DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

25/09/2016

Teoria das cores


 
 
Era uma vez um pintor que tinha um aquário com um peixe vermelho. Vivia o
peixe tranquilamente acompanhado pela sua cor vermelha até que principiou a tornar-se negro a partir de dentro, um nó preto atrás da cor encarnada. O nó
desenvolvia-se alastrando e tomando conta de todo o peixe. Por fora do aquário
o pintor assistia surpreendido ao aparecimento do novo peixe.
O problema do artista era que, obrigado a interromper o quadro onde estava a
chegar o vermelho do peixe, não sabia que fazer da cor preta que ele agora
lhe ensinava. Os elementos do problema constituíam-se na observação dos factos e punham-se por esta ordem: peixe, vermelho, pintor - sendo o vermelho
o nexo entre o peixe e o quadro através do pintor. O preto formava a insídia do
real e abria um abismo na primitiva fidelidade do pintor.
Ao meditar sobre as razões da mudança exatamente quando assentava na sua
fidelidade, o pintor supôs que o peixe, efectuando um número de mágica, mostrava que existia apenas uma lei abrangendo tanto o mundo das coisas como o da imaginação. Era a lei da metamorfose.
Compreendida esta espécie de fidelidade, o artista pintou um peixe amarelo.
 
Herberto Helder, Funchal 1930-Cascais 2015. Os passos em volta
 
* Peço desculpas ao pintor, poeta e editor do azultemporario.blogspot.com.br, por antecipar-me a sua permissão publicando esta sua tela, que considero belíssima! 


18/09/2016

Fragmentos de delírios

Do nada ao sem fim restaram terras de esquecimento inundadas pela impetuosidade do mar da ignorância; da solidão surgiu o farol do conhecimento
abrindo portas descerrando as cortinas da hipocrisia e da superstição.

 
 

 
 
Do silêncio da mata ouço a voz que está perdida em agonia; o ronco surdo da terra mistura-se ao silêncio formando lagos, lagoas-lágrimas, blocos de vocábulos, geleiras de palavras, nuvens de parágrafos suspensos na imensidão
da selva. Um abelhume de línguas atravessa minha garganta descendo por desfiladeiros, escorregando pelas grutas verbais entre serpentes que sinuosamente se escondem em labirintos de braços linguísticos desconhecidos.
 
 
 
A noite misturou-se ao dia e já não sei mais qual a profundidade de minhas pálpebras; meus dedos tortos, teu nariz siliconado e adornado com piercing,
farejam mãos avulsas que dançam no salão oval da catedral ao som de uma canção à capela; várias palavras caminham aleatoriamente. O sono, que propiciava o encantamento para o sonho, agora só aparece através dos barbitúricos.


 
À noite meu pensamento é pólvora que explode em polvorosa; quando nasce
o dia torna-se pó, fica impalpável, placidamente plástico como um cipó de
bambu, que enverga com o vento, mas permanece de pé...
 
A roda roda porque sua natureza é giratória e espiralada, infinita. Se andamos em círculo é porque estamos viciados, estagnados. "Se o homem das cavernas
soubesse no que isso ía dar, nem teria saído de lá".
Como dizia Antonio Machado, (1875-1939) "no mar da mulher poucos naufragam à noite, muitos ao amanhecer".


15/09/2016

Da atualidade dos Antigos


"Mundus vult decipi, ergo decipiatur" ou O mundo quer ser enganado, portanto, que o seja!

 
 
Onde o ouro é todo-poderoso, de que servem as leis?
Se não tem dinheiro, o pobre perde seus direitos.
O cínico, que é tão frugal e severo em público,
secretamente negocia com a verdade.
Até mesmo Têmis se vende e, em seu tribunal,
a balança pende conforme o vil metal.


 
 
 
Diante de cabeças sem cérebro, não se pode falar razoavelmente. Como observou Cícero, (106a.C.-44a.C.) se o ensino não é agradável, "o professor logo ficará sem ouvintes". Da mesma forma, se o adulador parasita quer ser admitido à mesa do rico, prepara previamente uma seleção de contos agradáveis para os convivas; não atingiria seu objetivo se não preparasse armadilhas para os ouvidos de sua audiência. O professor de retórica, como
o pescador, sabe muito bem que se não puser no anzol a iscca preferida pelo peixe, ficará sentado toda vida no rochedo, sem esperança de fisgá-lo.
 
 
 
Para a água desejada, ou para um fruto próximo,
Tântalo estende sempre a boca ou a mão:
mas o fruto, rebelde à mão que o toca,
recua sempre, e a água traiçoeira foge-lhe da boca.
É isso o que ocorre com o avaro cercado de ouro.
Só bebe com os olhos, só com os olhos come...
Pobre insensato! Para pagar esse estranho banquete,
morres de fome agarrado ao teu cofre!
 
 
Trechos de Satíricon, escrito por volta de 60 d.C. por Petrônio (Caio Petrônio Árbitro - 27-66 d.C.). De família aristocrática e rica, foi governador e cônsul de Petínia(atual Turquia) e conselheiro do imperador romano Nero.


09/09/2016

Discurso da servidão voluntária (trechos)

 
Hyeronimus Bosch - Jardim das delícias(detalhe)

Muito se engana quem pensa que os guardas e a disposição das sentinelas
protegem o tirano. Creio que esse recurso é utilizado mais por uma questão de formalidade do que de confiança. Os arqueiros proíbem a entrada no palácio
aos mal vestidos que não têm recursos, não aos bem armados que podem praticar algum mal. Não são os bandos de gente a cavalo, as pessoas a pé ou as armas que defendem o tirano. São sempre quatro ou cinco que mantém o tirano - quatro ou cinco que o ajudam a conservar o país inteiro servil. Sempre
foi assim: cinco ou seis são ouvidos pelo tirano e dele aproximam-se ou são por ele chamados para serem cúmplices de suas crueldades, os parceiros dos seus
prazeres, os proxenetas de suas volúpias e sócios dos bens provenientes de suas pilhagens. (...). Esses seis têm seiscentos que crescem abaixo deles e fazem de seus seiscentos o que os seis fazem ao tirano. Esses seiscentos conservam debaixo deles seis mil, cuja posição elevaram, aos quais fazem dar ao governo das províncias o manejo do dinheiro para que tenham na mão sua
avareza e sua crueldade, exercendo-as no momento oportuno.(...) Grande é
o séquito que vem depois, e quem quiser divertir-se desmanchando essa rede
não verá os seis mil, mas os cem mil, os milhões que através dessa corda agarram-se ao tirano. (...) Em suma: que se chegue lá através de favores ou subfavores, os ganhos que se tem com o tirano; ocorre que ao final há tanta gente para quem a tirania é proveitosa quanto para aqueles para quem a liberdade seria fundamental.
 
Etienne de La Boétie, (1530-1563) poeta e filósofo francês que faleceu aos trinta e dois anos de idade, deixando sua obra para Michel de Montaigne, ((1533-1592) seu grande amigo, autor de "Os ensaios".