestrella, poeta, escritora e psicanalista, nasceu no Rio de Janeiro, em 1916

27/03/2013

A Arte do Grafite

Manifestação contra José Feliciano, o pastor
Foto: José Cruz
 
 
 
 
 

 
 
 
 
 
 
 
 
 


24/03/2013

A Voz do Escritor



"Quando alguém lê um romance, há uma voz contando a história; quando lê um poema, geralmente fala sobre o que o dono dessa voz está sentindo; mas o principal aqui não é nem o meio nem a mensagem. O principal é que essa voz é diferente de qualquer outra que já se tenha escutado, e ela está falando diretamente com quem lê, comungando de sua privacidade, bem no seu ouvido, e ao seu jeito todo peculiar. Poder estar falando com você, sendo proveniente de séculos atrás ou como se estivesse ali, do outro lado da sala - nada mais atual e próximo, aqui e agora. Os detalhes históricos são secundários; tudo o que importa é que você a escuta - uma presença inegável na sua cabeça, e mesmo assim realmente viva, não importando há quanto tempo essas  palavras tenham sido pronuniciadas..  (...) Para um escritor, a voz é um problema que nunca o deixa em paz, e tenho pensado nesse assunto desde quando minha memória alcança - se por nenhuma outra razão, no mínimo porque um escritor, propriamente dito, não se inicia até ter uma voz própria".

Alfred Alvarez, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2006.
Poeta, romancista e crítico literário, nasceu em Londres, em 1929.

23/03/2013

O Mundo Coberto de Penas

Árvore do Mulungu
 
 
O mulungu do bebedouro cobria-se de arribações.
Mal sinal, provavelmente o sertão ía pegar fogo.
Vinham aos bandos, arranchavam-se nas árvores da beira do rio, descansavam, bebiam e, como em redor não havia comida, seguiam viagem para o sul. O casal agoniado sonhava desgraças.. O sol chupava os poços, e aquelas excomungadas levavam o resto da água, queriam matar o gado. {...}
Aquela hora o mulungu do bebedouro, sem folhas e sem flores, uma garrancharia pelada, enfeitava-se de penas. {....}
Havia um  bater doído de asas por cima da poça de água preta, a garrancheira do mulungu estava completamente invisível. Pestes. Quando elas desciam do sertão, acabava-se tudo. O gado ía finar-se, até os espinhos secariam.
 
 
Graciliano Ramos, (1892-1953)  em Vidas Secas - Editora Record (1892-1953)

18/03/2013

Quedas

Vaso, de Nuno Ramos
 
 
A pele do conteúdo cai.
Depois de muitas peles, o próprio conteúdo cai.
Depois o caído cai.
Até a aniquilação.
 
 
Nuno Ramos, poeta, escritor e artista plástico, nascido em São Paulo em 1960. 

11/03/2013

 

 
Era uma vez uma ausência que andava em missão de viagem. Quando chegava a uma encruzilhada dava três voltas sobre si própria para perder por completo a noção do caminho por onde viera atingindo assim com regularidade as regiões efêmeras do esquecimento. Depois regressava a casa.
 
 
Ana Hatherly,  Porto, Portugal (1929-  )


10/03/2013

O que era doce acabou...!

  
 
 
  
Estava à toa na vida
O meu amor me chamou
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor
 
A minha gente sofrida
Despediu-se da dor
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor
 
O homem sério que contava dinheiro parou
O faroleiro que contava vantagem parou
A namorada que contava as estrelas parou
Para ver, ouvir e dar passagem
A moça triste que vivia calada sorriu
A rosa triste que vivia fechada se abriu
E a meninada toda se assanhou
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor
 
O velho fraco se esqueceu do cansaço e pensou
Que ainda era moço pra sair no terraço e dançou
A moça feia debruçou na janela
Pensando que a banda tocava pra ela
A marcha alegre se espalhou na avenida e insistiu
A lua cheia que vivia escondida surgiu
Minha cidade toda se enfeitou
  Pra ver a banda passar cantando coisas de amor
 
Mas para meu desencanto
O que era doce acabou
Tudo tomou seu lugar
Depois que a banda passou
 
E cada qual no seu canto
Em cada canto uma dor
Depois da banda passar
Cantando coisas de amor
 
 
Chico Buarque de Holanda. - 1966 
 


07/03/2013

 
 
 
Não se perdeu nenhuma coisa em mim.
Continuam as noites e os poentes
que escorreram na casa e no jardim.
Continuam as vozes diferentes
que intactas no meu ser estão suspensas.
Trago o terror e trago a claridade.
E através de todas as presenças
caminho para a única unidade.
 
 
Sophia de Mello Breyner Andresen

06/03/2013

Pelo retrovisor...


