DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

17/12/2023

"Natureza morta" *

 Adriana Varejão



Os livros são dorsos de estantes distantes quebradas.

Estou dependurada na parede feita um quadro.

Ninguém me segurou pelos cabelos.

Puseram um prego em meu coração para que eu não me mova.

Espetaram, hein? a ave na parede.


Mas conservaram os meus olhos

É verdade que eles estão parados.

Como os meus dedos, na mesma frase.

As letras que eu poderia escrever

Espicharam-se em coágulos azuis.

Que monótono o mar!


Os meus pés não dão mais um passo.

O meu sangue chorando

As crianças gritando,

Os homens morrendo

O tempo andando

As luzes fulgindo,

As casas subindo,

O dinheiro circulando,

O dinheiro caindo,

Os namorados passando, passando,

Os ventres estourando

O lixo aumentando,

Que monótono o mar!


Procurei acender de novo o cigarro.

Por que o poeta não morre?

Por que o coração engorda?

Por que as crianças crescem?

Por este mar idiota não cobre o telhado das casas?

Por que existem telhados e avenidas?

Por que se escrevem cartas e existe jornal?

Que monótono o mar!


Estou espichada na tela com um monte de frutas apodrecendo.

Se eu ainda tivesse unhas

Enterraria os meus dedos nesse espaço branco

Vertem os meus olhos uma fumaça salgada

Este mar, este mar não escorre por minhas faces.

Estou com tanto frio, e não tenho ninguém...

Nem a presença dos corvos.


* Solange Sohl, pseudônimo de PATRÍCIA GALVÃO(Pagu), em

Diário de São Paulo, 15.08.1948.

Patrícia Galvão nasceu em São João da Boa Vista(SP) 1910-1962.

09/12/2023

Do silêncio ensurdecedor

 




Tudo é silêncio. Corro até o mar em busca de uma voz desaparecida. O ir e vir das ondas termina calmamente em meus pés sem nada dizer. Apuro o ouvido, e ouço apenas um débil sussurrar de espumas misturado ao forte ruído das ondas, o ronco surdo da Terra. Vozes em agonia penetraram no silêncio do mar, formando lagos de lágrimas, blocos de vocábulos brancos, geleiras de palavras, nuvens de parágrafos suspensos sobre.

A voz penetrou o silêncio, caiu no mar, perdeu-se nas ondas - e o coração partido: pedaços boiando sobre as ondas no vaivém do mar. Tão débil a voz, tão inominável o sentimento misturado a esse mar tenebroso do viver, esse alarido de vozes silentes! 

24/11/2023

Saudade...

 




Dos blogues com suas postagens muitas vezes polêmicas, e enriquecidas de ideias novas; das leituras provocadas ou sugeridas por blogueiras(os) amantes da boa leitura; das bibliotecas com seus corredores, labirintos silenciosos repletos de prateleiras de livros que nos sussurravam palavras saídas do bico dourado de um papagaio, dando asas à imaginação; das araras azuis, do canto dos pássaros, das matas e dos jardins: melros, sabiás, bem-te-vis; das tartarugas que enterravam seus ovos na praia e corriam para o mar. Do marulhar das ondas e dos barcos ao longe nos levando a uma ilha desconhecida.

        Quantas saudades...!?

26/10/2023

William Shakespeare em Macbeth (trechos) *

 



"Esta terna estrutura, a terra, me parece que se tornou uma estéril excrecência e a excelsa abóbada celeste, o firmamento solidamente suspenso sobre nós, majestoso teto marchetado de ouro flamejante, surge  como uma mistura explosiva de vapores perniciosos".


" Os que dormem, e os que já estão mortos, não passam de pinturas.É tão  somente o olhar de uma criança que se amedronta diante de um diabo desenhado."


" E todos os nossos ontens não fizeram mais que iluminar para os tolos o caminho que leva ao pó da morte. Apaga-te, apaga-te, chama breve! A vida não passa de uma sombra que caminha, um pobre ator que se pavoneia e se aflige sobre o palco - faz isso por uma hora e, depois não se escuta mais sua voz. É uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria e vazia de significado".


William Shakespeare (1564-1616) nasceu e morreu em Stratford, Inglaterra. Começou a escrever poemas desde cedo, até tornar-se um dos mais consagrados dramaturgos do seu tempo. Além de Macbeth escreveu inúmeras peças, entre as quais: Hamlet, Rei Lear, Otelo, A tempestade, Romeu e Julieta. Macbeth foi escrita entre 1605 e 1606.

