DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

31/08/2019

Disse me disse




Dizem que não dizes, ou por outra, que dizes o que não dizem: que as rosas vermelhas sangram quando cortadas, e que podem transformar-se em bifes que se come à milanesa; dizem que falas de nós de vós deles delas feitos nós de vozes que vociferam sentimentos que só desejam dizer eu eu eu a repercutir ecos infinitos povoados de narcisos inodoros; dizem que teu texto é só queixumes paus pedras sal e cal seca e sol.
Ô língua danada de traiçoeira que enviezadamente envereda por uma mata fechada tentando abrir clareiras contando estórias que parecem não ter pés nem cabeças, como cobra que desliza nas águas profundas de um rio que desemboca no mar das múltiplas palavras, de significados diversos sem ser conto sem ser verso numa cantilena repetitiva de catedral cujos sinos não mais repicam, porque as procissões de hoje são regidas por bombas caseiras e coquetéis molotov.
Dizem, dizem que morre eletrocutado quem anda descalço sob a chuva forte nas encostas que desmoronam abrindo crateras engolindo vidas de negros de pobres em condições subumanas, e depois que acontece o desastre todos lamentam e lhes rendem homenagens póstumas.
Dizer por dizer digo pros meus botões sem casa que a porta está fechada com todos dentro, sem nexo sem verso, sem anverso nem reverso e nem por isso o caminho deixará de bifurcar-se em outros, porque ele é infinito...!

29/08/2019

Preste atenção, o mundo é um moínho...


vai triturar teus sonhos, tão mesquinhos
vai reduzir as ilusões a pó
Muita atenção! De cada amor tu herdarás
só o cinismo; quando notares, estás
à beira do abismo que cavaste com os teus pés!



22/08/2019

Na Trilha Com Araquém

 Santarém-PA - Araquém Alcântara




16/08/2019

Desconversação





Amar é avermelhar-se de paixão
é corar e desbotar-se em semitons
no arco-íris do nadir
e se nadir é o mesmo que nada
nada-se no seco dos olhos
afogados na tempestade.

Meu chinelo é amarelo barro
o teu é azul de anilina;
meu chinelo às vezes me faz
escorregar, e deslizo;
teu azul cheira a decomposição.

Nossos passos percorrem caminhos
paralelos, desencontrados.
Com chinelo ou sem chinelo
todos teremos que seguir.

08/08/2019

Tempos modernos

Atravessamos tempos calamitosos
impossível falar sem incorrer em crime de contradição
impossível calar sem se tornar cúmplice do Pentágono. Sabe-se perfeitamente que não há alternativa possível
todos os caminhos levam a Cuba
mas o ar está sujo
e respirar é um ato falho.
O inimigo diz
que o país tem toda a culpa
como se os países fossem homens.
Nuvens malditas revoluteiam em torno de vulcões malditos embarcações malditas empreendem expedições malditas
árvores malditas se desfazem em pássaros malditos:
tudo contaminado de antemão
      
***

Telegramas

Deixem de conversa mole
Aqui ninguém tem o rabo preso.

Mas para que diabos eu escrevo?
Para que me respeitem e me queiram
Para cumprir com deus e com o diabo
Para deixar registro de tudo.
Para chorar e rir ao mesmo tempo
Em verdade em verdade
Não sei pra que diabos escrevo:
Suponhamos que escrevo por inveja

Vai saber quem criou as estrelas
Vai ver o sol é uma mosca
Vai ver o tempo não transcorre
Vai ver a terra não se move.

Nicanor Parra (Chile, 1914-2018) em Só para maioresde cem anos - antologia(anti)poética


01/08/2019

Das palavras interditas




Entre parênteses provisórios segue-se lutando contra
a página em branco luzidia e indiferente.
Tanto esquecimento, lembranças outras insistentemente desaprendidas...




A aurora esvai-se, é o irromper da noite do sono nas
veias; pedaços de equívocos embaralhados mal costurados



guardados em gavetas: os cômodos do medo e da
ignorância. E as bocas cheias de pedras sedimentadas no ódio e no silêncio.
Saberão eles e elas das palavras interditas?