 
 

Às vezes arrancamos em alta velocidade em busca de um amanhã que está lá atrás, e nem havíamos percebido; olhamo-nos no espelho e nos deparamos com um rosto marcado pelas vicissitudes cotidianas, com uns olhos enevoados, uma boca semicerrada quase muda. Esquecemos que nossos passos são pequenos diante da longa estrada a percorrer, e que muitos , antes de nós, por ela passaram e nos deixaram um grande e valioso legado de percepções, de sabedorias. Estou sempre me encontrando com cabeças brancas, corpos esguios e enrugados de uma beleza impalpável, verdadeiros tesouros escondidos, que não encontramos em nosso dia a dia nem em jornais, revistas, muito menos na televisão, tampouco no alardeado face book!
  Encontrei-me há poucos dias com Francesco Petrarca, um italiano nascido em Arezzo (Itália) em 1304 e que viveu até 1374. Era poeta (criador do soneto), filólogo e um pesquisador que viajava muito, considerado o pai do Humanismo. Foi contemporâneo de Dante Alighieri e muito amigo de Boccaccio . Mas o que me chamou mais atenção foi um questionamento que ele fez a respeito de certas atitudes que tomamos na vida:

“Por que trabalhar sem cessar no vazio, ó infelizes, e exercer vosso espírito com vãs sutilezas? Por que esquecer a realidade das coisas para envelhecer entre as palavras e, com os cabelos brancos e a testa enrugada, ocupar-vos sempre de puerilidades?”
 
  Perdemos tanto tempo dedicando-nos a superficialidades, a coisas sem importância, como se tivéssemos todo o tempo do mundo, como se fôssemos eternos e incólumes a ação do tempo...!

03/03/2013

Crônicas brasileiras

Teatro Municipal, 1920-1927
 
 
Genialidade brasileira
 
 
 
Confusão. Sempre confusão. Espírito crítico de antologia universal. Lado a lado todas as épocas, todas as escolas, todos os matizes. Tudo embrulhado. Tudo errado. E tudo bom. Tudo ótimo. Tudo genial.
Olhem a mania nacional de classificar palavreado de literatura. Tem adjetivos sonoros? É literatura. Os períodos rolam bonito? Literatura. O final é pomposo? Literatura, nem se discute. Tem asneiras? Tem. Muitas? Santo Deus. Mas são grandiloquentes? Se são. Pois então é literatura e da melhor. Quer dizer alguma cousa? Nada. Rima, porém? Rima. Logo é literatura.
O Brasil é o único país de experiência geograficamente provada em que não ser literato é inferioridade. Toda gente se sente no dever indeclinável de fazer literatura. Ao menos uma vez ao ano e para gasto doméstico. E toda gente pensa que fazer literatura é falar ou escrever bonito. Bonito entre nós às vezes quer dizer difícil. Às vezes tolo. Quase sempre eloquente.
O cavalheiro que encerra a sua oração com um Na antiga Roma ou como disse Barroso Na célebre batalha, é orador. Orador, só? Não. Orador de gênio. O cavalheiro que termina o seu soneto com um  Ó sol! É raio! Ó luz! Ó nume! Ó astro! É poeta. Também genial. E assim por diante.
Só a gente se agarrando com Nossa Senhora Aparecida.
Essa falsa noção da genialidade brasileira é a mesma do Brasil, primeiro país no mundo. Não há cidadão perdido em São Luís do Paraitinga ou São João do Rio do Peixe que não esteja convencido disso. E porque o Brasil é o campeão do universo e o brasileiro o batuta da terra, tudo quanto aqui nasce e existe há de ser forçosamente o que há de melhor neste mundo de Cristo e de nós também. Todos os adjetivos arrebatados e apoteóticos são poucos para tamanha grandeza e tamanha lindeza. Ninguém pode conosco. Nós somos os cueras mesmo.
Qualquer coisinha assume aos nossos olhos de mestiços tropicais proporções magnificentes, assustadoras, insuperáveis, nunca vistas. O Brasil é o mundo. O resto é bobagem. Castro Alves bate Victor Hugo na curva. O problema da circulação em São Paulo absorve todas as atenções estudiosas. Sem nós a Sociedade das Nações dá em droga. Vocês vão ver, Wagner é canja para Carlos Gomes. Em Berlim como em Sydney, em Leningrado como em Nagasaki só temos admiradores invejosos. O universo inteiro nos contempla. Êta nós!
É por isso que seria excelente de vez em quando uma cartinha como aquela de Remy de Gourmont a Figueiredo Pimentel. Um pouco de água gelada nessa fervura auriverde. Para que o trouxa brasileiro caia na realidade. Deixe-se dessa história de gênio, grandeza, importância e riquezas incomparáveis que é bobagem.
E não é verdade.
 
Alcântara Machado, em Antologia de humorismo e sátira.
Jornalista e escritor, nasceu em São Paulo, Capital, em 1901 e faleceu precocemente em 1935.  

01/03/2013

Ode à Literatura

 
 
 

Han Yu,  poeta chinês do séc. VIII


"Tudo ressoa, mal se rompe o equilíbrio das coisas. As árvores e as ervas são silenciosas: se o vento as agita, elas ressoam. A água está silenciosa: o ar a move, e ela ressoa. As ondas mugem: é que algo as oprime. A cascata se precipita: é porque falta-lhe solo. O lago ferve: algo o aquece. Os metais e as pedras são mudos, mas ressoam se algo os golpeia. Assim também o homem. Se fala, é porque não pode conter-se. Se se emociona, canta. Se sofre, lamenta-se. Tudo o que sai de sua boca em forma de som se deve a um rompimento do seu equilíbrio... A palavra é o mais perfeito dos sons humanos; a literatura, por sua vez, é a mais perfeita forma de palavra. E assim, quando o equilíbrio se rompe, o céu escolhe entre os homens os que são mais sensíveis e os faz ressoarem."