24/09/2023

Dos secretários que os príncipes têm junto de si *

 




Não é de pouca importância para um príncipe a escolha dos ministros, os quais são bons ou não, segundo a prudência do governante. E a primeira conjectura a se fazer da inteligência de um senhor resulta da observação dos homens que o cercam; quando são capazes e fiéis, sempre se pode reputá-lo sábio, porque soube reconhecê-los competentes e conservá-los. Mas quando não são assim, sempre se faz mau juízo do príncipe, porque o primeiro erro dele reside nessa escolha. [...] E porque são de três espécies as inteligências - uma que entende as coisas por si; outra que discerne o que os outros entendem; e a terceira que não entende nem por si, nem por intermédio dos outros, sendo a primeira excelente, a segunda muito boa e a terceira inútil, - estavam todos acordes que, se o príncipe não se classificava no primeiro grau, estava, necessariamente, no segundo. Porque, toda vez que alguém tem a capacidade de conhecer o bem e o na fala ou no ato de uma pessoa, mesmo que por si não consiga solucionar os problemas, discerne as más e as boas obras do ministro, exalta estas e corrige aquelas; e o ministro não pode enganá-lo, e então se conserva bom.

Mas, para que um príncipe conheça o ministro, existe um método infalível. Quando vires o ministro pensar mais em si do que em ti, e que em todas as ações procura o interesse próprio, podes concluir que jamais será um bom ministro, e nele nunca poderás confiar; aquele que tem o Estado de outrem em suas mãos não deve pensar nunca em si, mas sempre no príncipe, e não recordar nunca algo que não seja da sua competência. Por outro lado, o príncipe, para conservá-lo bom ministro, pense nele, honre-o, faça-o rico, vinculando-o a sua pessoa, fazendo-o participar das honrarias e cargos, a fim de que veja não poder ficar sem a proteção principesca; mas que as muitas honras não o façam desejar mais honras, as muitas riquezas não façam desejar maiores riquezas, e os muitos cargos o façam temer as mudanças. Pois, quando os ministros e o príncipe relacionam-se assim preparados, podem confiar um no outro; do contrário, o fim será sempre danoso, para um para o outro.


Extraído de O Príncipe, de Nicolau Maquiavel, Florença(Itália) - 1469-1527 - Diplomata, poeta, historiador e músico. 

03/09/2023

"Mensagem"

 

Os deuses vendem quando dão.

Compra-se a glória com desgraça.

Ai dos felizes, porque são

só o que passa!


Baste a quem baste o que lhe basta

O bastante de lhe bastar!

A vida é breve, a alma é vasta.

Ter é tardar.


Foi com desgraça e com vileza

que Deus ao Cristo definiu:

assim o opôs à Natureza

e o Filho o ungiu.



Fernando Pessoa

07/08/2023

"Conversas por escrito" *

 


Agora a nossa realidade se desmorona. Despencam-se deuses, valores, paredes...Estamos entre ruínas. A nós, poetas destes tempos, cabe falar dos morcegos que voam por dentro dessas ruínas.. Dos restos humanos fazendo discursos sozinhos nas ruas. A nós, cabe falar do lixo sobrado e dos rios podres que correm por dentro de nós e das casas. Aos poetas do futuro caberá a reconstrução - se houver reconstrução. Porém, a nós,  a nós sem dúvida - resta falar dos fragmentos, do homem fragmentado que, perdendo suas crenças, perdeu sua unidade interior. É dever dos poetas de hoje falar de tudo que sobrou das ruínas - e está cego. Cego e torto e nutrido de cinzas. (...) E se alguma alteração tem sofrido a minha poesia, é a de tornar-se em cada livro, mais fragmentária. Mais obtida por escombros. Sendo assim, cada vez mais, o aproveitamdento de materiais e passarinhos de uma demolição.



* Trecho de uma entrevista que Manoel de Barros (Corumbá-MS, 1916-2014) concedeu à revista Grifo - 1970-1980.

01/08/2023

Aporias

 


Lembrança e esquecimento; amor e ódio; vida e morte.

Uma cabeça cheia de vazios, de pontos interrompidos, de sonhos 

revelados, lembranças esfumaçadas, pesadelos que se tornam reais. 

Pancadarias, violência, espancamentos até a morte, perversidade, 

racismo, xenofobia. Pandora escancara a porta da sua caixa. É o

salve-se quem puder. Até quando?

Carrega-se um fardo ancestral que supõe-se amá-lo.

Quedas e tombos superam o levantar-se. Tanto mar, tanto amor, e

quantas ilhas de ódio a dividir continentes humanos!

