DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

29/01/2021

Metamorfoses




E se o rio que banha tua aldeia tivesse suas águas transformadas em leitosa lama condensada e não pudesses mais beber, comer, banhar-se, nadar, navegar em seu leito, o que farias?                                                                          E se de repentemente acordasses um dia transformado num jacaré, sem poder movimentar-se para capturar uma mosca sequer para tua sobrevivência? Implorarias a uma ema para que ela te desse uma bicada? A espécie humana sempre se considerou superior às  outras. Será que é por isso que tem medo de ser transformada num réptil que se arrasta para obter seu alimento? O medo é um sentimento capaz de subjugar qualquer ser vivo. Talvez seja por isso que hoje se vê tantos sabichões se arrastando pelo palácio em busca de umas migalhas de poder, seu alimento preferido.                                                              E tu, leitor, tens mais medo do que ou do quem, hein?  

23/01/2021

Às avessas

 



Retalhei minhas mãos, virei-as pelo avesso; troquei a posição dos pés, mudei o rumo do meu caminho. A cabeça deu um giro de trezentos e sessenta graus, - passei a ver em minúcias coisas que até então não percebia: buracos de fechaduras, cantos de paredes onde aranhas se escondem para tecer seus fios invisíveis e pegajosos para atrair suas presas; escorpiões misturados com gêneros de primeiras necessidades. Enfim, passei a ter uma visão tridimensional das coisas e das pessoas que me rondam e/ou me rodeiam.                                                              O mundo é grande, mas minha aldeia ainda é pequena; e quanto menor, mínimo é seu universo, ínfimas serão suas possibilidades de raciocínio, de perceber as múltiplas facetas de seu próprio ser. Em situações adversas tudo parece girar ao contrário, mas quando isso ocorre temos a oportunidade de ver o que antes nos parecia imutável.

17/01/2021

Mundo, mundo!?



 


Mundo, mundo mudo, sem fronteiras, sem eira nem beira; povoado de criaturas, como se donas fossem de ti. Enquanto permaneces dormente, elas ressurgem furibundas, devastando florestas, engolindo vidas em ondas gigantescas e vorazes. Enquanto te iludes com aglomerações incomunicáveis em busca de prazeres fugazes e falsa liberdade, tais criaturas invisíveis tratam cuidadosamente do teu extermínio. Fora da bolha em que tentas viver, milhares de pessoas estão morrendo asfixiadas por falta de oxigênio justamente naquela porção de terra que é considerada o pulmão do planeta! Gritos e sussurros saídos dos interstícios de seres em agonia ecoam pelo universo num esforço sobrehumano pela vida. Não te iludas, mundo, porque eles se propagarão como o som em fúria através dos tempos, deixando marcas e crateras profundas de espanto e indignação.

10/01/2021

Desassossego





Ver a linha da vida desmanchar-se nas mãos do tempo sem saber quem é Dona Felicidade, aquela que engana a todos com seus gestos gastos e dissimulados...                                                                                       - Antes de entrar, dispa os pés, tantos micróbios: o nariz, a boca, os ouvidos, todos desembocam no mesmo labirinto das sete portas para desaguar nas vísceras recheadas de trilhões de bactérias que disputam com os neurônios o tempo de validade de todos nós. Reina um silêncio    ensurdecedor; todos se foram apressados, em busca de sabe-se lá o quê. Carregam, sem saber, a linha que costura o tempo. E o tempo é o responsável por torná-la a cada dia mais tênue, quase transparente, mas cheia de emaranhados nós, impossível desmanchá-los. Tentam ignorá-la, talvez por isso a pressa, esse desejo desesperado de recuperar o tempo perdido: voltas e mais voltas, vaivéns intermináveis. O novelo torna-se mais e mais robusto e disforme; a linha do tempo vai encurtando, o desejo e a curiosidade diminuindo, e o desespero aumentando...                                                          

Salve-se quem puder! 

03/01/2021

Patacoadas

Gralhas



 O pato pactua com outros patos (com ou sem penas), suas patacoadas, que não existiriam sem as gralhas. São elas que ecoam pelo mar as dissonâncias do pato. Enquanto isso, a pata choca em seu ninho ovos de serpentes de mil e uma cabeças: de corvos, carcarás e gaviões.