DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

30/07/2014

Sois quem?




Essa "coisa" forte que te invade, que te entra por todos os poros e orifícios; pulsa em tuas veias, da boca vai para o estômago espalhando-se como se fosse raiz penetrando no piso da casa subindo as paredes do corpo aninhando-se nas cavidades viscerais do abdome seria o quê?

Palavra sem nome sentimento disparatado desrazão um não querer que se instala e 'daqui não saio ninguém me tira'? ou seria couro de novilho que arrancamos do corpo metemos na imbira colocamos ao sol para extrair-lhes todos os líquidos, todos os odores fétidos para vendê-lo na feira  á guisa de uns trocados?

 Ou um simulacro de troféu para exibição?

27/07/2014

Questão de gosto


 
 

Gosto dos venenos mais lentos
das bebidas mais fortes
dos cafés mais amargos
dos delírios mias loucos.
 
Você pode até empurrar-me
de um penhasco, que eu vou dizer:
E daí?  Eu adoro voar!
 
 
Clarice Lispector

24/07/2014

Sobre pés, pedras, e palavras...


 
 
 
Os pés passam pisam ultrapassam caminhos pessoas podem ser pássaros cegos
na noite escura sobrevoam cidades destruindo vidas
 e da boca do céu densas nuvens negras despejam ventos devastadores.
 Os pés descaminham perdidos entre ruínas:
 quedas mortes nos ares as palavras ardem
como gritos em chamas silêncios transformados em pedras.
 
E sob as pedras
o sem sentido
das palavras

22/07/2014

Ariano Suassuna - 1927-2014

 
 
 
 
Lápide
 
Quando eu morrer não soltem meu cavalo
nas pedras do meu Pasto incendiado
fustiguem-lhe seu dorso alardeado
com a espora de oura até mata-lo
 
Um dos meus filhos deve cavalga-lo
numa sela de couro esverdeado
que arraste pelo chão pedroso e pardo
chapas de cobre, sinos e badalos
 
Assim, com o raio e o cobre percutido
tropel de cascos, sangue do castanho
talvez se finja o som do ouro fundido
 
que em vão - sangue insensato e vagabundo -
tentei forjar no meu cantar estranho
a tez da minha fera ao sol do mundo!
 
Ariano Suassuna nasceu em João Pessoa(PB), em 1927 e faleceu hoje.
É escritor, poeta e dramaturgo.
 


21/07/2014

Raul Pompéia: Vibrações


Eleutério Sanche
 
Comme les longs échos qui de loin se confondent,
Dans une ténébreuse et profunde unité,
Vaste comme la nit et comme la clarité,
Les parfums, les couleurs et le son se repondent. * 
 
  Vibrar, viver. Vibra o abismo etéreo à música das esferas; vibra a convulsão do verme, no segredo subterrâneo dos túmulos. Vive a luz, vive o perfume, vive o som, vive a putrefação. Vivem à semelhança os ânimos.
 
A harpa do sentimento canta no peito, ora o entusiasmo, um hino, ora o adágio oscilante da cisma. A cada nota, uma cor, tal qual nas vibrações da luz. O conjunto é a sinfonia das paixões. Eleva-se a gradação cromática até à suprema intensidade rutilante; baixa à profunda e escura vibração das elegias.
 
Sonoridade, colorido: eis o sentimento.
Daí o simbolismo popular das cores.
 
 
Raul Pompéia jornalista, contista, romancista, nasceu em Angra dos Reis (RJ) 1863-1895
 
 
* Como os ecos além confundem seus rumores/ Na mais profunda e mais tenebrosa unidade/ Tão vasta como a noite e como a claridade,/ Harmonizam-se os sons, os perfumes e as cores. Charles Baudelaire, "As flores do mal".