22/07/2023

O voo de Minerva


 


"A ave de Minerva só levanta voo ao entardecer. Quando a Filosofia chega, com sua luz crepuscular, a um mundo que declina, é porque alguma manifestação de vida está prestes a desaparecer. Não vem a Filosofia para renová-la, mas para reconhecê-la. A coruja Minerva alça voo com o início do crepúsculo."


Georg Wilhelm Friedrich Hegel, filósofo. Stuttgart, Alemanha (1770-1831) Autor de  Fenomenologia do Espírito, considerada um marco na filosofia de todos os tempos.

09/07/2023

Relógio *



As coisas são

As coisas vêm

As coisas vão

As coisas

Vão e vêm

Não em vão

As horas

Vão e Vêm

Não em vão



***


Marcha


Todos virão para o teu cortejo nupcial

A princesa Patoreba

Coroada de foguetes

A Senhora Dona Sancha

Que todos querem ver

O tangolomango

 E seus mortos mastigados

Nas laboriosas noites processionais


Todos comparecerão

O camarada barbudo

O bobo-alegre

O salvado de diversos pavorosos incêndios

O frade mau

O corretor de cemitérios

E onde estiver

O Pinta-Brava

Meu irmão

Tatá, Dudu, Popó, Sici, Lelé


Não quero sombra de cera

Nem noite branca de reza

Quero o velório pretoriano

De Sócrates

Não o bestiário

De Casanova

Não quero tochas


Não quero vê-las

Tatá, Dudu, Popó, Sici, Lelé

O tio da América

A igreja da Aparecida

O duomo de Milão

O trem, a canoa, o avião

Tudo darei às mesas anatômicas

Do mastigador de entranhas


*Oswald de Andrade (São Paulo(SP)1890-1954) - em Poesias Reunidas - 1971

02/07/2023

O ovo *

 


Eu tenho uma galinha que põe cem ovos por mês, mas não consigo entender por que vem três de cada vez. No meu quintal tinha cinquenta mil galinhas e vendi tudo pra vizinha Mariquinha. Agora só fiquei com um pintinho novo e comecei tudo de novo com o ovo.



Geraldo Vandré
( Geraldo Pedroso de Araújo Dias) João Pessoa(PB)1935-

17/06/2023

Da natureza das coisas *





Coisa nenhuma subsiste, mas tudo flui.

Fragmento ajusta-se a fragmento

e as coisas assim crescem.

Até que as conhecemos e as nomeamos.

Fundem-se, e já não são as coisas que conhecêramos.

Formados dos átomos que caem velozes ou lentos

vejo os sóis, vejo os sistemas se ordenarem; é certo 

que a natureza está em nós

até mais do que nossa consciência sobre nós mesmos.


Tu também, ó Terra, teus impérios, países e mares,

a menor de todas as galáxias,

também formada assim,

também tu te irás, ó Terra,

e hora a hora vais indo, ó Terra.


Nada subsiste. Teus mares desaparecerão em névoa;

as areias abandonarão o seu lugar,

e onde hoje se acamam outros mares

abrirão com suas foices de brancura, outras baías.


* Tito Lucrécio Caro poeta romano(96 a.C. - 55 a.C.)

Poema escrito no século I a.C. - Tradução de Antonio José de Lima Leitão (1787-1856)

07/05/2023

Re[FLUXO DE CONSCIÊNCIA]





Se eu não fosse eu não seria como tu que vives como um tatu, fuçando as entranhas da terra para alimentar-se dos vermes.

Não canto. Não rio. Não choro. E chove muito. Vejo cristais refletindo um mundo sendo estilhaçado frenética e friamente. Há vislumbres de novas configurações geopolíticas no ar, no planeta Terra. Tudo que nasce um dia morre, para que a vida possa continuar... 

17/04/2023

Balada do amor através das idades

 



Eu te gosto, você me gosta

desde tempos imemoriais.

Eu era grego, você troiana

mas não Helena.

Saí do cavalo de pau

para matar seu irmão.

Matei, brigamos, morremos.


Virei soldado romano,

perseguidor de cristãos.

Na porta da catacumba

encontre-te novamente.

Mas quando vi você nua

caída na areia do circo

e o leão que vinha vindo,

dei um pulo desesperado,

e o leão comeu nós dois.


Depois fui pirata mouro

flagelo de Tripolitânia.

Toquei fogo na fragata

onde você se escondia

da fúria do meu bergantim.

Mas quando ía te pegar

e te fazer minha escrava,

você fez o sinal da cruz

e rasgou o peito a punhal.

