DE CHARLES BUKOWSKI (1920-1994)

Arder na água, afogar-se no fogo. O mais importante é saber atravessar o fogo.

23/02/2021

Onde estamos?

 




Estávamos no terraço de um lugar qualquer.                                                    

 - Agora vamos para Roma.

E ela:

- Onde fica Roma?

- Em Roma, ora!

Você entendeu alguma coisa, leitor? Nem eu, foi somente um sonho daqueles em que a gente acorda com o som de nossa própria voz e nos perguntamos: "onde estou?", só então percebemos que estamos deslocadas(os), à margem, numa terra estranha em nossa própria casa. E que não foi um sonho. É um pesadelo!

15/02/2021

Monólogo




Há quem diga que as paredes têm ouvidos; que quem não se manifesta se esconde ou concorda com o que está posto. Também dizem que falar sozinho é sinal de loucura. Tanta coisa é dita por esse desmundo...             Nesses tempos de pandemia e pandemônios muitos castelos (de areia) estão desmoronando. Se estás a sós entre quatro paredes, o que te resta senão conversar com elas? Se te escutam não sei, pois nada dizem - ecoam em teus ouvidos repetidas vezes para, quem sabe, encontrares uma resposta por esforço próprio. O silêncio pode, num primeiro momento, ser assustador. Nem sempre calamos por vontade deliberada, por opção; calamos para melhor refletir, ouvir a si mesmo ou a outrem. E, quando por motivos alheios à nossa vontade, dialogamos a sós, temos a rara oportunidade de trocar ideias com nosso múltiplos eus, de perceber como somos contraditórios e cheios de imperfeições. Nossos eus podem ser comparados aos livros que lemos; estabelecemos uma ampla conversação com seus autores, seus personagens, sem interagir vivamente com eles. E como podemos aprender... Tenho uma infinita legião de amigos com quem posso monologar à vontade!  

08/02/2021

Um dia mortos


                              Um dia mortos, gastos voltaremos

 a viver livres como os animais. 

E mesmo tão cansados floriremos

 irmãos vivos do mar e dos pinhais.


O vento levará os mil cansaços

 dos gestos agitados, irreais

 e há-de voltar aos nossos membros lassos

 a leve rapidez dos animais.


Só então poderemos caminhar

 através do mistério que se embala

 no verde dos pinhais, na voz do mar.

E em nós germinará a sua fala.

                            




Os poetas


Solitários

pilares dos céus pesados,

poetas nus em sangue, ó destroçados

anunciadores do mundo

que a presença das coisas devastou.

Gesto, de forma em forma vagabundo

que nunca num destino se acalmou.





Pirata


Sou o único homem a bordo do meu barco.

Os outros são monstros que não falam,

tigres e ursos que amarrei aos remos,

e o meu desprezo reina sobre o mar.


Gosto de uivar no vento com os mastros

e de me abrir na brisa com as velas,

e há momentos que são quase esquecimento

numa doçura imensa de regresso.


A minha pátria é onde o vento passa,

a minha amada é onde os roseirais dão flor,

o meu desejo é o rastro que ficou das aves,

e nunca acordo deste sonho e nunca durmo.


Sophia de Mello Breyner Andresen - Porto(Portugal) 1919-2004