19/07/2014

Menino de rua





Menino de Rua, garoto indigente Infanto Carente,
Não sabe onde vai Menino de Rua, assim maltrapilho
De quem tu és filho Onde anda o teu pai?
Tu vagas incerto não achas abrigo e xposto ao perigo
De um drama de horror É sobre a sarjeta que dormes teu sono,
No grande abandono Não tens protetor Meu Deus! Que tristeza!
 Que vida esta tua Menino de Rua,
 Tu andas em vão Ninguém te conhece, nem sabe o teu nome
Com frio e com fome
Sem roupa e sem pão
Ao léu do desprezo dormes ao relento
O teu sofrimento Não posso julgar,
Ninguém te auxilia, ninguém te consola,
Cadê tua escola, Teus pais teu lar?
Seguindo constante teu duro caminho
 Tu vives sozinho Não és de ninguém
 Às vezes pensando na vida que levas
Te ocultas nas trevas Com medo de alguém
Assim continuas de noite e de dia
 Não tens alegria
 Não cantas nem ri
No caos de incerteza que o seu mundo encerra
Os grandes da terra
Não zelam por ti
Teus olhos demonstram a dor, a tristeza,
Miséria, pobreza
E cruéis privações
E enquanto estas dores tu vives pensando,
Vão ricos roubando milhões e milhões
Garoto eu desejo que em vez deste inferno
Tu tenhas caderno também professor
Menino de Rua de ti não me esqueço
E aqui te ofereço meu canto de dor
 
Patativa do Assaré, 1909-2002

15/07/2014

Um poema para se comer e pensar

 


ANTIGUIDADES
 
 
Quando eu era menina bem pequena,
em nossa casa, certos dias da semana se fazia um bolo,
assado na panela
com um testo de borralho em cima.
Era um bolo econômico, como tudo, antigamente.
Pesado, grosso, pastoso.
(Por sinal que muito ruim.)
Eu era menina em crescimento.
Gulosa,
abria os olhos para aquele bolo
que me parecia tão bom e tão gostoso.
A gente mandona lá de casa
cortava aquele bolo com importância.
Com atenção. Seriamente.
Eu presente. Com vontade de comer o bolo todo.
Era só olhos e boca e desejo
daquele bolo inteiro.
Minha irmã mais velha governava.
 Regrava.
Me dava uma fatia,
tão fina, tão delgada..
. E fatias iguais às outras manas.
E que ninguém pedisse mais !
E o bolo inteiro, quase intangível,
se guardava bem guardado,
com cuidado, num armário,
 alto, fechado, impossível.
Era aquilo, uma coisa de respeito.
Não pra ser comido assim,
sem mais nem menos.
Destinava-se às visitas da noite,
 certas ou imprevistas.
Detestadas da meninada.
Criança, no meu tempo de criança,
não valia mesmo nada.
A gente grande da casa
 usava e abusava
de pretensos direitos de educação.
Por dá-cá-aquela-palha, ralhos e beliscão.
Palmatória e chineladas não faltavam.
Quando não, sentada no canto
 de castigo fazendo trancinhas,
amarrando abrolhos.
"Tomando propósito".
Expressão muito corrente e pedagógica.
Aquela gente antiga, passadiça,
 era assim: severa, ralhadeira.
Não poupava as crianças.
Mas, as visitas...
- Valha-me Deus !... As visitas...
Como eram queridas, recebidas,
 estimadas, conceituadas, agradadas !
Era gente superenjoada.
Solene, empertigada.
De velhas conversas que davam sono.
Antiguidades...
Até os nomes, que não se percam:
D. Aninha com Seu Quinquim. D. Milécia,
sempre às voltas com receitas de bolo,
 assuntos de licores e pudins.
 D. Benedita com sua filha Lili. D. Benedita
 - alta, magrinha. Lili - baixota, gordinha.
Puxava de uma perna e fazia crochê.
E, diziam dela línguas viperinas:
"- Lili é a bengala de D. Benedita".
Mestre Quina, D. Luisalves, Saninha de Bili, Sá Mônica
. Gente do Cônego, Padre Pio. D. Joaquina Amâncio.
.. Dessa então me lembro bem. Era amiga do peito de minha bisavó.
Aparecia em nossa casa
quando o relógio dos frades tinha já marcado 9 horas
e a corneta do quartel, tocado silêncio.
E só se ia quando o galo cantava.
O pessoal da casa, como era de bom-tom,
se revezava fazendo sala.
Rendidos de sono, davam o fora.
No fim, só ficava mesmo, firme, minha bisavó.
D. Joaquina era uma velha grossa,
 rombuda, aparatosa.
Esquisita. Demorona. Cega de um olho.
Gostava de flores e de vestido novo.
Tinha seu dinheiro de contado.
Grossas contas de ouro no pescoço.
Anéis pelos dedos. Bichas nas orelhas
. Pitava na palha. Cheirava rapé.
E era de Paracatu.
O sobrinho que a acompanhava,
enquanto a tia conversava contando "causos"
 infindáveis, dormia estirado no banco da varanda.
Eu fazia força de ficar acordada
esperando a descida certa do bolo
encerrado no armário alto.
E quando este aparecia, vencida pelo sono já dormia.
E sonhava com o imenso armário
 cheio de grandes bolos ao meu alcance.
De manhã cedo quando acordava, estremunhada,
com a boca amarga, - ai de mim
 - via com tristeza, sobre a mesa: xícaras sujas de café,
pontas queimadas de cigarro.
O prato vazio, onde esteve o bolo,
e um cheiro enjoado de rapé.
 