Me suicidei também.

Depois(tempos mais amenos)

fui cortesão de Versalhes,

espirituoso e devasso.

Você cismou de ser freira...

Pulei muro de convento

mas complicações políticas

nos levaram à guilhotina.


[.....]


Agora vamos para o cemitério

levar os corpos dos desiludidos

encaixotados competentemente

(paixões de primeira e segunda classe)


Os desiludidos seguem iludidos

sem coração, sem tripas, sem amor.

Única fortuna, os seus dentes de ouro

não servirão de lastro financeiro

e cobertos de terra perderão obrilho

enquanto as amadas dançarão um samba

bravo, violento, sobre a tumba deles.


Carlos Drummond de Andrade, em Alguma poesia. 1930.

02/04/2023

Fingir que está tudo bem *





fingir que está tudo bem: o corpo rasgado e vestido com a roupa passada a ferro, restos de chamas dentro do corpo, gritos desesperados sob as conversas: fingir que está tudo bem: olhas-me e só tu sabes: na rua onde os nossos olhares se encontram é noite: as pessoas não imaginam: são tão ridículas as pessoas, tão desprezíveis: as pessoas falam e não imaginam: olhamo-nos: fingir que está tudo bem: o sangue a ferver sob a pele igual aos dias antes de tudo, tempestades de medo nos lábios a sorrir: será que vou morrer? pergunto dentro de mim: será que vou morrer? olhas-me e só tu sabes: ferros em brasa, fogo, silêncio e chuva que não se pode dizer: amor e morte: fingir que está tudo bem: ter de sorrir: um oceano que nos queima, um incêndio que nos afoga. 


* José Luís Peixoto - Ponta do Sor (Portugal) - 1974-

09/02/2023

Beta *


O homem de sete cores  - Anita Malfatti


 


"Estive doente

doente dos olhos, doente da boca, dos nervos até.

Dos olhos que viram mulheres formosas

da boca que disse poemas em brasa

dos nervos manchados de fumo e café.

Estive doente

estou em repouso, não posso escrever.

Eu quero um punhado de estrelas maduras

eu quero a doçura do verbo viver."


* De um "louco" anônimo

28/01/2023

O caminho branco




Vou por um caminho branco.

Viajo sem levar nada.

Minhas mãos estão vazias.

Minha boca está calada.

Vou só com o meu silêncio

e a minha madrugada.

Não escuto, entre os barrancos,

a voz do galo estridente

que na treva do terreiro

anuncia as alvoradas.

Nem mesmo escuto a minha alma:

não sei se ela vai dormindo

ou me acompanha acordada,

se ela é vento ou se ela é cinza

ou nuvem rubra raiante

no dia que se levanta

como vela desdobrada

em nave que corta as vagas.

Não sei nem mesmo se é alma

ou apenas sal de lágrimas.

Vou por um caminho branco que parece a Via Láctea.

Só sei que vou tão sozinho

que nem sequer me acompanho,

como se eu fosse um caminho

pisado por vulto estranho.

Não sei se é dia ou se é noite

o que surge à minha frente

se é fantasma do passado

ou vivente do presente.

 Não sei se é torrente clara

da água que corre entre pedras

ou se um gavião me espreita

oculto no nevoeiro,

espantalho prometido

ao meu dia derradeiro.

Atravessando barrancos

e plantações de tomates

e ouvindo o canto escarlate

de airosos galos polacos,

vou por um caminho branco:

brancura de bruma e prata.

Entre tufos de carqueja

há constelações de orvalho

e um chão de meio-dia

cega a minha madrugada.

Vou como vim, sem saber

a razão da travessia.

Nem sequer levo na boca

o gosto de água salgada

que relembra a minha infância

feita de mar e de mangue.

Nem sequer levo nos meus olhos de menino

- a mancha rubra de sangue

deixada pelo assassino

que vi certa madrugada.

Vou por um caminho branco

e nada levo nem tenho:

nem ninho de passarinho

nem fogo santo de lenho.

Só vou levando o meu nada.

Foi tudo quanto juntei para oferecer a Deus

nesta madrugada.


Ledo Ivo - Maceió (AL) 1924-2012

17/01/2023

Que eu me livre...

 de ideias retrógradas, de "pensadores" negacionistas e obtusos; de atitudes reacionárias, racistas e homofóbicas.

Que eu aprenda a retirar o véu que encobre a vida, para perceber que ela é dinâmica, e está sempre em movimento; que eu consiga ver que o mundo é diverso, variável, diferente e infinito.