Cora Coralina

12/07/2014

Adeus às águas de um rio


 


uma microfísica dor
aprisionou-me
 turvando as estrelas
 aprofundando a noite
 
não vi o leito
daquele rio
caudaloso e querido
 
plásticos garrafas
sem mensagens
conduziram o cortejo
do seu corpo ao cemitério:
descampados
bancos de areia
barcos encalhados
 
adeus currais de peixes
lavadeiras no cais
mãe d'água
cabeça-de-cuia
 
no calhau da seca transborda
meu peito nas águas da memória
da magia das lendas
contadas à boca noite
 
meu coração disparado
adentra meu corpo
feito bicho assustado
fora de casa
 
água que era sangue
transformada em
carne seca
areia desértica
 
e o poema tenta navegar
sobre a aridez da carne
o ermo das palavras
em suas margens
assoreadas


07/07/2014

De sombras, palavras e mentiras



 
ontem
quebrei as sombras e vi
mosaicos de palavras saltarem
pelos ares, imagens transparentes
projetadas sobre um leito de
verbos silentes em bocas fechadas
 
aos pés de uma página que
o tempo amarelou algumas
palavras tentam sobreviver
amontoadas e sozinhas
juntas mas separadas
desarticuladas...

hoje
a língua dorme em
redes de aparentes conexões
embalada por uma sinfonia
de pombos e pardais
predadores
 
ainda assim quero
tua boca cheia
de mentiras!

05/07/2014

Em memória de Ivan Junqueira (1934-2014)


 
 
 

Variações sobre o branco



  Branca é a página onde escrevo
com ódio, amor, desespero;
branco, o papel onde as letras
põem o luto que há no texto.
Branca é a chama que não queima,
mas que o espírito incendeia,
fustigando-lhe as certezas
com fáusticas labaredas.
Branca, a fronte que se alteia
e após se inclina ante o peso
de uma vida cujo espelho
reflete a imagem do medo.
Branco, o espaço onde latejam
o sol, a lua, as estrelas;
branco, até mesmo o conceito
de que cega é a luz do preto.
Branco, afinal, o arremedo
dos lábios que não se beijam
e sobre os quais jaz o selo
de um asco sem endereço.
 
 
Cinco movimentos
 
 
    Que amor é esse que, desperto, dorme
e quando acorda faz-se ambíguo sonho,
transfigurando o belo no medonho
e em noite espessa a vida multiforme?
 
Então amor é só o que suponho,
o que não digo por ser tão informe
que fôrma alguma lhe é jamais conforme
como este molde em que teimoso o ponho?
 
Será amor o que se esquiva à fala
ou à linguagem que o pretende claro?
E o que seria esse tremor mais raro
que ao aflorar parece que se cala?
Amor oblíquo que olha de soslaio,
mas que ilumina e queima como raio....
 
 
 
Talvez o Vento saiba
 
.   Talvez o vento saiba dos meus passos,
das sendas que os meus pés já não abordam,
das ondas cujas cristas não transbordam
senão o sal que escorre dos meus braços.
As sereias que ouvi não mais acordam
à cálida pressão dos meus abraços,
e o que a infância teceu entre sargaços
as agulhas do tempo já não bordam.
Só vejo sobre a areia vagos traços
de tudo o que meus olhos mal recordam
e os dentes, por inúteis, não concordam
sequer em mastigar como bagaços.
Talvez se lembre o vento desses laços
que a dura mão de Deus fez em pedaços.

02/07/2014

Torção


 
 
costelas retorcidas
ombros caídos
formam o torço
compacto e dorido
de séculos
milênios
tentando sair
da idade da pedra
 
nas cavernas remanescentes
projetam-se em telas gigantes
estátuas que repetem
reflexos de ideias
de aparência real
como cópias de tais ideias